Refugiados: Uma Perspectiva do Novo Testamento
“Conquanto sociedades em crise lidem com a questão dos refugiados e da imigração seguindo políticas de exclusão, os cristãos devem demonstrar atitude alternativa: a aceitação que reflita a aceitação de Deus”, exorta Escobar
Samuel Escobar
A questão sobre o modo como os cristãos devem lidar com o problema dos refugiados tornou-se mais significativa para mim por estar tentando ministrar na Espanha atualmente. Este país tornou-se um tipo de laboratório para questões relacionadas aos movimentos migratórios e à missão cristã. Durante as duas últimas décadas do século 20, migrantes vieram da América Latina, da Europa Oriental, das Filipinas e da África. Alguns deles eram refugiados que fugiram da perseguição política ou religiosa; outros eram simplesmente pessoas em busca de emprego e um futuro econômico melhor. Contudo, o próprio povo espanhol tem um longo histórico de migração. Felix Gonzalez, pastor da Primeira Igreja Batista de Madri e um estudioso muito produtivo dos escritos de Paulo, tornou-se cristão quando (como milhares de espanhóis) migrou para a Alemanha na década de 1960. Muitos líderes evangélicos na Espanha nos dias de hoje tiveram uma experiência semelhante, que remonta à década de 1960.
Na Espanha, na década de 1980, a Igreja Católica, assim como a insignificante minoria das igrejas protestantes, teve de enfrentar o desafio de uma imensa onda de imigrantes, cuja presença força as igrejas a irem à raiz da fé para encontrar orientações para fazer frente à nova situação. Nesse caso, vejo um desafio triplo.[1] O primeiro é o desafio da compaixão e sensibilidade cristãs. A igreja é desafiada a prover fundos e voluntários e organizar ações que vão ao encontro das necessidades do imenso fluxo de seres humanos, especialmente dos que enfrentam a fome, a falta de moradia e a marginalização. Há também o desafio de cooperar com uma grande quantidade de ONGs seculares criadas segundo o modelo cristão do envolvimento voluntário, mas comumente muito suspeito quanto às motivações das igrejas cristãs quando ingressam na área da assistência social. Esse é um desafio de educação para o discipulado que desenvolve atitudes que derivam das fontes da fé das igrejas e não dos preconceitos populares.
O segundo desafio é a necessidade de as igrejas assumirem uma postura profética em face das injustiças, nesse caso, a maneira como a sociedade trata os imigrantes. O maior desafio talvez seja a tarefa profética de ser porta-voz do pobre e do oprimido, bem como pronunciar uma palavra profética impopular para a sociedade que, em alguns momentos, parece estar dominada pelo pânico diante dessas ondas de estrangeiros que vêm para ficar. As igrejas precisam retornar às fontes da sua própria fé, mas igualmente a um tesouro ético, que é parte da herança ocidental e europeia. No entanto, o novo fato é que a erosão dos valores cristãos causou a ausência do substrato cristão que tornaria o comportamento cristão possível. Do mesmo modo, há um avanço militante do paganismo com uma atitude em que não há espaço para solidariedade ou compaixão diante da necessidade e do sofrimento humanos.
O terceiro desafio é o fato de que a migração é uma avenida para a dimensão evangelística da missão. Migrantes são pessoas em transição, pessoas que estão em movimento e vivenciando a perda das raízes e são sem-teto de um modo novo e numa escala imensa. Essas pessoas em transição são suscetíveis a se tornarem cristãs, estão prontas para assumir uma fé de uma maneira pessoal. Na história missionária, muitas vezes o cristianismo floresceu no contexto da migração precisamente por causa dessas duas condições enfrentadas na experiência do migrante. Como os dois lados da mesma moeda, um é o lado doloroso da falta de um lar e do desarraigamento, mas o outro lado é o de uma nova liberdade. Como demonstra a realidade, a presença desses novos cristãos nas comunidades antigas provoca desafios pastorais. A igreja é forçada a se tornar verdadeiramente missionária e a enfrentar a presença “do outro” no meio dela.
Migração como o contexto do Novo Testamento
No livro de Atos, os movimentos migratórios foram um fato significativo na narrativa do avanço missionário inicial da igreja cristã. Eles também nos ajudam a entender e apreciar melhor tanto a articulação teológica das epístolas quanto o conselho pastoral que elas fornecem. Essa foi minha experiência na leitura missiológica inicial da Epístola aos Romanos, que foi imensamente ajudada pelo novo livro clássico de Paul Minear, The Obedience of Faith [A Obediência da Fé].[2] Como um bom evangélico, fui ensinado a respeito do rico conteúdo teológico da epístola, que a Reforma protestante recuperou. No entanto, Minear ajudou-me a apreender o fato de que essa riqueza teológica e as consequências pastorais dela seriam mais bem compreendidas se a intenção missiológica da epístola não fosse ignorada: era importante atentar especialmente para a dinâmica missionária que nutria os propósitos de Paulo ao escrevê-la.
A longa lista de pessoas às quais Paulo envia saudações no capítulo 16 dessa epístola é de gente que evidentemente ele havia encontrado nas suas viagens pelo Império Romano uma vez ele nunca havia visitado a igreja em Roma. No caso de muitas dessas pessoas, não sabemos muito além do que o apóstolo diz nas saudações. No entanto, essa longa lista de nomes demonstra que, no contexto da estrutura do Império Romano do primeiro século, houve um movimento de migração semelhante ao que caracteriza o século 21. De certo modo, essa migração de pessoas para Roma (naquele tempo, o centro do poder cultural, econômico e político) é como o movimento dos nossos tempos, em que pessoas de regiões subdesenvolvidas mudam-se para países ricos onde possam encontrar emprego, segurança e um futuro que não encontram na própria pátria. Como o historiador Justo González comentou: “Quando os rios de riqueza fluem numa direção, é simplesmente natural que a população flua na mesma direção”.[3] Na realidade, todo o Novo Testamento descreve como as pessoas viajavam naqueles dias e como a missão cristã acontecia no contexto desse movimento de pessoas. Em alguns casos, como o dos fundadores da igreja em Antioquia (At 11.19), eram pessoas que haviam se dispersado devido à perseguição religiosa. Em outros casos, eram migrantes voluntários que se mudaram com um propósito missionário em mente, como o próprio Paulo, que descreve como se sente impelido pelo desafio de novos campos para seus esforços evangelísticos (Rm 15.19, 23-24).
A longa lista de saudações permite-nos identificar pelo menos cinco igrejas nos lares em Roma. A referência a Priscila e Áquila (Rm 16.3-5) identifica o primeiro desses grupos: “Saúdem também a igreja que se reúne na casa deles”. Então, no versículo 10, vem uma referência aos que “pertencem à casa de Aristóbulo”; no versículo 11, aos da “casa de Narciso”; no versículo 14, vários nomes “e os irmãos que estão com eles”, seguidos por outro grupo no versículo 15 (“ todos os santos que estão com eles”). Roma era uma cidade imensa, e exatamente como nas cidades de hoje, havia algumas partes da cidade onde diferentes comunidades étnicas viviam. Portanto, podemos imaginar que havia pelo menos cinco igrejas nos lares em Roma e que eram constituídas de pessoas de contexto gentílico e judaico.
Se prestarmos atenção aos dados que temos a respeito do primeiro casal que Paulo menciona nesse capítulo, temos a chave para entender os padrões de formação de igrejas nos tempos do Novo Testamento. Primeiro, encontramos Áquila e Priscila, ou Prisca, na narrativa do estabelecimento da igreja em Corinto. Áquila é descrito como um judeu da região do Ponto que teve de abandonar Roma por causa da perseguição imperial aos judeus (At 18.1-4), de certo modo, um refugiado. Áquila e Priscila obtinham sustento de um trabalho que lidava com couro, para o qual poucas ferramentas eram necessárias, tornando a mobilidade possível: um ofício ideal para um homem como o próprio Paulo.[4] Atos diz que ele “ficou morando e trabalhando com eles” (18.3), e que, depois de um tempo considerável (v. 18), o trio partiu e chegou a Éfeso. No período em que Romanos foi escrito, esse casal amigo, fiel e colaborador de Paulo retornou a Roma, e o apóstolo os elogia como pessoas a quem ele próprio é grato, dizendo: “Não apenas eu, mas todas as igrejas dos gentios” (Rm 16.4). Poderíamos dizer que Prisca e Áquila fundaram igrejas em, no mínimo, três cidades do Império, e o padrão continua a funcionar na nossa época. Muitas igrejas evangélicas na Argentina foram fundadas pelos empregados britânicos da companhia ferroviária no início do século 20; há empresários coreanos que começaram igrejas no Brasil e no Peru; migrantes espanhóis que fundaram igrejas de fala hispânica na Alemanha na década de 1960, que são em 2016 frequentadas por migrantes latino-americanos. Mais recentemente, jovens filipinos fundaram igrejas nos Estados Unidos, e migrantes ganeses fundaram nos Países Baixos.
À medida que avançamos na lista de saudações, temos nomes como Maria (v. 6) ou Andrônico e Júnias (v. 7), assim como Herodião (v. 11), compatriotas de Paulo, que evidentemente eram judeus. E também temos nomes como Febe (v. 1), Narciso (v. 11), Amplíato (v. 8) ou Urbano (v. 9), que são de origem gentílica. Grandes cidades são uma fusão de etnias, onde diferentes raças e culturas se encontram e, algumas vezes, o encontro é traumático. O racismo não é característico de apenas algumas pessoas e culturas. Por isso, a aceitação “do outro”, daquele que é diferente de nós, pode nem sempre ser um processo fácil. Tempos de crise social ou econômica trazem de volta o fantasma horrível do racismo como em alguns países e cidades europeus hoje e no discurso político de um candidato à presidência dos Estados Unidos. O racismo e a relutância em aceitar aqueles que são diferentes de nós também afetam os cristãos, e encontramos o problema nos vinte séculos de história da igreja. Se considerarmos todo o corpo de escritos de Paulo e o livro de Atos, percebemos que esse encontro de culturas e raças causou também muitos problemas pastorais na igreja primitiva, como sugere Minear.
Algumas das igrejas nos lares às quais nos referimos acima eram constituídas de cristãos judeus e outras, de cristãos gentios. Algumas delas podem ter sido comunidades mistas, nas quais certo nível de aceitação mútua e acolhimento acontecia. Como nem sempre havia respeito e aceitação mútuos, a intenção da carta de Paulo poderia muito bem ter sido uma iniciativa pastoral para incentivá-los a mudar e a receber ou aceitar uns aos outros como irmãos e irmãs em Cristo. Há uma exortação geral na qual o vocabulário tem uma conotação teológica definida e uma intenção pastoral: “Portanto, aceitem-se uns aos outros, da mesma forma como Cristo os aceitou, a fim de que vocês glorifiquem a Deus” (Rm 15.7). Ao ressaltar a maneira na qual Cristo recebe aqueles que vão a ele, essa exortação chega à essência do evangelho que Paulo desenvolveu na primeira parte da epístola. Essa aceitação mútua incluía a disposição de aceitar diferenças culturais, tais como diferentes hábitos alimentares e proibições originárias das culturas das quais pessoas distintas procederam (Rm 14.1-6). Como F. F. Bruce comenta:
Paulo certamente estava ciente das diferenças na atitude e práticas que poderiam suscitar tensões se a consideração fraternal não fosse praticada; é por essa razão que ele insiste com todos os grupos com tanta seriedade, que recebam uns aos outros da mesma maneira que haviam sido recebidos por Cristo, ‘a fim de que […] glorifiquem a Deus’ (Rm 15.7). A estratégia missionária de Paulo, como esboçada no capítulo 15, inclui ações e ensino para promover a aceitação mútua entre judeus e gentios, como a coleta que as igrejas gentílicas fizeram por iniciativa de Paulo para ajudar os cristãos judeus pobres na Judeia (Rm 15.25-29). Desse modo, um sentimento de unidade espiritual seria promovido”.[5]
Essa aceitação mútua teria de ser refletida também nas maneiras práticas de hospitalidade, que se tornaram uma marca das igrejas cristãs no século 1º. Os versículos iniciais do capítulo 16 são um elogio a Febe, provavelmente a portadora da carta aos Romanos. Ela deveria ser recebida como uma mensageira do apóstolo, e há menção explícita a respeito das necessidades sociais e materiais dessa mulher notável. “Recomendo-lhes nossa irmã Febe, serva da igreja em Cencreia. Peço que a recebam no Senhor, de maneira digna dos santos, e lhe prestem a ajuda de que venha a necessitar; pois tem sido de grande auxílio para muita gente, inclusive para mim” (Rm 16.1-2). A importância da hospitalidade no Novo Testamento e na história da igreja foi pesquisada de modo muito pertinente pela doutora Christine D. Pohl, vice-reitora e professora de ética social cristã no Seminário Asbury. Em 1999, ela publicou Making Room[6] [Dando Abrigo], um livro que, na minha opinião, é um clássico valioso. Minha observação e estudo da história da missão em vários países convenceram-me da relevância das descobertas dela para a prática missionária, que serão moldadas pelos princípios bíblicos que provaram a validade dessas descobertas na História.
A necessidade de uma atitude acolhedora nas igrejas é vivenciada hoje especialmente naqueles países que têm um grande número de imigrantes. É um enorme desafio, especialmente para as igrejas na Europa e na América do Norte, mas também para igrejas nas grandes cidades em todos os países. A experiência de pessoas deslocadas das áreas rurais terem sido bem recebidas é uma das explicações para o crescimento surpreendente de igrejas populares nas grandes cidades da América Latina. Em muitos casos, o acolhimento que o migrante recebe na igreja torna-se um símbolo e um prelúdio para a experiência de ser recebido por Jesus Cristo e de encontrar a salvação nele.
Há outro fator no modo como Paulo usa essas saudações para desenvolver a aceitação mútua e uma igreja mais forte e mais fiel em Roma. No esboço da estratégia da sua missão, que já mencionamos (Rm 15.22-24), como também no primeiro capítulo dessa epístola (1.8-13), Paulo refere-se à sua intenção de visitar Roma para ministrar ali, mas apenas como uma etapa no seu caminho para a Espanha, o novo objetivo que ele havia estabelecido para sua obra missionária. Considerando parte da prática missionária de Paulo ter uma igreja local como base para as viagens missionárias –como fez em Antioquia (At 13.1-3; 14.26-28) e provavelmente também em Éfeso (At 18.22-19.20) –, parece que Paulo gostaria que Roma fosse a base para a sua missão ocidental na Espanha. No entanto, para que isso acontecesse, ele prevê uma igreja forte como base, uma igreja que tivesse desenvolvido uma comunhão verdadeira de judeus e gentios, unidos pela fé comum que tinham em Jesus Cristo. Para esse propósito, ele escreveu a carta expondo a riqueza da revelação que é o evangelho de Jesus Cristo, que ele prega; e então, ao concluir a carta, usa as saudações para fazer o que chamamos hoje de “rede de contatos”. Ele envia Febe como uma mensageira pessoal e elogia Prisca e Áquila, cujos dons ele conhece bem, e se refere a essa longa lista de migrantes que vivem em Roma, de modo que as igrejas nos lares da capital do Império pudessem desenvolver um sentimento de unidade na pluralidade e a aceitação mútua para a glória de Deus. Somente esse tipo de igreja poderia tornar-se uma base para a missão de Paulo na Espanha.
No Novo Testamento, as igrejas não são unidades homogêneas
Somente uma comunhão marcada por essa disposição de aceitar outros irmãos e irmãs, além das barreiras culturais e étnicas, poderia ser considerada digna do nome de igreja. Pode até mesmo ser que a palavra “igreja” não seja mencionada na saudação aos romanos porque até que as igrejas nos lares que existiam ali viessem a aceitar uns aos outros, elas não tinham o tipo de comunhão que é essencial para que uma igreja possa existir. A unidade da igreja, que é um tema frequente nos escritos de Paulo, era necessária como uma expressão da universalidade do evangelho e seu poder transformador, que trouxe reconciliação com Deus e reconciliação entre os seres humanos. Essa preocupação da parte do apóstolo pode também explicar as fortes palavras contra aqueles que tinham um espírito sectário e divisionista (Rm 16.17-20).
A necessidade de prestar especial atenção ao ensino do Novo Testamento a respeito desse aspecto da natureza da igreja foi o tema de um debate contínuo dentro do movimento de Lausanne na década de 1980. O estudioso latino-americano do Novo Testamento René Padilla fez uma crítica severa à metodologia missionária da igreja como uma “unidade homogênea”, proposta por missiólogos como Donald McGavran e Peter Wagner. Com base na ideia de que as pessoas gostariam de se tornar cristãs sem atravessar as barreiras étnicas ou sociais, esses missiólogos propuseram que uma fundação de igreja mais eficiente e mais rápida deveria ser realizada por meio de igrejas que seriam etnicamente ou socialmente “unidades homogêneas”. Desse modo, a observação de um padrão sociológico de comportamento tornar-se-ia o fator determinante para uma estratégia missionária. A crítica de Padilla baseou-se no ensino do Novo Testamento, especialmente do apóstolo Paulo, a respeito da natureza da igreja:
Em todo o Novo Testamento, a unidade do povo de Deus como uma unidade que transcende todas as distinções externas é tida como a norma. O pensamento é que, com a vinda de Jesus Cristo, todas as barreiras que dividem a humanidade foram destruídas e uma nova humanidade agora toma forma na igreja e por meio da igreja. O propósito de Deus em Jesus Cristo inclui a unidade da raça humana e que a unidade torne-se visível na igreja.[7]
Padilla explica o ensino das cartas aos Efésios (1.13-14) e aos Colossenses (3.11) relativo à nova humanidade criada por Jesus Cristo:
O propósito de Deus é conduzir o universo ‘a uma unidade em Cristo’ (ver Ef 1.10). Esse propósito ainda não foi consumado. Porém, já em antecipação do fim, uma nova humanidade foi criada em Jesus Cristo, e aqueles que são incorporados nele formam uma unidade em que todas as divisões que separam as pessoas na antiga humanidade são abolidas. Desse modo, a unidade original da raça humana é restaurada; então, o propósito de Deus da unidade em Jesus Cristo é tornado historicamente visível.[8]
Ele também demonstra como a prática apostólica de evangelismo, bem como o trabalho pastoral no Novo Testamento, revela a aplicação desse conceito da igreja como uma nova criação e seu significado para a situação contemporânea. No ensino e na prática dos apóstolos, houve uma demolição das barreiras entre judeus e gentios, entre escravos e livres e entre homem e mulher. Hoje, a igreja precisa ser uma expressão da demolição das barreiras entre negros e brancos, entre ricos e pobres e entre homem e mulher.
Nestes dias, o fluxo de refugiados testará a disposição das igrejas cristãs de se tornarem esse tipo de igreja intencionado pelo apóstolo Paulo e pelo próprio Jesus. Isso irá requerer a aceitação das práticas diaconais, de discipulado e pastorais que a presença de refugiados trará, em vez da aceitação passiva de tendências sociológicas relativas a transformarem igrejas em unidades homogêneas.
Entre a exclusão e a aceitação
O teólogo croata Miroslav Volf ajuda-nos a entender teologicamente a natureza do dilema contemporâneo enfrentado pelas igrejas evangélicas. De 10 a 16 de abril de 1991, a INFEMIT [no contexto, brasileiro, tal organização seria equivalente à Fraternidade Teológica Latino-Americana] organizou a quarta consulta teológica em Osijek, Iugoslávia, com o tema “Liberdade e justiça no relacionamento entre a Igreja e o Estado”. Fomos recebidos pelos doutores Peter Kuzmic, reitor do Evangelical Theological Seminary [Seminário Teológico Evangélico] e Miroslav Volf, um dos professores do seminário. Poucas semanas mais tarde, a Iugoslávia desintegrou-se como país, e uma guerra religiosa e étnica cruelmente sangrenta trouxe imagens de violência e destruição aos noticiários no mundo. O biógrafo de Peter afirma que, sob a liderança dele:
As igrejas protestantes da rapidamente desintegrada Iugoslávia continuaram praticando a fraternidade em Cristo, embora, no caso delas, a força da unidade seria a irmandade em Cristo e não o Estado. Enquanto os sacerdotes ortodoxos abençoavam os soldados sérvios que iam para guerra, que teve início no verão de 1991, e os sacerdotes católicos abençoavam os soldados croatas, Peter Kuzmic organizou vários encontros de reconciliação para os protestantes iugoslavos na Hungria, um país que faz fronteira com a Croácia e a Sérvia; portanto, um lugar próximo, seguro e conveniente para reunião durante o tempo de guerra.[9]
A teologia de Miroslav Volf reflete as questões candentes que surgiram por essa desintegração do seu país: a crueldade do conflito étnico e uma guerra sangrenta entre croatas, sérvios e eslavos. Ele imergiu numa reflexão teológica a respeito do modo como os seres humanos desenvolvem identidades, aprendem a viver na presença de “outros” seres humanos e definem a si mesmos por um mecanismo de “exclusão”. Em contraste com isso, a história do evangelho e o significado da cruz torna possível praticar o “acolhimento” em vez da “exclusão”. Ao explicar a intenção do seu livro mais conhecido, Volf declara:
Uma reflexão cristã verdadeira sobre temas sociais deve ser arraigada no amor altruísta da Trindade divina como manifestado na cruz de Cristo; todos os temas centrais dessa reflexão terão de ser pensados com base na perspectiva do amor altruísta de Deus. Este livro procura explicar o que a autodoação divina pode significar para a construção da identidade, para o relacionamento com o outro sob a condição de inimizade.[10]
Comentando a respeito das palavras de Paulo em Romanos 15.7 – “Aceitem-se uns aos outros, da mesma forma como Cristo os aceitou” –, Volf diz:
Para descrever o processo de ‘aceitar’, emprego a metáfora do ‘abraço’. A metáfora parece bem apropriada para unir os três temas inter-relacionados que são fundamentais para a minha proposta: (1) a mutualidade do amor altruísta na Trindade (a doutrina de Deus), (2) os braços estendidos de Cristo na cruz para o ‘ímpio’ (a doutrina de Cristo), (3) os braços abertos do ‘pai’ que recebem o ‘pródigo’ (a doutrina da salvação).[11]
Ao explicar seu método teológico, Volf descreve o uso que ele faz de passagens bíblicas em relação ao tema teológico principal do “altruísmo e aceitação do outro”. Ele deixa claro que:
No cerne do Novo Testamento está a narrativa da morte e ressurreição de Jesus Cristo entendida como um ato de obediência a Deus e uma expressão de amor abnegado pelos seus seguidores, bem como o modelo para os seguidores imitarem. Essa narrativa, por sua vez, é inteligível apenas como parte da narrativa mais ampla das relações de Deus com a humanidade registrada ao logo de toda a Escritura cristã.[12]
Desse modo, Volf combina reflexão sobre um tema extraído da narrativa abrangente, a aceitação, com análise detalhada de passagens selecionadas que esclarecem temas como exclusão, arrependimento, perdão, justiça, verdade ou paz.
Em muitas frentes da vida e do testemunho cristão atual, o ensino da Epístola aos Romanos é extremamente relevante. Se as igrejas na Europa lidarem com a questão de migrantes com uma atitude que reflete a aceitação de Cristo em vez da exclusão de uma sociedade amedrontada, poderá haver bases melhores para uma nova evangelização da Europa. Se as igrejas na América do Norte considerarem seriamente o ensino dessa epístola, elas podem tornar-se o tipo de comunidade profética que libertará a igreja de aceitar uma forma barata de religião civil. Se novas igrejas migrantes nessas partes do mundo atentarem para Paulo em Romanos, encontrarão maneiras de se conectarem com as igrejas há muito estabelecidas que poderão estar necessitadas de reavivamento e de um novo espírito missionário. A mesma unidade em Cristo é necessária para anunciar o evangelho naquelas partes do mundo em que as igrejas estão crescendo como na América Latina, na África e em algumas regiões da Ásia, onde o entusiasmo e a vitalidade precisam ser correspondidos por um esforço em relação à maturidade, que ensejará um testemunho fiel em todas as áreas da vida. Conquanto sociedades em crise lidem com os problemas dos refugiados e a imigração seguindo políticas de exclusão, os cristãos são chamados a demonstrar uma atitude alternativa, a saber, a aceitação que reflita a aceitação de Deus, que os recebeu em Cristo.
Sobre o autor: http://samuelescobar.com/biografia/
[1] Neste ponto, estou usando material da minha palestra presidencial na American Society of Missiology, “Migration: Avenue and Challenge to Mission”, in Missiology vol. XXXI, 1º. de janeiro de 2003, p. 17-28.
[2] Minear, Paul S. The Obedience of Faith. The Purpuses of Paul in the Epistle to the Romans. Londres: SCMPress, 1971 .
[3] González, Justo L. For the Healing of the Nations. Maryknoll: Orbis Books, p. 83.
[4] Hock, Ronald F. The Social Context of Paul´s Ministry. Filadélfia: Fortres Press, 1980.
[5] Bruce, F. F. Paul: Apostle of the Free Spirit. Exeter: The Pasternoster Press, 1977, p. 389.
[6] Pohl, Christine D. Making Room. Wm. Eerdmans Publishing, 1999.
[7] Padilla, C. René. “The Unity of the Church and the Homogeneous Unit Principle”, in Wilbert R. Shenk (org.), Exploring Church Growth. Grand Rapids: Eerdmans, 1983, p. 285.
[8] Ibid. p. 287.
[9] Volf, Miroslav et all (orgs.). First the Kingdom of God. Osijek: Evandeoski teoloski fakultet, 2011, p. xxxviii.
[10] Volf, Miroslav. Exclusion and Embrace. Nashville: Abingdon Press, 1996, p. 25.
[11] Ibid. p. 28-29.
[12] Ibid. p. 31.
Photo by Nathan McBride