Às vezes o Líbano é atraente! Ao se aproximar da costa libanesa, quando o avião está tomando posição para aterrissar, as lindas montanhas brotando tão perto do mar cristalino cativam sua atenção. Ao subir de carro, enfrentando a ventania pelas estradas das montanhas do vale de Kadisha, você é surpreendido pelas belezas naturais fantásticas em cada curva, à medida que o vale lá embaixo se apresenta, revelando igrejas antigas e mosteiros escavados na rocha. Então, depois de mais uma curva, aparece diante de você, como uma revelação mística em toda sua majestade, a reserva florestal de cedros de dois mil anos que se eleva orgulhosamente como a única vegetação sobrevivente nessa altitude. Se continuar subindo, você chega ao topo da serra; então, de repente, quando toda a extensão do vale de Bekaa revela-se adiante, o cenário quase o deixa sem fôlego. Mesmo à noite, sentado no meu terraço olhando de cima as luzes da cidade de Beirute, imaginando o Mediterrâneo escuro e misterioso no fundo, posso ser arrebatado pela serenidade idílica da cidade adormecida. Acredite, de acordo com a maior parte dos livros de turismo, você até pode esquiar pela manhã e dar um mergulho no mar à tarde no mesmo dia! Sem falar, é claro, de nosso húmus e do tabule que alcançaram reputação mítica!
Mas se observar com atenção de dentro do avião enquanto aterrissa, você também vai perceber as minúsculas estruturas ilegais que pontuam a costa, pertíssimas do aeroporto e tão próximas do mar que, de tempos em tempos, uma delas desaba sobre seus ocupantes. Se tiver a sorte de conseguir cruzar a cidade em menos de duas horas, vencendo o tráfego sufocante, ainda pode desfrutar do cenário das montanhas, desde que aquelas pedreiras de onde extraem areia e rochas não desmoronem e o atinjam em cheio quando estiver dirigindo em meio à vegetação e à terra devastadas nos flancos das montanhas. Quando você entra na vida real, se está aqui para um período longo ou simplesmente aconteceu de ser um libanês que nasceu aqui, são as dificuldades diárias para conseguir as pequenas comodidades como água e eletricidade, aquelas contas que você tem de pagar em dobro, este estado dentro do estado, aquela micro rede de segurança que você construiu à sua volta, que cansam… É a internet lenta, os serviços de telefonia móvel ridiculamente caros, a loucura do trânsito, a falta de respeito às leis, a ausência de qualquer senso de um bem comum, as altercações intermináveis de nossos políticos, as bombas pelas ruas, o afluxo de mais de um milhão de refugiados, as injustiças diárias, e só comecei minha ladainha e vou parando porque há também o grande húmus…
Não escolhemos o lugar em que nascemos. Muitos não têm oportunidade de partir. A maioria dos que a tiveram já partiram. Há cerca de três vezes mais imigrantes libaneses pelo mundo do que habitantes no Líbano. Há dois tipos de libaneses vivendo no Líbano: os que (ainda) não tiveram oportunidade de sair e os que resolveram ficar por uma causa. Se você podia sair, mas não saiu, então escolheu permanecer. Minha família e eu pertencemos a essa segunda categoria, pelo menos por enquanto… Bem, meus filhos não têm escolha. Um dia terão de tomar a própria decisão. Mas descobri com o passar dos anos que se a permanência faz algum sentido, isso deve ser fundamentado por uma “teologia da permanência”.
Ora, a teologia da presença é um tema que vem sendo explorado até certo ponto na espiritualidade e também no ministério cristão. A presença de Deus conosco por meio de seu Espírito, por sua vez, inspira nosso ministério encarnado junto a outros seres humanos. Tais pensamentos podem ser simples. São diretamente inspirados no modelo encarnacional de Jesus, que viveu ao lado dos pobres e marginalizados da sociedade. Jesus andou com os necessitados (leia-se: os que reconheciam as próprias necessidades) na caminhada deles rumo à liberdade interior, liberdade do pecado, rumo a uma proximidade maior de Deus. Eles descobriam a paternidade divina quando experimentavam o que era serem seus filhos (2 Co 5.19). Deus, então, por sua presença contínua entre nós, manifestado de maneira poderosa e histórica em Cristo, é nosso grande modelo de presença encarnada quando procuramos servir nossos irmãos e irmãs no mundo à nossa volta. Mas se pensar teologicamente na presença é decorrência quase direta da Bíblia, que dizer de uma teologia da permanência? Se é importante ter um fundamento sólido para Estar em algum lugar, parece igualmente importante também compreender por que permanecemos.
Permanecer não é uma palavra muito animadora quando a sociedade parece estar desmoronando à sua volta. Quem deseja permanecer quando não se pode ter certeza de que você não será um dos que vão estar passando pela próxima bomba armada na rua? Sei que posso escrever um livro sobre isso, mas neste momento só quero partilhar quatro ideias que me vêm à mente e podem ser os componentes iniciais de uma “teologia da permanência”. Antes disso, porém, deixe-me só acrescentar uma breve ressalva: este post não pretende, de modo algum, condenar os que sentem que Deus os dirige no sentido de se afastarem de um lugar de conflito ou dificuldade, também não minimizo a tragédia de ser refugiado (com frequência a alternativa à permanência). No final do dia, permanecer ou partir sempre será uma decisão subjetiva que nenhum estranho pode julgar. Mas para qualquer um que esteja enfrentando o dilema, apresento algumas ideias que podem ajudá-lo na busca da orientação divina.
Primeiro, uma teologia da permanência está enraizada numa confiança fundamental em Deus. Ela reflete o reconhecimento de que Deus é o Senhor de tudo, que minha vida pertence a ele de A a Z; que sou basicamente mordomo dela. Claro que sou convidado a desenvolver um senso sadio de posse sobre minha vida, algo que me motive para cuidar dela e lhe dar alguma estrutura e ordem razoável, mas nunca vou conseguir realmente “salvá-la”. Jesus diz assim: “quem quiser salvar a sua vida perderá; mas quem perder a sua vida por minha causa, este a salvará. Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder-se ou destruir a si mesmo?” (Lc 9.24-25). Há riscos por toda parte, não importa onde vivemos. Corro riscos quando atravesso uma rua na Suíça, mas lido com esse risco porque sei que é mais seguro atravessar no verde do que no vermelho! Não nos livramos dos riscos, nós os administramos.
Segundo, uma teologia da permanência é baseada numa crença fundamental no valor igualitário de todas as vidas humanas. Sempre considero um tanto insultante quando os estrangeiros fogem do país no primeiro voo, toda vez que a segurança torna-se precária no Líbano. Quando membros bem-intencionados de ONGs e organizações missionárias, que chegaram numa delegação para oferecer apoio físico e espiritual aos necessitados, só conseguem ou se dispõem a fazê-lo em tempos de paz e estabilidade, isso se torna um pouco desmotivador para os que precisam ficar. Num nível profundo, partir em tempos de grande necessidade comunica aos que permanecem — inadvertidamente, sem dúvida, — uma mensagem clara: “minha vida é mais valiosa que a sua”. Assim, uma teologia da permanência afirma fundamentalmente: “minha vida é tão valiosa quanto qualquer outra vida, nem mais, nem menos”.
Terceiro, uma teologia da permanência está enraizada numa aceitação madura da natureza misteriosa do mal. Fugir é capitular a uma cosmovisão branco e preto. Ela desconsidera a fonte do mal, negando-se a enfrentar as questões difíceis por trás das razões do perigo. “As pessoas à minha volta são más e elas fazem coisas más; portanto preciso partir”. Talvez uma das lições mais cruéis do horroroso conflito sírio seja que não oferece nenhuma clareza quanto aos “bons” e os “maus”. Quem são os refugiados libaneses que estão fugindo e qual ou quem é o mal que os expulsa? Será que realmente preciso permanecer para descobrir?
Isso me leva ao quarto princípio muito relacionado com o terceiro: uma teologia da permanência é realista no reconhecimento da natureza totalmente abrangente do pecado. Se fosse fugir, de que estaria fugindo, uma vez que estou desesperadamente interligado à humanidade produtora de todo esse mal que tanto me aterroriza? Há pouco tempo alguém me disse, visivelmente muito confuso: “Conhecemos Bashar… ele é o mau elemento! Mas quem são os bons? Quem apoiamos nesse conflito?” Mas talvez seja essa cosmovisão simplista de “mocinho / bandido” que estimula o mal que continua atormentando nossa humanidade. Dessa perspectiva, sempre somos os “mocinhos”, claro. Se nos livrarmos deles, o bem prevalecerá. E faremos isso tudo em nome da moralidade e do bem maior. Mas não seriam essas afirmações o argumento que constitui a retórica da guerra?
Não é possível que um entendimento mais sadio e maduro do pecado e do mal só possa ser encontrado em trilhas menos certas e menos batidas? Ou talvez eu esteja mais perto de compreender isso quando me olho no espelho. Onde fica minha parte em tudo isso? Sou um mero espectador? Uma vítima dos maus? Minha teologia da permanência me diz que sou parte intrínseca do problema e, portanto, minha única opção é permanecer e arcar com minha parte da responsabilidade. Isso me insta a uma busca incessante por alguma solução, juntamente com todos aqueles que também desejam fazê-lo.
Martin Accad é libanês, teólogo cristão, professor adjunto de islamismo do Fuller Theological Seminary e diretor do Instituto de Estudos do Oriente Médio em Beirute.