Simplifique: uma resposta ao artigo “As cinco marcas da missão”, de Chris Wright

A missão da igreja é fazer o que só ela consegue fazer no mundo

Chun K. Chung

Definir missão se tornou uma tarefa difícil em nossos dias porque cada um tem a sua própria ideia do que deva ser. Vivemos em uma era de opiniões e de supervalorização da experiência pessoal. Aliada a esse cenário, está a indefinição do missiólogo mais influente no meio acadêmico, o sul-africano David J. Bosch, que diz que missões é algo que “permanece indefinível”, sendo que “o máximo que podemos esperar é formular algumas aproximações do que a missão significa”.[1]

O artigo “As cinco marcas da missão”, de Chris Wright, baseia-se na definição de missão dada pelo Conselho Consultivo Anglicano de 1984 e adotada pela Conferência de Lambeth em 1988 nos seguintes termos:

  1. Proclamar as boas novas do reino;
  2. Ensinar, batizar e treinar os novos crentes;
  3. Responder à necessidade humana com serviço amoroso;
  4. Buscar a transformação das estruturas injustas da sociedade;
  5. Lutar para preservar a integridade da criação e sustentar a vida na terra.[2]

Esse olhar multidimensional da missão proposto pela Igreja Anglicana é apenas um dos reflexos do conceito de missio Dei (missão de Deus). É importante para nossa discussão conhecermos o contexto de onde emergiu. O teólogo suíço Karl Barth formulou a base desse pensamento em 1932, e o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), em sua Conferência Missionária Internacional na cidade de Willingen (1952), injetou-o de vez nas vias sanguíneas da igreja.[3] “Na tentativa de concretizar o conceito de missio Dei, poder-se-ia dizer o seguinte: na nova imagem, a missão não é primordialmente uma atividade da igreja, mas um atributo de Deus. Deus é um Deus missionário.”[4] A partir daí, a compreensão de missão como missio Dei passou a ser amplamente usada, em primeiro lugar pelas igrejas protestantes ligadas ao CMI, ortodoxos orientais, católicos romanos e grupos evangelicais. Nascia assim a divisão entre missão e missões – missões passou a se referir ao trabalho da igreja no plantio de igrejas e na proclamação para a salvação; missão seria tudo o que Deus faz no mundo com ou sem a igreja. Stephen Neill declarou em 1949: “A idade das missões terminou; a idade da missão, começou”.[5]

Chris Wright entende que a palavra missão possui uma grande amplitude conceitual, englobando inúmeras atividades da igreja na missão de Deus:

É por isso que também não gosto daquela velha linha de nocaute que tentou limitar à cerca do ringue a palavra “missão”, significando especificamente o envio transcultural de missionários para evangelismo: “Se tudo é missão, logo, nada é missão”. Seria mais bíblico dizer: “Se tudo é missão, logo, tudo é missão”. É claro que nem tudo é missão evangelística transcultural, mas tudo o que um cristão ou uma igreja cristã é, diz e faz deve ser missionário, numa participação consciente na missão de Deus, no mundo de Deus.[6]

É bíblico e verdadeiro afirmar que a missão é de Deus, mas os proponentes da missio Dei tendem a fazê-lo em detrimento das missiones ecclesiae (atividades missionárias da igreja) porque estão envergonhados dos erros do passado, que igualaram missões à colonização. Muitos missionários da Era Moderna, séc. 19 e início do séc. 20, entendiam que seu chamado era levar a luz da civilização (educação, saúde, eletricidade, ferrovias etc.) às culturas “inferiores” na Ásia, África e Américas. Historicamente, o conceito de missio Dei nasce após o período das duas guerras mundiais que marcaram a desmoralização das nações que pertenciam à cristandade, e, assim, as missões passaram a ser vistas de forma limitada, como instrumento de dominação para as chamadas “terras pagãs”. Por isso, quando se fala de missões ou de missionários hoje, na Europa e em alguns contextos na América do Norte, o sentimento é de desconfiança pelas questões éticas passadas na era da colonização.[7]

Diante desse passado, tornou-se politicamente mais correto dizer que tudo é missão, pois a torna mais palatável aos que estão inseridos em uma cultura pós-cristã, onde os novos tempos requerem uma atualização na maneira arcaica de se fazer missões. Missão como (3) resposta às necessidades humanas, (4) transformação das estruturas de injustiça e (5) preservação da criação soa como música aos ouvidos pós-modernos de crentes e não-crentes. Pela graça comum de Deus, até não-crentes podem realizar essas três ações, mas somente a igreja pode (1) proclamar as boas novas do reino e (2) ensinar, batizar e treinar os novos crentes, e somente pela graça especial de Deus. A missão da igreja é fazer o que só ela consegue fazer no mundo. Os trabalhadores da seara sempre são poucos (Mt 9.37), e a diversificação e a amplificação da tarefa missionária para “tudo o que Deus está fazendo no mundo” divide ainda mais os escassos missionários em tempo integral. Simplifiquemos!

Ao contrário de Bosch, que afirma que não é possível definir missão a partir da Bíblia,[8] temos cinco “grandes comissões” na Bíblia que claramente delineiam, limitam e indicam a natureza da missão:

Marcos 16.15-16: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado.”[9]

Mateus 28.18-20: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século.”

Lucas 24.46-47: “Assim está escrito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém.”

João 20.21:  “Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: ‘Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio’.”

Atos 1.8: “Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra.”

A elaboração do conceito de missio Dei na conferência de Willingen baseou-se apenas em João 20.21, deixando de fora os outros textos da comissão. A missão é vista como sendo nascida na Trindade: Deus pai envia seu Filho, que envia o E.S. e, por fim, envia todos aqueles que queiram participar do processo de reconciliação da criação. Isoladamente, o texto de João 20.21 é muito genérico, dando margem para significar qualquer coisa, especialmente para uma parcela da igreja no mundo que tem vergonha de pregar o Cristo crucificado.

Com base nos textos bíblicos acima, Jesus Cristo nos chama para o ide do kerygma (pregação) de salvação ou condenação, onde novos discípulos serão feitos no ambiente eclesiástico com o ensino e os sacramentos (batismo e ceia) nas realidades local (Jerusalém), nacional (Judeia), junto aos excluídos (Samaria) e junto aos povos que nunca ouviram (confins). Tudo isso debaixo da autoridade de Cristo, na capacitação e na presença do E.S., exclusivamente com aqueles que são obedientes no envio e em serem testemunhas daquilo que Deus fez. A missão da igreja é:

  • proclamar as boas novas do reino (fazer novos discípulos através da pregação e testemunho);
  • ensinar, batizar e treinar os novos crentes (discipulado radical, ensinando a guardar tudo).

Devemos priorizar a missão de proclamar e ensinar, porque daí dependem o socorro aos necessitados, a transformação das injustiças e a preservação da criação. Novos discípulos capacitados pelo E.S. e com fidelidade a tudo o que Cristo ensinou irão melhor socorrer, transformar e preservar. Devemos melhorar a qualidade do discipulado e do treinamento dos novos convertidos, mas não devemos colocar no mesmo patamar as suas ações consequentes, isto é, seus frutos (3, 4 e 5), como sendo a missão da igreja.

 

Sobre o autor
Chun K. Chung é filho de missionários sul-coreanos e radicado no Brasil. Professor de Missões no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper da Universidade Presbiteriana Mackenzie, é Doutor em Estudos Interculturais (Reformed Theological Seminary).

 

[1] BOSCH, David J. Missão Transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002. p. 26.

[2] WRIGHT, Christopher. “As cinco marcas da missão”. https://www.martureo.com.br/as-cinco-marcas-da-missao/

[3] GOHEEN, Michael. Introducing Christian Mission Today: Scripture, History and Issues. IVP Academic. 2014, p. 75.

[4] BOSCH. Missão Transformadora. p. 468.

[5] NEILL, Stephen. História das Missões. São Paulo: Vida Nova, 1989. p. 582.

[6] WRIGHT, Christopher J. H. A Missão do Povo de Deus. São Paulo: Vida Nova, João Pessoa: Betel, 2012. p. 32.

[7] https://www.barna.com/research/young-christians-value-missions/

[8] “A Bíblia não deve ser tratada como um depósito de verdades às quais poderíamos recorrer aleatoriamente. Não há ‘leis de missão’ imutáveis e objetivamente corretas às quais a exegese da Escritura nos daria acesso.” Bosch, Missão Transformadora. p. 27.

[9] As citações bíblicas são da versão Almeida Revista e Atualizada. (N. do E.)

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