Respostas fáceis para perguntas difíceis?
Maomé, o Alcorão e a influência dos textos judaico-cristãos
Marcos Amado
“Para cada capítulo que lemos do Alcorão, precisamos ler três capítulos da Bíblia!” Essa foi a afirmação que, com grande surpresa, ouvi de um experiente e renomado missionário anglo-saxão que havia trabalhado por duas décadas em um país muçulmano. Segundo ele, isso era necessário para que o poder maligno do livro, que é considerado sagrado por mais de um bilhão de pessoas ao redor do mundo, fosse contraposto. Um missionário brasileiro, ao ser perguntado por um muçulmano sobre a opinião que ele tinha do Alcorão, respondeu, sem pestanejar, que o Alcorão era um livro de inspiração satânica.
As percepções acima talvez representem o pensamento de um boa parcela dos evangélicos brasileiros. Além disso, para a maioria de nós, o Alcorão continua sendo uma grande incógnita. Os poucos que nos aventuramos a ler o texto que, segundo a tradição muçulmana, foi revelado ao Profeta Maomé pelo anjo Gabriel, acabam perdendo rapidamente o interesse dada nossa incapacidade de entender o milenar conteúdo que, sem dúvida alguma, tem tido grande influência sobre a história ocidental e oriental. Para agravar ainda mais a situação, nossa percepção sobre Maomé é igual, ou até mesmo pior, à que temos sobre o Alcorão.
Para os que entendemos ser parte do nosso chamado testemunhar de Jesus entre os seguidores de outras religiões, inclusive entre os muçulmanos, tais percepções tem implicações importantes.
Segundo Martin Accad (2016), teólogo e pastor evangélico libanês:
Sua visão do islã afetará sua atitude em relação aos muçulmanos. Sua atitude, por sua vez, influenciará sua abordagem na interação entre cristãos e muçulmanos, e essa abordagem afetará o resultado final de sua presença como uma testemunha de Jesus entre eles.
Parafraseando o autor, podemos dizer que a visão negativa que temos do Alcorão e de Maomé afeta a nossa atitude em relação aos muçulmanos, o que, eventualmente, afetará nossa interação e testemunho entre eles.
Se esse realmente for o caso, o que, então, podemos fazer? Qual deveria ser nossa atitude? Talvez poderíamos começar perguntando-nos se, como cristãos, não seria possível ter um olhar menos belicoso em relação a Maomé e ao Alcorão.
Os muçulmanos, de uma forma geral, entendem que Deus revelou as escrituras para os judeus, para os cristãos e, finalmente, para os árabes. Mas, segundo a crença muçulmana, quando ele comunicou o conteúdo do Alcorão a Maomé, não houve nenhuma influência das escrituras judaicas nem cristãs, pois a revelação feita a Maomé vinha diretamente de Deus, por intermédio do anjo.
Porém, se aceitamos a premissa (comumente aceita pelos teólogos cristãos) de que todo texto (mesmo aqueles considerados inspirados) tem, no seu processo de formação, a influência do seu contexto histórico e social, não podemos pensar que com o Alcorão teria sido diferente. Aliás, provavelmente é por conta dessa influência que, quando fazemos um estudo mais cuidadoso e comparamos o conteúdo do Alcorão com o do Antigo e do Novo Testamentos – assim como com textos judaicos e cristãos não-canônicos existentes na época de Maomé –, as semelhanças encontradas não são poucas.
Ao longo dos séculos, o judaísmo desenvolveu importantes compêndios de leis, traduções e comentários tais como a Mishná, o Talmude e o Targum. Todos eles já existiam antes do advento do islã, no século VII. Do lado cristão, à medida que, a partir do primeiro século, a nova fé se expandia para o oriente e para o ocidente, houve uma grande proliferação de textos e ideias teológicas, algumas consideradas ortodoxas e outras, heréticas.
Segundo a tradição islâmica, Maomé começou a ter as primeiras revelações cerca de 600 anos depois de Cristo. Relatos históricos mostram que a Península Arábica daquela época era habitada e/ou frequentada por judeus e cristãos de diferentes estirpes (Bell 1968) que haviam levado consigo (de forma oral ou escrita) as tradições, compêndios e ideias teológicas mencionadas acima (Bell 1968, Brown 2009). Vários estudiosos do islã afirmam que Maomé cresceu tendo contato com judeus e cristãos (Geiger 1998, Reynolds 2007, Crone 2015).
Sendo assim, não deveria ser estranha nas pregações de Maomé (que eventualmente foram compiladas em um livro, o Alcorão) a presença de conceitos bíblicos como arrependimento, perdão, recompensa, castigo, céu e inferno, as bênçãos dadas por Deus por meio da natureza, a majestade e unicidade de Deus, a existência de anjos e demônios, o Dia do Julgamento, entre muitos outros. Obviamente, a maneira que o Alcorão explica esses conceitos apresenta, com frequência, diferenças significativas em relação à compreensão cristã. Porém, não há dúvida que, em sua essência, o Alcorão usa categorias bíblicas para apresentar o que Maomé entendia ser o caminho para o paraíso.
Além de conceitos teológicos, são muitos os personagens, histórias e palavras de origem bíblica encontrados nas escrituras muçulmanas. Noé, Abraão, Moisés, Davi e Jesus (incluindo muitos dos seus milagres) são apenas alguns exemplos.
Portanto, se aceitarmos a hipótese que o conteúdo de textos judaico-cristãos influenciou Maomé e, consequentemente, a formação do Alcorão, surgem, naturalmente, algumas questões importantes:
- Poderíamos ter uma perspectiva diferente que as mencionados no início deste artigo sobre o Alcorão?
- Um texto que não consideramos inspirado deve ser, necessariamente, considerado de origem satânica?
Claro que, fruto de nosso zelo por salvaguardar as verdades bíblicas, nossa primeira reação possivelmente é dizer que o Alcorão foi, no mínimo, um plágio mal feito da Bíblia, e que pensar diferente seria cair no erro de querer ‘cristianizar’ o Alcorão. Mas, quando analisamos aquilo que se tem como histórico sobre Maomé, sobre a situação religiosa e social da Península Arábica no período do surgimento do islã e sobre a formação do Alcorão, podemos pensar em pelo menos duas respostas bastante diferentes entre si para as perguntas acima.
- Continuar afirmando que o Alcorão tem inspiração satânica e que Maomé foi um líder cruel e imoral. Essa posição contribui para uma exacerbação da animosidade entre cristãos e muçulmanos.
- Ver Maomé como um homem que era filho da sua época e que, durante sua juventude e também na sua fase adulta, teve contato com judeus e cristãos, escutou suas histórias religiosas e que, apesar de suas imperfeições, cria (equivocadamente) que tinha a missão divina de pregar aos árabes (que ainda não possuíam as Escrituras Sagradas em seu próprio idioma) aquilo que já havia sido revelado a judeus e cristãos.
Existem posicionamentos intermediários entre as duas posições mencionadas acima? Considerar a segunda resposta gera outros questionamentos:
- É possível adotá-la sem afirmar que Maomé foi um profeta enviado por Deus ou que o Alcorão é um livro inspirado?
- Será que, mesmo entendendo que os muçulmanos possuem conceitos equivocados sobre verdades e personagens bíblicos, é possível dizer que eles possuem centelhas da verdade bíblica que podem ser usadas como ponte para a apresentação do que a Bíblia realmente afirma?
- Essa postura nos ajudaria (sem ferirmos nenhum princípio bíblico) a mudar nossa atitude em relação aos muçulmanos e a olhar para eles com compaixão, como pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus que foram expostas a alguns conceitos judaico-cristãos, mas que precisam da oportunidade de escutar, ainda que uma única vez, o que a Bíblia verdadeiramente ensina?
Obviamente, devemos zelar pelas verdades bíblicas, e não podemos abrir mão das nossas convicções. De outro lado, por mais que queiramos simplificar, é possível não encontrarmos respostas fáceis para tais perguntas. Nossos missiólogos devem pensar juntos sobre as possíveis respostas e suas implicações. Minha oração é: “Que o Senhor nos ajude a encontrar caminhos que levem à diminuição da animosidade entre os seguidores das duas religiões e, ao mesmo tempo, criem um ambiente mais propício para explicar, de forma clara, a salvação que há em Cristo Jesus”.
Marcos Amado
Diretor do Centro de Reflexão Missiológica Martureo, é graduado em Teologia pelo All Nations Cristian College (Reino Unido) e Mestre em Missiologia com Especialização em Estudos Islâmicos pela mesma instituição. Em Beirute, no Líbano, cursa Estudos Avançados em Religiões e Culturas do Oriente Médio no Institute for Middle East Studies. É casado com Rosângela e acumula mais de 23 anos de experiência transcultural.
Bibliografia
Accad, M. (2016). Atitudes cristãs em relação ao islã e aos muçulmanos: uma abordagem querigmática. São Paulo, Martureo – Centro de Reflexão Missiológica.
Bell, R. (1968). Christianity in South Arabia and its influence upon the Arabs in general. The origin of Islam in its Christian environment: the Gunning lectures, Edinburgh University 1925. London, Routledge: 33-63.
Brown, D. (2009). Christianity in the Near East. A new introduction to Islam. West Sussex, UK, Wiley-Blackwell: pos. 1166-1241.
Crone, P. (2015). “Jewish Christianity and the Qur’an (Part One)”. Journal of Near Eastern Studies 74 (2): 225-253.
Geiger, A. (1998). What did Muhammad borrow from Judaism? The origins of the Koran: classic essays on Islam’s holy book. I. Warraq. New York, Prometheus Books.
Reynolds, G. S. E. (2007). The Qur’an in its historical context. Oxon, Oxford, Routledge.