Transmissão Global, Missão Global (Parte 1/6)

O impacto e as implicações da pandemia de Covid-19: “Prefácio” e “Adentrando o desconhecido”

Jason Mandryk

O conteúdo a seguir é a primeira de seis parcelas do e-Book de mesmo título publicado pela Operation World. Foi originalmente escrito em inglês, e o Martureo recebeu autorização para traduzir para o português e republicar o material.

 

Reconhecimentos

Sou grato.

Ao time da Operation World por ceder material e me ajudar enquanto eu mergulhava mais e mais fundo em um projeto paralelo que consumia cada vez mais meu tempo. Sua diligência em manter as coisas funcionando foi imprescindível, e como tem sido valioso nosso tempo virtual de oração.

A todos que submeteram material de intercessão para ser publicado em nosso site “Local de oração Covid-19” (e a Arley e Johnathan por desenvolvê-lo). É nosso privilégio caminhar ao lado desses nossos irmãos e irmãs e levantar suas nações em intercessão junto ao trono da graça.

Às muitas pessoas ao redor do mundo que ofereceram contribuição substancial e percepções incríveis, geralmente em curto prazo. Sem vocês, este documento seria apenas um compêndio sobre minha própria perspectiva não refinada, e por isso eu – bem como outros que lerem isto – agradecemos por terem evitado um resultado assim.

À All Nations Christian College, família e amigos por proporcionarem um senso de conexão e de comunidade tão satisfatórios neste tempo estranho.

 

Prefácio

Este trabalho escrito começou originalmente como um fluxo de oração. Ao serem decretados lockdowns nos países de membros da equipe da Operation World, iniciamos a prática de realizar reuniões on-line de oração pelas nações. Estávamos seguindo o calendário de oração da OW (http://operationworld.org/prayer-calendar), que possibilita às pessoas orar por todas as nações ao longo de um ano. Devido à urgência e à severidade da crise da Covid-19 em muitos países, sentimos que seria bom orar a respeito dessas necessidades específicas. A melhor forma de fazer isso, claro, era ouvindo os crentes em seus contextos: pastores locais, professores, pesquisadores, intercessores e missionários. O mesmo tipo de público que é imprescindível em nosso processo de publicação de todo o material de oração da OW.

Começamos a receber sugestões desses irmãos e irmãs, e sentimos que não deveríamos manter esse valioso e oportuno material de oração restrito a nós. Começamos, então, a postar em nossa página no Facebook, e mais e mais pessoas solicitavam uma forma de acessar o conteúdo sem a necessidade de se fazer login em um ambiente específico. Pois bem. Nossos bons amigos Arley e Johnathan prontamente transformaram esses tópicos de oração em um site, o http://covid-19.operationworld.org/.

Como resultado no novo site e do material que nele há, fui desafiado a elaborar um pequeno artigo sobre como a Igreja ao redor do mundo – e a missão no mundo em particular – vinha sendo afetada pela pandemia global que se descortina. Ao trabalhar naquele artigo, comecei a processar uma porção de pensamentos, sentimentos e convicções que me vieram à tona enquanto eu destrinchava inúmeros artigos, reportagens, análises, testemunhos e pedidos de oração.

Como muitos de nós, tenho lido vorazmente até tarde, e minha compreensão a respeito de doenças zoonóticas, epidemiologia, políticas de saúde pública, flexibilização quantitativa, gestão de cadeia de suprimentos etc. passou de parcialmente rasa a perigosamente sofomórica.

No entanto, a OW tem o privilégio de estar conectada com líderes cristãos e redes internacionais nas esferas de missões, pesquisa, oração e afins, envolvendo pessoas de praticamente todos os países da Terra. Fomos capazes de compilar uma impressionante variedade de conhecimentos e informações de nossos irmãos e irmãs em Cristo – uma visão global de um corpo global.As três redes com as quais temos uma conexão mais próxima são International Prayer Connect (Conexão Internacional de Oração), Lausanne Movement (Movimento de Lausanne) e World Evangelical Alliance (Aliança Evangélica Mundial) – em especial suas respectivas comissões de missões. Falando sobre o mundo! As perspectivas compartilhadas por nossos irmãos nessas redes desafiam nossas suposições, ampliam nossas percepções, expandem nossos horizontes, expõem nossos preconceitos ligados à cultura e ampliam nossa fé. Como é bom ser parte de uma família global!

Confesso que falhei em produzir um artigo que não ultrapassasse o limite de palavras e antes do prazo – havia simplesmente muito a acrescentar. Foi quando surgiu a ideia de fazer um e-Book. Vale ressaltar que a ideia inicial era a de um artigo opinativo, não a de uma dissertação acadêmica ou um livro a ser publicado, e o resultado final reflete isso.

Nem tudo sobre o que escrevo é obviamente relacionado a missões ou missão, pelo menos não em sentido imediato. As publicações da OW são endereçadas não apenas aos que lidam com missões, mas também ao ambiente eclesiástico de forma mais ampla, bem como aos que se interessam pelo contexto religioso, e tratam de realidades nos terrenos social, econômico, político e demográfico de todos os países. Na forma como oramos, e também em como fazemos o trabalho no Reino, vemos todos esses elementos conectados de alguma forma. A OW sempre atuou como um ponto de convergência dos movimentos de oração, pesquisa e missões. Portanto, esta é uma tentativa de compilar algo que ofereça uma visão holística de como a fé e a prática cristãs e o coronavírus estão conectados.

É inevitável que o resultado seja incompleto e subjetivo. Está limitado à minha capacidade de articular meus próprios pensamentos, e, portanto, não necessariamente representa a posição da Operation World como organização. Alguns deles podem ser desafiadores, ou até mesmo ofensivos, a algumas pessoas. Em uma situação de mudança contínua, boa parte do que escrevo agora pode se tornar obsoleto na medida em que a situação se desenvolve ao longo das próximas semanas e meses. No processo, eu era constantemente atraído pelas perguntas que Brian Mills, um mentor em intercessão, ensinou-me a fazer: “O que Deus está dizendo com tudo isso?” e “O que Deus quer realizar por meio de tudo isso?”. Foi bom lembrar de 1 Tessalonicenses 5.21: “Ponham à prova tudo que é dito e fiquem com o que é bom”. E, por ter lido Jó recentemente, cuidadosamente evitei tentar responder à pergunta “Por quê?”.

Portanto, submeto com cautela uma lista numerosa de observações sobre o impacto que o coronavírus pode ter no futuro da Igreja e da missão. Estou certo que mais pesquisas e edições melhorariam o resultado fianl. Também estou convencido que daqui a dois dias vou me penitenciar dizendo: “Como pude deixar isso de fora?”. Melhor um imperfeito mas entregue trabalho que um ideal mas não acabado, pensei.

A própria tentativa, ainda que incompleta, de reunir todos esses tópicos foi um processo incrivelmente útil e gratificante para mim. Espero que o resultado também seja útil para você.

 

Adentrando o desconhecido

“Nosso mundo mudou para sempre.”

Todos provavelmente viram tais palavras no primeiro quadrimestre de 2020. E, ainda que elas cheirem a hipérbole, presenciamos como um pequeno vírus se tornou o veículo por meio do qual o mundo tomou uma grande sacudida.

Há indiscutivelmente certo grau de loucura no ato de escrever a respeito de um assunto tão complexo enquanto os eventos ainda estão se descortinado, enquanto as reações de governos, igrejas e missões estão acontecendo.

No entanto, vale a pena um exame cuidadoso, e uma resposta repleta de oração – não apenas uma vez, mas regularmente. Se os órgãos governamentais se reúnem diariamente para avaliar e elaborar respostas à Covid-19, então os que estão no ministério em tempo integral provavelmente precisarão de uma abordagem que exija um reengajamento contínuo com os intermináveis ciclos de rápidas mudanças no mundo.

 

1. Nós simplesmente não sabemos. Nós não sabemos tudo o que há para saber sobre o vírus Sars-CoV-2 e sobre a doença Covid-19 a ele associada. Esse tipo de vírus é chamado novel (novo) coronavírus por uma razão – ele é novo por definição. Foi apenas no início de 2020 que as pesquisas médicas nos deram os primeiros fatos verificáveis sobre o vírus e como ele se espalha. Tem sido bem documentado que se trata de um vírus confuso em um tempo confuso. Temos ainda ouvido que mutações subsequentes têm alterado a cepa original. Ainda não há clareza no momento sobre uma vacina ou cura próximas. Podemos fazer previsões, mas ninguém pode afirmar com certeza como o mundo vai mudar nos 12 meses seguintes por conta da Covid-19. Prognósticos e profecias são um campo arriscado quando mudanças tão profundas têm acontecido tão rapidamente. No intervalo em que este artigo é escrito, [traduzido, republicado] e você o lê, a situação já terá mudado de forma significativa. E depois mudará novamente. Alguns países parecem já estar do outro lado do pior disso tudo, com comércio, escritórios e igrejas reabrindo. Contudo, ouve-se a respeito de segundas ondas, cepas mais violentas e danos permanentes à saúde dos sobreviventes. Se os melhores virologistas, epidemiologistas e economistas do mundo não sabem como serão as coisas daqui a alguns meses a partir de agora, quem sabe?

 

2. Correção de curso. A (predominantemente ocidental) narrativa de um progresso ininterrupto sofreu um sério, mas provavelmente não fatal, golpe. A despeito da tendência macabra da mídia para noticiar desastres e conflitos, o florescimento humano teve uma corrida incrível na maior parte do mundo nos últimos 25 anos. No entanto, somos sempre vulneráveis a Guerras, eventos climáticos, catástrofes da natureza e pandemias são os mais frequentes agressores, por vezes atravessando o progresso humano por gerações. Devo lembrar, contudo, que nosso “progresso” sem aparentes restrições muitas vezes leva-nos a direções às quais não necessariamente deveríamos ir.

Tais contratempos forçam-nos a mudar, a repensar (também conhecido como “arrepender-se”). O novo coronavírus será visto como um dos eventos do tipo divisor de águas, que permitem que nossas civilizações rebeldes façam correções essenciais de curso? É certamente uma oportunidade para modificar nossos caminhos e moldar um futuro que seja mais limpo, justo e bondoso. Até mesmo Deus demonstrou vontade de “destruir o que edificou e arrancar o que ele plantou” (Jr 45.4).

 

3. Não retorno ao normal, porque o que tínhamos antes, não importa o que seja, não era normal. Há aspectos de nossa maneira antiga de viver que nós simplesmente não queremos de volta! Se estávamos confortáveis com tudo exatamente como era, então provavelmente necessitemos de uma séria soldagem da alma. Existem reais oportunidades para que sejam alavancadas mudanças positivas em meio a agitação atual de forma a trazer benefícios a nossas vidas, nossas comunidades e nossas sociedades. Ao que retornaremos após tudo isso, não será mais como era, mas poderia ser mais como deveria ser.

Temos ainda de considerar a possibilidade de que não será alcançada a chamada imunidade de rebanho, e não teremos em breve uma vacina, nem a cura, em um horizonte próximo. Ondas após ondas de mutações e devastações econômicas poderiam nos manter no contrapé nos próximos anos. Nesse caso, estaríamos vendo mudanças muito mais profundas na civilização humana do que as que tínhamos antecipado no início dessa pandemia. Alguns aspectos da vida serão muito parecidos com nossas expectativas e experiências passadas, e seremos gratos por isso. Mas outros aspectos podem ser significativamente – e permanentemente – diferentes.

 

4. Se não podemos saber a respeito do futuro, como nos planejamos para ele? Líderes de negócios têm chamado atenção para a importância de conceitos como agilidade, pronta resposta e uso racional de recursos escassos há anos. A destruição do mito de que estamos no controle é uma lição dolorosa, mas potencialmente redentora, em particular para o Norte global. Isso é verdade não apenas para a sociedade secularizada, mas para nossa abordagem no ministério cristão. Podemos acabar paralisados por nossas sofisticadas estratégias de longo prazo que nos envolvem, mas podemos aprender com nossos irmãos e irmãs no Sul global (grosso modo, com algumas exceções, o Sul global compreende as nações da África, boa parte da Ásia e América Latina, enquanto o Norte global compreende Europa, América do Norte e Oceania). Por necessidade, muitos deles há muito caminham nas estradas de escassez e de necessidade de se adaptar continuamente. Eles têm experiência em como sobreviver em meio a situações extremas.

A cosmovisão da cristandade assume que estamos segurando o poder e que podemos viver toda a nossa vida de maneira planejada. Da próxima vez que desejarmos que nossos parceiros “mais fracos” sejam melhores em planejar e implementar, vamos nos lembrar que somos tão inábeis em enfrentar a imprevisibilidade como eles são em planejar na estabilidade.” (Stan Nussbaum, Global Missiology Journal, Vol. 3, No  17 (2020))

 

5. Fatos importam, assim como verdades importam. Encontrei relatórios (de saúde pública, de ministérios de igrejas, de organizações missionárias transculturais) nos quais há exemplos anedóticos projetados em generalizações globais. É muito simplista assumir que o que observamos em nossa pequena porção “tamanho de bolso” do mundo seja verdade em todos os demais lugares da mesma forma. Essa atitude é, na melhor das hipóteses, um pensamento falacioso, e, na pior, incentiva e encoraja o etnocentrismo ou o nacionalismo idólatra. Além disso, não é só porque esperamos algo por longo tempo, e até mesmo oramos fervorosamente por isso, que vai se tornar verdade. Não devemos falar a respeito de algo como verdadeiro até que saibamos que é verdade. As pessoas que pertencem à Verdade devem evitar essa classe de tentações gêmeas: generalizações e tratamento “evangelástico” dos fatos. Falsificar, ajustar ou mesmo ignorar dados a fim de parecermos melhores, grandiosos e mais sábios tem sido uma estratégia do inimigo desde o Éden. Pensamento positivo não é o mesmo que fé bíblica, e o evangelho jamais é ameaçado pela verdade. Fatos, não especulações, pertencem realmente ao Reino de Deus.

 

6. Um único tamanho não cabe em todos, então não tente colocar todos na mesma caixa. Reações e respostas ao mundo que está sendo sacudido e precisa ser reinventado serão tão variadas quanto o número de pessoas envolvidas. Pintar todos com o mesmo pincel prejudica-nos. Alguns apoiarão as políticas governamentais, outros as condenarão. Alguns entrarão em pânico e desespero, outros manterão a linha com determinação ferrenha. Alguns enterrarão a cabeça como avestruzes, outros disseminarão teorias da conspiração destrutivas, e outros ainda aprenderão vorazmente. Alguns promoverão iniciativas comunitárias incríveis, outros acumularão de forma egoísta. Alguns encararão o confinamento como uma oportunidade fantástica de discipulado, enquanto outros desconstruirão sua fé. Cristãos de piedade equivalente tratarão a Covid-19 e falarão sobre as causas da pandemia de forma completamente divergente. Alguns brilharão como estrelas, enquanto outros perderão qualquer testemunho que tenham.

 

Sobre o autor
Jason Mandryk é canadense – fez seu mestrado em Estudos Cristãos Globais no Providence Theological Seminary –, mas vive na Inglaterra. Ele trabalha com a publicação Operation World, literatura cristã que compila pesquisas e dados de países em todo o globo e também um guia de oração. Inicialmente foi coautor e agora é o autor.

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