Por que a promoção da justiça não faz parte da missiologia de boa parte da igreja?

Ed René Kivitz e Ruth Padilla DeBorst respondem a essa e a outras questões

Segundo o missiólogo Chris Wright, a missão da igreja é a missão de Cristo, e isso inclui “buscar a transformação das estruturas injustas da sociedade”. [Leia dele o artigo “As cinco marcas da missão”]. Reverberando esse tema, a série “Diálogos de Esperança” – bate-papos transmitidos no YouTube com cristãos sobre diversos assuntos relevantes para a igreja brasileira hoje, iniciativa realizada em uma parceria entre Editora Ultimato, Aliança Cristã Evangélica Brasileira, Tearfund e Visão Mundial – reuniu Ed René Kivitz (teólogo, escritor e pastor), Ruth Padilla DeBorst (teóloga e educadora) e Valdir Steuernagel (mediador do diálogo e representante da Visão Mundial e da Aliança Evangélica) em uma conversa cujo tema foi “A busca pela justiça e a comunidade da fé”, cujo vídeo de cerca de 1 hora está disponível aqui. A participação do público via chat nos permitiu levantar alguns questionamentos:

Martureo Por que a promoção da justiça não faz parte da missiologia de boa parte da igreja?

Ed René Kivitz Isso tem a ver com a matriz de evangelização da América Latina. Penso que o evangelho que chegou a nós, um evangelho de construção racionalista/iluminista europeia com pinceladas de pietismo e fundamentalismo norte-americanos, fez com que a salvação fosse reduzida à relação do indivíduo com Deus. A salvação é uma experiência individual/pessoal dentro dessa soteriologia que nos foi trazida pelo protestantismo norte- americano. Ser salvo é aceitar Jesus como Salvador pessoal, individual. E também ser salvo é aceitar Jesus como Salvador pessoa/individual para ir para o céu depois da morte. Então, na evangelização que foi feita na América Latina, os dois elementos da nossa conversa de hoje [justiça e comunidade] estão ausentes. E a Bíblia Sagrada não trata a salvação de forma individual, ela é coletiva/comunitária – Deus está salvando a família humana e a salvação implica ser integrado no corpo de Cristo –, não é uma salvação de indivíduos. A todos nós foi dado beber de um só Espírito e todos nós fomos mergulhados em um corpo (1Co 12.13), é isso que diz o apóstolo Paulo. Então, a salvação é coletiva/comunitária, e também a salvação, da maneira como nos apresentada, como o céu após a morte, não nos falou sobre dimensões de justiça do reino de Deus enquanto experiência histórica encarnada. O Cristo que nos foi anunciado foi apenas o Cristo exaltado, não foi o Jesus histórico com o pé sujo de lama e no meio das gentes, o Jesus encarnado. Para nós, na teologia latino-americana, o modelo de missão é o Jesus encarnado, não o Cristo exaltado. O Cristo exaltado nós adoramos, mas o Jesus histórico é a nossa referência de missão. A evangelização que veio para nós nos deixou sem essas referências da comunidade e da justiça como integrantes do evangelho.

Martureo Nesse contexto, como se define justiça?

Ruth Padilla DeBorst Não pensamos em justiça como retribuição, como um sistema jurídico por meio do qual, ao se fazer algo, há determinada consequência. Em termos bíblicos, estamos falando de relações saudáveis, relações santas, que promovem vida. Então, não dá para separar os conceitos de justiça e de comunidade. Some-se ainda ao que o Ed disse a respeito do pietismo o que veio antes da evangelização europeia e norte-americana. Estamos falando dos portugueses e dos espanhóis com a cruz em uma mão e a espada na outra. Não havia possibilidade de comunidade, de algo comum, de estar como iguais. Sempre havia o problema do poder, da opressão, e onde há desequilíbrio não há justiça, não há comunidade. Juan A. Mackay, em seu livro El Otro Cristo Español , defende a tese de que o verdadeiro Cristo nunca chegou com os espanhóis e com os portugueses, o que chegou aqui foi uma caricatura de Jesus. Era a cruz em uma mão e a violação das mulheres indígenas. A cruz em uma mão e a opressão dos homens nativos. A cruz em uma mão e o tráfico de escravos africanos. Essa questão do poder redunda em não conseguirmos, de fato, desenvolver o conceito de comunidade, mutualidade e de justiça.

Ed René Kivitz Queria aproveitar essa janela que a Ruth nos abre e dizer que, na minha opinião, uma das razões pelas quais há falta do conceito de [promoção da] justiça no Brasil é porque falta teologia/missiologia latino-americana para a igreja brasileira. Temos teologia norte-americana e europeia, temos teologia/missiologia colonialista, não temos teologia/missiologia latino-americana. Especialmente nos últimos anos no Brasil, tudo o que foi associado à teologia latino-americana, teologia da missão integral, foi equivocadamente carimbado como marxismo, comunismo, socialismo, quando na verdade não é nada disso. Temos um repertório de teólogos e pensadores latino-americanos que fazem a leitura do evangelho com outras lentes, mas que é desconhecido para boa parte da igreja brasileira, infelizmente. (…) O pecado não é uma realidade apenas presente no coração do homem, mas também nas estruturas da sociedade. Quando a gente fala que é importante não apenas dar o peixe, mas ensinar a pescar, é muito bonito, só que o trabalhador não tem crédito para comprar os aparelhos de pesca, o trabalhador não tem acesso ao leito do rio porque as multinacionais impedem que ele vá pescar.

Quer saber mais sobre uma teologia de origem latino-americana? Assista aqui à minissérie de 3 breves vídeos Teologia da Libertação e Missões.

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