Transmissão Global, Missão Global (Parte 3/6)

O impacto e as implicações da pandemia de Covid-19: “Testemunho cristão em tempos de pandemia” e “Vida da Igreja durante o lockdown

Jason Mandryk

O conteúdo a seguir é a terceira de seis parcelas do e-Book de mesmo título publicado pela Operation World. Foi originalmente escrito em inglês, e o Martureo recebeu autorização para traduzir para o português e republicar o material.

Se preferir, leia antes:

Parte 1/6 – “Prefácio” e “Adentrando o desconhecido”, texto que traz os itens 1 a 6;

Parte 2/6 – Visão amplificada – questões socioculturais” e “Mas e a economia?”, texto que traz os itens 7 a 21.

 

Testemunho cristão em tempos de pandemia

Cientistas sociais e pesquisas de mercado indicam que são necessárias cinco experiências positivas para contrabalancear uma única negativa, e que 40 relatos positivos de clientes são necessários para anular o efeito de uma revisão negativa publicada on-line. O Reino de Deus não pode ser reduzido ao exercício de boas práticas de relações públicas, mas como embaixadores que somos, temos sem dúvida muito trabalho a fazer!

22. O mundo está observando. Ouso dizer que pelo menos o mundo ocidental está de olhos bem abertos na expectativa de que algum cristão proeminente faça ou diga algo que possa ser classificado como estúpido ou maléfico (ou ambos). O mundo está observando, e muito atentamente.

Como os cristãos agem, o que falam e de que maneira vivem durante o coronavírus será a forma como o mundo interpreta o cristianismo. O homem é a mensagem. E uma vez que não podemos esperar por graça da parte da mídia secular, as palavras ditas em público e as condutas de alguns cristãos no Ocidente têm causado constrangimento ao nome de Jesus. Às vezes, as motivações para incidentes assim são até boas, o que os torna ainda mais difíceis. Um desejo de pastorear os que estão sofrendo e orar por eles, um desejo de se encontrar para se confraternizar e confortar, um desejo de ser um contraponto de fé em um tempo de medo, tudo isso são coisas louváveis. Mas qual o significado de ser sal e luz? O que significa amarmos nossos inimigos como a nós mesmos? Rebelar-se abertamente contra as autoridades nomeadas por Deus que estão tentando impedir a propagação de doenças? Publicamente desacreditar da ciência estabelecida que é feita e endossada [em boa parte] por cristãos sérios? Como nossa conduta comunica de maneira efetiva a beleza de Jesus a um mundo que torce para que falhemos?

Fui informado por fonte fidedigna (um líder missionário que atua no mundo muçulmano) sobre a devastação que resultou de condutas problemáticas de muçulmanos no que tange à Covid-19. Primeiro, muitos mulás disseram que a Covid-19 era uma doença de infiéis, e que ela não atingiria muçulmanos tementes. Continuem se reunindo para orar, eles disseram. Suas mesquitas se tornaram lugares de transferência comunitária. Segundo, muitos do movimento missionário islâmico Tablighi Jamaat desconsideraram as ordens do governo para interromper as reuniões em vários países. Essas reuniões se tornaram pontos para a disseminação da infecção, e os responsáveis estão sob escrutínio, sujeitos a hostilidade, em alguns casos até sendo acusados de homicídio culposo. Isso aconteceu em diversos países. Não queremos que os muçulmanos adoeçam, e muito menos que morram! Mas também não queremos cair na mesma armadilha desses líderes equivocados.

23. A intersecção entre política e fé é, mais do que nunca, um assunto controverso e delicado, pelo menos em alguns países. Ainda bem que muitas nações foram poupadas da hiper-polarização da fé cristã. Infelizmente, polarização políticas aumentam em tempos de crise, e a civilidade geralmente decresce. Isso não precisa ser assim na Igreja, mas muitas vezes é o que acontece. Já é difícil o suficiente, em tempos normais, direcionar àqueles cujas convicções políticas diferem das nossas bondade, paciência, empatia e mesmo amor. Quanto mais quando o envolvimento face a face cessou, quando reuniões comunitárias presenciais ligaram o botão de pausa, e quando podemos nos enfiar confortavelmente em nossas bolhas com filtros e câmaras de eco? Podem os cristãos ser melhores que isso? Claro que podemos – o poder de Jesus tem transformado pessoas ao longo de 2000 anos! Mas precisamos querer que Deus nos transforme por meio de uma mudança em nosso modo de pensar, de maneira que não imitemos o comportamento e os costumes deste mundo (Rm 12.2). O Santo Espírito pode perfeitamente nos pedir [ou não] para mudar quais políticas temos, mas ele definitivamente nos pedirá para mudar como as fazemos.

24. Teorias da conspiração e cristãos. Como aqueles que seguem o que afirmou ser o caminho, a verdade e a vida estão entre os mais ingênuos e entusiásticos adeptos e disseminadores de falsidades? Ter fé no que não se pode ver não nos exclui da responsabilidade de sermos maduros em nossa forma de pensar. Antecipar um novo céu e uma nova terra não nos dá licença para endossar a destruição e o sofrimento deste mundo.

Entender que o sistema, os poderes e os principados desde mundo extrapolam a esfera terrena não significa que toda postulação no âmbito do sobrenatural seja necessariamente verdadeira! A organização Tearfund afirma que, dos sete importantes papeis que a Igreja pode desempenhar durante crise do coronavírus, o primeiro é “Divulgar mensagens claras e corretas”, e o segundo é “Conter mensagens falsas e prejudiciais para não incitar o pânico e prevenir estigmas”. Quando nos envolvermos com nossos irmãos que caíram em tais armadilhas, temos de ter em mente 2 Timóteo 2.24-26.

Quando, de maneira impensada, abraçamos ensinamentos falsos, falhamos em amar o Senhor, nosso Deus, com toda a nossa mente (Mt 22.37), além disso, não somos “espertos como serpentes” (Mt 10.16). Quando espalhamos tais inverdades, damos falso testemunho, e quebramos o nono mandamento. Quando ensinamos tais falsidades, seremos julgados com mais rigor (Tg 3.1). Quando nos deleitamos em apontar o dedo de julgamento e acusação, estamos nos distanciando do coração de Cristo, cujo foco é buscar e salvar os perdidos. O padrão da medida que adotarmos será usado para sermos medidos (Mt 7.2). Finalmente, quando nós rejeitamos a verdade e corrermos atrás de mitos (2Tm 4.4), estamos trazendo descrédito ao nome de Cristo.

Não devemos abraçar sem senso crítico a narrativa convencional que o mundo incrédulo quer que adotemos. Sabemos que ela, também, baseia-se em mentiras. Definitivamente, então, trata-se de um momento para considerarmos formas alternativas de entender as notícias e interpretar os assuntos atuais. No entanto, em última análise, essa prática deve ter como objetivo a manutenção de nosso testemunho como pessoas de verdade e amor. Meu ponto central junto àqueles que me apresentam teorias da conspiração é geralmente um “E daí?”. Mesmo que toda especulação seja uma afirmação 100% verdadeira, como isso muda o que Jesus me chamou para fazer, quem Jesus me chamou para ser e como Jesus me chamou para viver? Não muda.

25. Os dons do Espírito são vitais, e eles são necessários não apenas com poder, mas com humildade, gentileza e transparência. Eles são para a edificação do corpo, e o corpo definitivamente precisa de edificação nestes dias. Em meio à proliferação de profetas e videntes no YouTube, onde estão aqueles cujas palavras estimulam a Igreja global para estar preparada para este tempo? Onde estão aqueles que oram pelos doentes e, assim, veem Deus se mover nas unidades de terapia intensiva? Eu creio que Deus absolutamente pode atuar e atua de maneiras que confundem a ciência e convertem céticos. Oremos pela multiplicação de tais dádivas ao mesmo tempo que oramos para que Deus livre-nos dos charlatões, dos que fazem da espiritualidade uma mercadoria. Que aqueles que têm fé possam prosseguir no caminho correto, com sabedoria e integridade. Que ninguém faça mal uso de dons, especialmente aqueles que se consideram apóstolos, de maneira que não ousem se “vangloriar de nada, exceto do que Cristo fez por meu intermédio a fim de conduzir os gentios a Deus, por minha mensagem e pelo meu trabalho, convencendo-os pelo poder de sinais e maravilhas e pelo poder do Espírito de Deus” (Rm 15.18-19).

Deus misericordioso, poupe sua Igreja dos falsos mestres, cuja loucura torna odioso o nome de Jesus para as nações.

26. O evangelho da prosperidade e o cuidado dos pobre. Há a esperança de que esta crise exponha de forma clara a falência espiritual dos que, como ambulantes, distribuem o evangelho da prosperidade. A marcha implacável da Covid-19 nas igrejas (até e especialmente nas comunidades pentecostais e carismáticas) parece desconsiderar qualquer fé que “amarre” o vírus ou “reivindique” suposta imunidade neste mundo caído. Embora alguns tenham demonstrado que o evangelho da prosperidade funciona (pelo menos para si próprios) com base em sua fixação em seus próprios ganhos financeiros, os mais pobres dos mais pobres sofrem, e eles ignoram as implicações teológicas disso, e permanecem cegos e surdos em relação à essa realidade. Essas pessoas falam sobre um Jesus compassivo e amoroso apenas para agir como lobos em pele de cordeiro.

Com gratidão, podemos relacionar um número muito maior de iniciativas altruístas e atos de bondade dos cristãos que capturam o espírito de Mateus 25.40 – “E o Rei dirá: ‘Eu lhes digo a verdade: quando fizeram isso ao menor destes meus irmãos, foi a mim que o fizeram’”. Tiago 1.27 declara – “A religião pura e verdadeira aos olhos de Deus, o Pai, é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo”. Muitas (muitas mesmo) congregações estão demonstrando o amor de Deus pelos pobres por meio de ações compassivas.

27. A generosidade cristã é um testemunho poderoso. Ela segue a lógica inversa da teologia da prosperidade citada acima. Em boa parte da sociedade ocidental, os líderes cristãos são vistos pelos não-crentes como desonestos e avarentos. Presume-se que as motivações de praticamente qualquer pastor ou figura pública cristã sejam ganância e poder. Sabemos que isso não é verdade – pelo menos não usualmente –, mas tal percepção é muito comum. De acordo com o senso comum, também, as pessoas religiosas são mais caridosas e doam mais que as não religiosas; e os cristãos são, geralmente, os mais generosos. Há um conjunto complexo de questões envolvidas nesses estudos, é claro.

Seja no bazar beneficente da igreja, no trabalho para distribuição de sopa a pessoas em situação de rua, em campos missionários distantes, a vizinhos em necessidade ou engajando-se em iniciativas globais, os cristãos têm a oportunidade de demonstrar um espírito de generosidade nesta época de recessão econômica e crise global. Não estamos falando de alimentar nossos próprios egos com orgulho, mas do que está em Mateus 5.16: “Suas boas obras devem brilhar, para que todos as vejam e louvem seu Pai, que está no céu”. Muitos de nós somos bons em seguir o conselho de Jesus para irmos ao nosso quarto de oração e mantermos nossa espiritualidade escondida ali. Mas a instrução de Jesus a seus seguidores é explícita: devemos fazer brilhar nossas luzes de forma que tenham alta visibilidade. Por quê? Porque assim eles poderão ver nossas boas obras! Que grande chance temos de lutar contra o instinto egoísta e sermos extravagantemente abertos e transparentes em nossas doações.

Talvez eu mesmo não tenha dado atenção suficiente a isso, mas eu constantemente reflito sobre o fato de a centralidade da generosidade na Igreja no Novo Testamento não ser mais enfatizada. Sabemos como os crentes “…compartilhavam tudo que possuíam. Vendiam propriedades e bens e repartiam o dinheiro com os necessitados” (At 2.44-45). Essa generosidade foi marcada por muitos sinais e maravilhas, por uma reverência a toda alma, por companheirismo caloroso no templo e nos lares, por cristãos ganhando o apreço de todos; e assim Deus ia aumentando seu número dia a dia. A generosidade faz parte do avivamento!

Adiante, em Atos 11.27-30, vemos uma igreja em Antioquia responder a uma grande fome praticando a generosidade para com seus irmãos menos abastados da Judeia. Paulo, em seu próprio ministério, faz menção de uma coleta realizada entre as igrejas gentias em favor dos crentes necessitados em Jerusalém. O resultado de tais iniciativas não se sabe ao certo, mas essa prática parecia estar entre as prioridades de Paulo. O exercício da generosidade na Igreja global, em que aqueles que têm mais compartilham com os que têm menos, parece ser um ponto cego no cristianismo de hoje – ou talvez não tanto um ponto cego, mas um assunto estranho, que é melhor não ser mencionado.

Estou convencido que os cristãos que têm sido radicalmente generosos para com nossos irmãos e irmãs em necessidade – localmente, claro, mas também nos lugares longínquos onde há muita necessidade – são um testemunho poderoso das boas novas a um mundo incrédulo. Isso faz cair por terra a ideia errada que muitos não cristãos carregam dos cristãos. É um testemunho da realidade de sermos uma família global de fé. É um testemunho de que não somos obcecados por riquezas, nem controlados por Mamom, como acontece na maior parte do mundo. É um testemunho que pertencemos a uma causa muito maior que nós mesmos, para a qual disponibilizamos nossas posses. É um testemunho de nossa liberdade em Cristo, que Jesus nos transformou para que possamos dar liberalmente e com alegria.

 

Vida da Igreja durante o lockdown

28. Para o corpo de Cristo, isso é mais uma oportunidade que uma ameaça. A cristandade já enfrentou inúmeras pragas e pandemias antes. Sobreviveu a incêndios e inundações, desastres naturais e econômicos, períodos de intensa hostilidade, perseguições sistemáticas. Outras religiões emergiram e ressurgiram tentando dominar ou exterminar a fé cristã. Ela já foi, também, acusada de ser a causa dos mais diferentes males do mundo.

O oponente mais recente que surgiu é o hedonismo e, com ele, o crescimento sem precedentes de riqueza e qualidade de vida (apesar de atualmente isso estar em xeque). Não se pode deixar de mencionar que, com muito frequência, a própria idolatria dos cristãos e a influência do mundo são ameaças poderosas!

No entanto, aqui estamos, como representantes de um terço da população mundial, mantendo-nos firmes.

A Igreja enfrentou a inimizade do mundo, a fraqueza da carne e a fúria do diabo, e, depois de tudo isso, ainda estamos de pé. É possível afirmar que, na maioria das vezes, o corpo de Cristo não apenas atravessa essas tempestades, como também se torna mais forte ao passar por elas. A Covid-19 nunca será o fim da Igreja. Se aproveitarmos a oportunidade diante de nós, e nos movermos no amor de Jesus e no poder do Espírito, este pode ser um capítulo para refinar, prosperar, crescer e espalhar. A escolha é nossa.

29. O corpo de Cristo é um movimento, feito de pessoas, não um conjunto de prédios temporariamente vazios. Olhe para a vasta maioria de lugares em que a Igreja está de forma saudável reproduzindo-se.

Os movimentos populares são os canais pelos quais as boas novas são transmitidas com mais fidelidade, e pelos quais os discípulos são feitos com mais eficácia. Quando a Igreja se torna uma instituição, o crescimento numérico pode ser freado, e o crescimento espiritual pode ficar preso dentro dos limites de infraestruturas organizacionais cada vez mais sofisticadas.

Não é à toa que os movimentos de plantação de igreja mais dinâmicos no mundo hoje são mais parecidos com as igrejas do Novo Testamento do que com catedrais majestosas e construções em cavernas de muitas congregações da cristandade. A Covid-19 tem mostrado a todo mundo que a essência da Igreja não está nas estruturas físicas, mas em pessoas que cumprem a sua palavra e estão cheias do seu Espírito.

No Ocidente pós-cristão, há lições para nós, se tivermos ouvidos para ouvir. O aumento da antipatia em relação à religião organizada, o declínio econômico, uma geração mais jovem sem perspectiva e congregações desconectadas da realidade da comunidade local são realidades que podem demandar da Igreja uma transição mais rápida para que ela seja uma rede de relacionamentos em vez de uma instituição engessada. Em face de pandemias, dissolução da sociedade, crises econômicas e até perseguição contínua, esses modelos que se assemelham à Igreja primitiva mostram-se mais efetivos. Pode até parecer de mau gosto fazer estas comparações, mas, nos próximos tempos, as igrejas mais condizentes com a realidade se parecerão mais com o modo como as pessoas seguem Jesus no Irã ou no Vietnã do que como o fazem nos EUA ou na Austrália.

30. Nossa quarenta versus o Exílio de Israel. Uma das oportunidades mais preciosas para a Igreja durante esta pandemia global é a de banir nossos ídolos religiosos e reformar a maneira de vivermos. As doze tribos não conseguiam desvencilhar-se da idolatria – pelo menos até serem levadas a terras estrangeiras na condição de cativos e exilados. Após o retorno do exílio, parecia que a idolatria havia sido completamente erradicada – a palavra ídolo não aparece sequer uma vez nos quatro evangelhos. Ela é citada pela primeira vez no sermão de Estevão (Atos 7), texto em que o exílio é atribuído de forma clara à idolatria de Israel. Não estou fazendo aqui nenhuma conexão direta entre a idolatria do povo de Deus hoje e Covid-19, como se a pandemia fosse um flagelo de Deus. Certamente, o que quase todos temos experimentado é o posto do exílio – estamos presos em nossas casas em vez de termos sido retirados delas –, mas provavelmente concordemos que, na maioria das culturas, a idolatria é um problema real de uma forma ou de outra.

Como, na Igreja, tudo vira de cabeça para baixo e é completamente chacoalhado, temos diante de nós a chance de recolocar as coisas no prumo, de rever como construímos juntos essa vida cristã comunitária, e como nossas prioridades estão refletindo as do Reino dos Céus.

31. O fim das megaigrejas? Já havia sinais de que “a era das megaigrejas” estava chegando ao fim. Sempre haverá grandes igrejas na maior parte dos países – e algumas serão cada vez mais fortes e, de fato, têm um impacto positivo na comunidade. Mas a demografia do cristianismo – e mais especificamente, a demografia do pós-cristianismo – parece apontar para um rápido declínio do modelo de igreja orientada para o “consumidor”. Megaigrejas sem programas consistentes de reuniões em células (grupo pequenos) em sua estrutura eclesiástica podem sofrer muito para se recuperar da Covid-19, isso da perspectiva da lealdade eclesiástica. Frequentadores anônimos migram facilmente para um modelo de adoração on-line em suas casas, da mesma forma que, em um clique, pulam para a transmissão de outro culto ao vivo em suas telas.

Quanto do desafio às ordens de interrupção de reuniões presenciais está relacionado à necessidade de algumas igrejas de manter o fluxo de contribuições financeiras por conta da formidável estrutura física e dos programas que disponibilizam? Quanto disso é mais a prepotência de um pastor sênior que não aceita se submeter ao que um governo secular diz?

Ninguém sabe ao certo como será a vida da igreja em 2021. No entanto, é esperado que um número significativo de igrejas atravesse problemas financeiros ao insistir em manter – sem sucesso – práticas e estruturas físicas de uma época que ficou para traz e que não farão mais sentido na pós-pandemia. Obviamente, isso não se aplicará exclusivamente às megaigrejas, mas a crise decorrente da pandemia de Covid-19 provavelmente continuará acelerando o declínio desse modelo.

32. Desobediência civil. Alguns de nós (mas espero que poucos) ficariam chocados que nem todos os cristãos desfrutam das mesmas liberdades que temos em nossas nações. Outros de nós podem ficar chocados que muitos cristãos não têm ideia da intensidade da perseguição religiosa que existe em outros lugares. Mas a verdade é que 260 milhões de fiéis passam por perseguição, intimidação e restrições por conta de como manifestam sua adoração. Algumas vezes, essas restrições são impostas pelos governos por meio de leis e de fiscalização, e algumas vezes elas são impostas por um segmento religioso majoritário não cristão (incluindo o ateísmo). Muitos no Norte global não têm ideia do que é pagar um alto preço por seguir Jesus. Durante esta pandemia, estou observando o relacionamento entre Igreja e Estado ao reder do mundo com alguma preocupação, e eu não sei ao certo como fazer uma análise. De um lado, é preocupante ver a maneira como certos governos aproveitam-se desta oportunidade para reprimir a Igreja, seja sutilmente ou com mais dureza. De outro lado, é preocupante ver como alguns cristãos estão determinados a ignorar políticas governamentais e desafiar ordens para não realizar reuniões presenciais. Estou certo que alguns deles já recitaram 1 Samuel 15.23 antes. Além disso, é desconcertante ver o assustador efeito da secularização: os cristãos e as igrejas são cada vez mais marginalizados no Ocidente pós-cristão. No entanto, também é desconcertante ver isso enquadrado pelos crentes como uma “guerra contra a religião”, como se eles estivessem na Coreia do Norte ou Arábia Saudita em vez de nos Estados Unidos ou Reino Unido.

Como reagir e o que dizer quando nossos governos eleitos democraticamente, em nome da segurança pública, proíbem os cristãos de se reunir para o culto? Qual a maneira correta de reagir quando pontos de venda de maconha, lojas de bebidas e clínicas de aborto são considerados “serviços essenciais”, mas as igrejas não? Quando nos submetemos às autoridades conforme Romanos 13.1-5 e quando não? É possível anunciar que “nossos edifícios podem estar fechados, mas a igreja está viva” e, ao fazê-lo (corretamente), afirmar que Igreja não se trata de prédios, mas também trabalhar para que esses mesmos edifícios sejam abertos o mais rápido possível, ou mesmo desafiar a lei para nos reunirmos neles? Não há respostas fáceis. Vemos que diferentes tipos de pessoas, em diferentes tipos de igrejas, em diferentes países e culturas, lidam com isso de diferentes formas. O que quer que façamos, devemos fazer segundo o caráter de Cristo. E, se isso não é possível, então provavelmente não deveríamos fazê-lo.

33. Levante o teto, não abaixe o piso! Há uma rápida e não intencional consequência no fato de a Igreja ter passado para um funcionamento virtual durante o coronavírus; a mesma da revolução digital na vida da Igreja em geral, ou a mesma consequência de estruturar a experiência de adoração por meio de técnicas de marketing e vendas. Originalmente, eram bons os motivos para tentar tornar a participação na vida da Igreja o mais fácil possível. Mas a acessibilidade sem esforço significa que o entretenimento espiritual, em vez do discipulado ativo, torna-se o padrão para muitos – especialmente nas maiores igrejas.

O cristianismo não é um esporte para espectadores, e alguns pontos contribuem para tornar a participação passiva como norma: ministrar nivelando o ensino de acordo com quem tem pouco ou nenhum conhecimento bíblico, conveniência do anonimato em grandes congregações, transmissões unidirecionais e facilidade de ingresso e saída da vida da Igreja no ambiente digital. O ditado “What you win them with is what ou win them to” [“Com o que você os conquista é para o que você os conquista”] soa mais verdadeiro que nunca. Que tipo de discípulo nossa estratégia digital está produzindo? Certamente, existem discipulados robustos no ambiente digital, mas, para isso, nossas igrejas e ministérios precisam desejam seguir tal direção. Um amigo meu, durante o lockdown, iniciou um Santo Clube virtual tendo como referência o rigoroso programa de discipulado dos irmãos Wesley.

A forma como avaliamos a vida da igreja e o impacto do ministério mostra a tendência que temos para, em vez de elevar o teto, abaixar o piso – nossas estatísticas baseiam-se em “participação” numérica na celebração, cliques em nossa página na web, e alguém que foi “evangelizado” ou “alcançado”. Um emoji de polegar para cima conta como uma alma conquistada por Cristo. Já ouvi a frase “milhões incontáveis” como descrição do alcance de eventos cristãos on-line recentes de larga escala.

Não caia no jogo de igualar número de cliques a almas. Não confunda quantidade com qualidade. A tentação de sermos generosos além da conta com nossas próprias estatísticas está sempre ao redor, bem como a tentação de apresentarmos a nós mesmos e nossos ministérios como algo além do que realmente é. Não podemos permitir que tal falsidade mundana se infiltre em nosso pensamento. Isso nunca leva a bons resultados no Reino. As igrejas com crescimento notável ao longo da história normalmente são as que mantém a autocrítica em alto nível.

34. A pandemia não precisa frear o evangelismo e o alcance da mensagem. As iniciativas realizadas com bom senso e sensibilidade, aliás, têm um poder muito grande neste momento [em que as pessoas, de forma geral, estão mais vulneráveis]. Existem inúmeros recursos de divulgação digital disponíveis para os cristãos que desejam comunicar a mensagem do evangelho, a começar, é claro, pelo simples compartilhar de histórias, músicas ou filmes inspiradores com amigos e familiares não cristãos. Mas há outras inúmeras formas muito envolventes e explícitas de fazer divulgação digital das boas novas de Cristo. [Conheça aqui a abordagem cronológica para a apresentação do evangelho.]

Vale mencionar também que muitos de nós moramos em lares ou famílias que incluem não crentes. Alguns de nós, também, vivem e trabalham em ambientes onde ações sensatas podem ser realizadas mesmo em tempos de distanciamento social. Em vários países, o bloqueio é menos abrangente, ou está começando a ser flexibilizado. Dentre as boas iniciativas está a da organização African Enterprise, que tem um programa para evangelismo nos lares. É claro que, como sempre, tais modelos podem e devem ser adaptados ao contexto local para serem mais eficazes.

35. Repensando nosso ativismo. O velho ditado que nos lembra que somos seres humanos, não fazedores humanos, precisa ser regatado quando muitos de nós começam a ficar inquietos com a ordem: “Fique em casa”. A definição da Operation World do termo evangélico baseia-se no quadrilátero de Bebbington, e vale a pena notar que, nas próprias palavras de Bebbington, o agir é um dos quatro lados indispensáveis ​​dessa forma. Com isso, ele quer comunicar que a fé cristã evangélica extrapola a ortodoxia teológica – nossa fé nos obriga a viver de maneira que nossas ações reflitam nossas crenças. Contudo, a ocupação frenética que a vida da igreja evangélica impõe a seus frequentadores reflete uma ênfase no ativismo, ainda que essa ênfase (ou até mesmo obsessão) não se traduza em ações que vão além da congregação, da comunidade local, e alcancem uma parcela mais ampla do mundo. Quando nossas vidas estão sujeitas a uma parada forçada (um sábado!), nosso evangelicalismo sofre uma crise existencial? Se nossa prática religiosa não sabe lidar com um tempo em que devemos obedecer à instrução do Salmo 46.10 – “Aquietem-se e saibam que eu sou Deus!” –, então talvez ela também precise ser recalibrada.

 

Sobre o autor
Jason Mandryk é canadense – fez seu mestrado em Estudos Cristãos Globais no Providence Theological Seminary –, mas vive na Inglaterra. Ele trabalha com a publicação Operation World, literatura cristã que compila pesquisas e dados de países em todo o globo e também um guia de oração. Inicialmente foi coautor e agora é o autor.

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