Visão de mosca: distrações no cumprimento da tarefa global
Como derrubar paredes de discórdia entre teologias e denominações e criar um esforço comum para enfrentarmos juntos os maiores desafios das nações?
Carlos Madrigal Mir
Este texto consiste em um resumo adaptado de uma de minhas palestras. Trata-se de um conteúdo de exortação e inspiração para nos animar a colaborar melhor com Deus em seu propósito para a humanidade. Ao mesmo tempo, toca em um tema técnico ou prático, buscando uma panorâmica bastante ampla da tarefa global.
Para alcançarmos uma meta, precisamos vê-la. A isso, chamamos visão. Quando falamos de visão em relação à obra, falamos de uma combinação entre uma meta que, entendemos, foi mostrada a nós pelo Senhor e algo que sentimos como uma paixão própria. A visão da igreja, muitas vezes, foi fragmentada até ficar reduzida a quase nada, como a visão fragmentada do olho da mosca: prioriza mais as necessidades imediatas do que a Grande Comissão. A tarefa global fica relegada ao último lugar nas prioridades da comunidade, quando deveria ostentar o primeiro. Por isso, é importante começar revisando nossa visão. Aqui, compartilho o conteúdo ao qual dei o título “Moscas em sua água benta? Um obstáculo para as missões”.
O ponto principal é que, no primeiro século, “os leões” eram a ameaça à espreita dos cristãos; hoje, são as “moscas”! Em Eclesiastes 10.1, lemos: “Como moscas mortas produzem mau cheiro até num frasco de perfume, assim um pouco de insensatez estraga muita sabedoria e honra”.[1] As moscas podem corromper o aroma de Deus em nós, seus mensageiros, e por isso impedir que sua fragrância alcance a humanidade.
Esses insetos podem parecer insignificantes, mas encheram nossa cultura de ditados populares: “Você se distrai com uma mosca”, “Mais chato que moscas no verão”, “Em boca fechada não entram moscas”, “Com a mosca/pulga atrás da orelha”, “Que mosca/bicho te mordeu?” e por aí vai. Apesar de pequenas, as moscas podem causar grandes incômodos e no distrair do que realmente importa. A passagem de Eclesiastes fala sobre como “pequenos” deslizes podem arruinar uma reputação.
- Um pastor que grita com sua mulher em público;
- Um juiz que é pego bêbado ao volante;
- Um acadêmico que copiou parte de sua tese;
- Um político que aceita um suborno…
Tristemente, as notícias estão cheias de casos assim. O mesmo efeito tem uma mosca no perfume. É como encontrar uma mosca flutuando na sopa de um restaurante com estrelas Michelin. As estrelas desaparecem; a mosca, não.
As moscas na Bíblia são também um símbolo da obra destruidora de Satanás. Assim, os fariseus, querendo acusar Jesus de usar poderes diabólicos, repreendem-no dizendo: “Ele só expulsa demônios porque seu poder vem de Belzebu, o príncipe dos demônios” (Mt 12.24). Belzebu (do hebraico Baal-zebub, ou seja, “senhor das moscas”) era uma forma depreciativa de se referir aos deuses fenícios. As partes oferecidas no altar nos sacrifícios hebraicos se queimavam por completo, só ficavam as cinzas. A fumaça espantava as moscas, e as cinzas não as agradavam. Mas, nos sacrifícios pagãos, os cascos, vísceras ou outros restos permaneciam, atraindo as moscas. Assim, usando Belzebu de maneira sarcástica, os judeus tiravam sarro de suas divindades, dizendo que aparentemente só atraíam a resposta do senhor das moscas, a quem acabaram identificando como Satanás. William Goding se inspirou nesse conceito para escrever seu famoso romance Senhor das Moscas, que relata a escalada violenta e autodestrutiva de crianças que sobrevivem a um acidente aéreo em uma ilha deserta.
Podemos dizer que Belzebu está interessado naquelas sobras que não se oferecem ao Senhor em holocaustos, sobras essas que podem ser múltiplas e diversas. “Peguem todas as raposas, as raposinhas, antes que destruam o vinhedo do amor, pois as videiras estão em flor”, adverte Cantares 2.15. Mas, no tema que nos ocupa, tais sobras poderiam ser, entre outras coisas:
- Escassez de visão;
- Falta de fé;
- Negar-se a colaborar com outros;
- Preguiça e busca de comodidade;
- Antepor os medos ao chamamento;
- Resultados garantidos como condição para dar o primeiro passo;
- Relutância para se desprender das coisas;
- Menosprezar a obra de Jesus, conformando-nos com as mentiras do diabo. (A pior de todas!)
À insinuação dos fariseus, Jesus replicou: “Todo reino dividido internamente [fragmentado] está condenado à ruína” (Mt 12.25). Se fragmentamos a visão, corremos o risco de ficarmos devastados. Jesus diz ainda adiante: “Quem não está comigo opõe-se a mim, e quem não trabalha comigo na verdade trabalha contra mim [fragmenta]” (Mt 12.30). É a versão bíblica de nosso “dividir para conquistar”. Pois bem, Satanás não está dividido, mas a igreja e sua visão, lamentavelmente, sim. E o labor do inimigo é garantir que continue sendo assim.
O que tem a ver as moscas com a missão? Acaso se trata de se vacinar contra a malária (ou a dengue)? Comecemos do princípio. Pensando especificamente no mundo árabe, encontramos um detalhe inquietante no capítulo 2 de Atos, no relato do Pentecostes:
Muito admirados, exclamavam: “Como isto é possível? Estes homens são todos galileus e, no entanto, cada um de nós os ouve falar em nosso próprio idioma! Estão aqui partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia, da Capadócia, do Ponto, da província da Ásia, da Frígia, da Panfília, do Egito e de regiões da Líbia próximas a Cirene, visitantes de Roma (tanto judeus como convertidos ao judaísmo), cretenses e árabes, e todos nós ouvimos estas pessoas falarem em nossa própria língua sobre as coisas maravilhosas que Deus fez!”. (Atos 2.7-11)
Com o derramamento do Espírito Santo no Pentecostes, a igreja teve início. No dia primeiro da igreja, na primeira hora e no primeiro minuto, entre os ouvintes – e assumimos que logo houve também convertidos ao evangelho –, encontramos árabes. E logo ficaram esquecidos até o sétimo século! A igreja se descuidou de seu chamado pelo menos para uma das nações. O senhor das moscas (ou da distração) havia entrado em ação. Ousarei dizer da seguinte forma: como os árabes não receberam o evangelho, buscaram o seu próprio. Com o que estava ocupada a igreja nesse momento? Com o que o diabo mais gosta: “Divida-se e será vencida”. A igreja estava discutindo sobre doutrinas. E não sobre doutrinas básicas, mas sobre a quintessência de qualquer minúcia. Os temas podiam ser rocambolescos, do tipo: “Se uma mosca cair na água benta, o que acontece: santifica-se a mosca ou se contamina a água?”, ou “Quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete ou qual é o sexo dos anjos?”.[2] As moscas estavam ganhando a batalha contra a igreja! Apenas três séculos depois de se livrar da perseguição e devastação romanas, a igreja havia se fragmentado a tal ponto que os cristãos se matavam entre eles por todo tipo de discrepâncias.
O islã se estendeu facilmente onde outros que se chamavam também cristãos (arianos[3], monofisitas[4], nestorianos[5]) eram perseguidos pela igreja ortodoxa bizantina. Esses outros cristãos receberam os conquistadores árabes como libertadores. No ano de 649, um bispo nestoriano escrevia: “Estes árabes não lutam contra nossa religião cristã; não, mais do que isso, defendem nossa fé, respeitam nossos sacerdotes e santos, e fazem doações a nossas igrejas”.[6] Assim, em um primeiro momento, os muçulmanos foram vistos como libertadores da opressão bizantina pelos cristãos monofisitas e nestorianos da Síria e do Egito. Isso também podia ser dito a respeito dos judeus perseguidos, os quais, “liberados das penúrias da perseguição de Constantinopla, prosperaram como nunca, gerando no processo uma rica literatura espiritual de hinos, orações, sermões e obras piedosas”.[7]
Um caso ilustrativo é o de São João Damasceno. Ele e os escritores bizantinos precoces assumiam que o islã não era mais do que uma forma heterodoxa do cristianismo. Essa opinião é particularmente interessante em seu caso, já que havia crescido na corte omíada de Damasco – o centro do jovem império muçulmano –, onde seu pai era vizir e amigo íntimo do futuro califa Al-Yazid. Em sua velhice, João tomou os hábitos no monastério do deserto de Mar Saba, onde começou a trabalhar em sua obra mestra, uma refutação das heresias cujo título é A fonte do conhecimento. O livro inclui uma precisa crítica ao islã, a primeira escrita por um cristão (próximo ao ano 700): João considerava o islã estreitamente relacionado à doutrina cristã heterodoxa do nestorianismo. Em sua lista, o islã era a heresia número 100 entre outras muitas de corte “cristão”.
O que mais a igreja estava fazendo naquele período? Construindo a basílica de Santa Sofia, algo que demandava fortes investimentos, os quais obtinha agravando os impostos das províncias. Podemos dizer que o islã se estendeu facilmente onde os “outros cristãos” foram despojados por Bizâncio (Roma Oriental) para que se construísse a maior catedral do império. Parece familiar? Não era em troca de indulgências, mas quase. Em vez de cumprir a Grande Comissão, a igreja estava concentrada em desqualificações entre denominações e na construção de megaigrejas. Já viu isso acontecer?
Voltemos à pergunta de um milhão… Se uma mosca cair na água benta, o que acontece: santifica-se a mosca ou se contamina a água? Se lermos Ageu, talvez a pergunta não nos pareça tão absurda. O profeta, sob inspiração, repreende os sacerdotes da seguinte maneira:
“Se alguém levar em sua roupa a carne consagrada de um sacrifício, e se, por acaso, a roupa tocar num pão, num ensopado, em vinho, em azeite ou em qualquer outro tipo de alimento, esse alimento também se tornará consagrado?”. “Não”, responderam os sacerdotes. Em seguida, Ageu perguntou: “Se alguém se tornar cerimonialmente impuro ao tocar num cadáver e depois tocar num desses alimentos, o alimento ficará contaminado?”. “Sim”, responderam os sacerdotes. Então Ageu disse: “É o que acontece com este povo e com esta nação”, diz o Senhor. “Tudo que fazem e oferecem é contaminado por seu pecado.” (Ag 2.12-14)
Se uma mosca cair na água benta, o que acontece: santifica-se a mosca ou se contamina a água? Segundo os sacerdotes: se carne consagrada toca algo não consagrado, perde-se a benção. Ou seja, a mosca contamina a água benta. No entanto, Levítico parece dizer o contrário! “O animal apresentado como oferta pelo pecado é oferta santíssima e será morto diante do Senhor, onde são mortos os animais para os holocaustos. (…) Qualquer pessoa ou objeto que tocar a carne do sacrifício se tornará santo” (Lv 6.25, 27). A água benta santifica a mosca. O que aconteceu quando a mulher imunda com fluxo de sangre tocou em Jesus? Quem foi alterado? O santo pelo imundo, ou o imundo pelo santo? (Lc 8.43-44) O que acontecia quando a sombra de Pedro caía sobre os doentes? (At 5.15) Ou quando levavam os lenços do corpo de Paulo aos desvalidos? (At 19.12) Quando o santo toca o imundo, é para libertá-lo, redimi-lo, saná-lo, santificá-lo…
Sendo assim, por que o profeta Ageu diz ao povo, em especial aos sacerdotes: “É o que acontece com este povo e com esta nação. Tudo que fazem e oferecem é contaminado por seu pecado” (v.14)? O que marca a diferença entre Levítico e Ageu?[8] A resposta encontramos no capítulo 1, versículo 4: “Por que vocês vivem em casas luxuosas enquanto minha casa continua em ruínas?”. Dito de forma atual e para que me entendam: em vez de edificar o templo de Cristo em todas as nações, estavam edificando uma confortável igreja, que viam como propriedade sua, para engrossar suas fileiras, e se esqueceram dos extremos da terra! Acaso Deus não quer que tenhamos um lar (no caso de Ageu) ou um templo (em nosso caso) para nos refugiarmos e desfrutarmos? Claro que sim! Mas uma coisa não cancela a outra. Construir a casa do Senhor hoje é:
- Chegar e tocar os imundos, como Jesus, ali onde se encontram;
- Fazer com que nossa sombra alcance todos os que estão pelos caminhos, fora dos templos, como Pedro;
- Trabalhar para nossos lenços (extensões de nosso corpo, i.e., membros de nossa igreja) chegarem aos que estão longe, nos extremos do mundo, como Paulo.
Não necessitamos de água benta, porque nós somos a água benta! Deus quer que sejamos como água benta, estendendo sua benção até os confins da terra. Quer que sejamos seu perfume, estendendo sua fragrância a toda a humanidade (2Co 2.14-16). Mas para isso devemos:
- Deixar de nos distrair com as moscas, com as disputas entre crentes e com apenas edificar nossa igreja;
- Desistir de nosso empenho em fragmentar a visão e de relegar a tarefa global às sobras (o que só atrai moscas);
- Atentar que a prioridade de Deus é enviar “apóstolos” (i.e., emissários): “Deus mostrou quanto nos amou ao enviar [no grego apostellō] seu único Filho…” (1Jo 4.9-10).
Queremos recuperar a visão original de Deus? Então, coloquemos a tarefa global em seu lugar de proeminência!
Para isso, devemos nos perguntar:
- Que passos devemos dar para derrubar paredes de discórdia entre teologias e denominações, para evitar perder tempo em brigas e discussões e criar um esforço comum para enfrentarmos juntos, deixando de lado as diferenças, os maiores desafios das nações?
- Como convencer a igreja da necessidade de deixar de gastar tempo e dinheiro em “lugares” de comodidade e estar disposta a financiar não apenas o “templo” em nossa Jerusalém, mas também chegar até os confins da terra e os lugares mais inóspitos do planeta?
Deixo aqui esse desafio e reflexão.
O texto foi extraído do livro Recomponiendo La Missión Con Jesús – Reflexiones sobre la misión, sobre la tarea global y sus implicaciones para el mundo [Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo], publicado na Espanha por Impresiones em 2018. O Martureo recebeu autorização do autor para traduzi-lo e publicá-lo. Tradução: Lucas F. R. Juknevicius. Edição: Fernanda Schimenes.
Sobre o autor
Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.
[1] Todos os textos bíblicos foram extraídos da Nova Versão Transformadora (NTV). (N. do E.)
[2] Daí a expressão “discutir o sexo dos anjos”, que significa uma discussão ou argumento inútil, em que cada parte nunca pode chegar a provar seu posicionamento à parte contrária. Esse era aparentemente o tema sobre o qual estavam discutindo os bizantinos quando os otomanos punham cerco a Constantinopla no século 15.
[3] Arianismo: afirma que Deus Filho foi criado por Deus Pai em um tempo dado, por isso é uma criatura diferente, ainda que também seja deus.
[4] Monofisismo (no grego μόνος, monos, ‘uno’; e φύσις, physis, ‘natureza’): doutrina que sustenta que em Jesus só está presente a natureza divina.
[5] Nestorianismo (ou difisismo): considera Cristo separado em duas pessoas, uma humana e uma divina, ambas completas e independentes.
[6] Margaret Smith, Studies in Early Mysticism in the Near and Middle East. Oneworld, 1995, p. 120.
[7] Ver Michele Piccirillo, “The Christians in Palestine During a Time of Transition: 7th–9th Centuries”, The Christian Heritage in the Holy Land, editado por Anthony O’Mahony, Scorpion Cavendish, 1995, p. 95.
[8] Uma diferença é que Ageu fala de coisas, e Levíticos, de pessoas.