Perseguição e martírio de cristãos

Uma igreja obcecada por erradicar a dor da vida em prol do bem-estar ou por erradicar o mal do mundo ainda que sacrificialmente?

Carlos Madrigal Mir

Depois do assassinato de três evangélicos em Malatya (Turquia) em 2007, recebi alguns pedidos para escrever sobre perseguição e martírio. Um desses conteúdos foi um capítulo de um livro da World Evangelical Alliance (WEA) Mission Commission (MC)[1]. O texto a seguir é uma parcela desse capítulo. A perseguição, inclusive o martírio, é um assunto do qual não só não podemos fugir, mas que devemos ter sempre bem presente, pois é um aspecto hoje tangenciado ou evitado na hora de falar da tarefa global. No entanto, é um dos temas mais relevantes do NT, e abordar tal assunto é necessário em termos de visão global.

O cemitério da igreja

As terras, história e povos da Ásia Menor se sustentam até nossos dias com suas profundas cicatrizes como testemunhas privilegiadas dos desafios e sofrimentos da igreja em todas as idades. Fora da chamada Terra Santa, é difícil encontrar outro lugar do mundo onde se reúnem tantos fatos relevantes para a fé cristã. Estamos falando das terras conhecidas como “o berço da igreja” pelo fato de que ali foi fundada a primeira igreja gentílica – preâmbulo de uma igreja universal – e missionária – preâmbulo de sua extensão mundial. A Ásia Menor também é palco das sete igrejas do Apocalipse que prenunciam e exemplificam as glórias e penúrias da igreja terrenal.

Esse mesmo lugar/contexto em que a igreja ganhou tal vitalidade, que a impulsionou ao longo dos séculos até os nossos dias, hoje se tornou o que tristemente se chamou de “o cemitério da igreja”. Isso porque esse mesmo local geográfico onde a igreja nasceu é hoje um dos lugares do mundo onde o cristianismo experimentou seu declínio mais dramático – praticamente desapareceu. O que aconteceu nesse lapso de vinte séculos? O que causou tal fiasco? Um sem-número de incontáveis sofrimentos, perseguições e martírios.

Se falamos de Ásia Menor, estamos falando da terra do Tigre e do Eufrates, fontes que regavam o paraíso; do monte Ararate, onde pousou a arca; de Harã, terra originária de Abraão; de Tarso, cidade natal de Paulo; de Antioquia da Síria, a primeira igreja missionária; de Patmos, a prisão do exílio de João; da Galácia, de Bitínia, de Icônio, Trácia, Capadócia… e dos 7 candelabros da Ásia. E aqui lembramos que ninguém, senão o próprio Senhor, pode apagar o candelabro da igreja; e que ninguém, senão a própria comunidade, tem a responsabilidade e a autoridade para manter viva essa chama.

Uma epístola para a Ásia Menor

Mas que papel desempenharam as adversidades, as perseguições e, portanto, os assassinatos na Ásia Menor? E que lições podemos destacar? Não quero fazer uma simples revisão de todos os fatos históricos – o que também não seria possível –, mas sim narrar algo “de dentro”, levantando testemunho da igreja sofredora (como as Acta Martyrum) e, portanto, igreja vitoriosa! Eu não gostaria de cair em um estudo frio, que afastasse de nós a realidade e a necessidade de nos sentirmos unidos com toda a igreja que sofre perseguição. Quero fazer ecoar as palavras do apóstolo Pedro, de maneira que saibamos nos identificar com os “irmãos em Cristo em todo o mundo estão passando pelos mesmos sofrimentos” (1Pe 5.9), e, assim, ser parte ativa dessa igreja gloriosa. Pedro escrevia essas palavras precisamente aos “que vivem como estrangeiros” na Ásia Menor: “Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia” (1Pe 1.1).

O próprio Senhor se dirige às suas sete Igrejas – igrejas que lidavam com ameaças internas e externas – com palavras de censura e de elogio, segundo cada caso. Mas há somente duas para as quais não faz nenhuma crítica e com as quais usa somente palavras de aprovação e ânimo: Esmirna e Filadélfia. Por quê? Por serem as duas únicas igrejas que empregam todas as suas forças para se sobrepor e sobreviver à perseguição: uma devido à perseguição até o martírio daqueles que eram porta-vozes da Palavra (Esmirna), e a outra devido à perseguição difamatória contra a proclamação, o conteúdo da Palavra (Filadélfia). Para aqueles que são fiéis diante do sofrimento, da perseguição e do martírio, o Senhor não tem palavras de censura. Não porque sejam perfeitos, mas porque levam “as marcas de Jesus” em seus corpos e essa glória eclipsa por completo qualquer defeito – assim como o brilho do sol nos impede de ver as manchas solares. Era assim e continua sendo até hoje.

Como contraste, vivemos em um mundo e vemos uma igreja cada vez mais obcecada por encontrar como erradicar a dor da vida cotidiana em prol do bem-estar. No entanto, a primeira igreja se dedicava a erradicar o mal do mundo por meio de sacrifícios. Qual dessas posturas nos parece estar mais de acordo com o Espírito do evangelho? Acabar com o sofrimento é um dos objetivos do evangelho, mas é um objetivo colateral – se a expressão me é permitida – e não o objetivo central. Buscar a saúde, consolar os deprimidos, orar por provisão e buscar a felicidade são aspectos de viver o evangelho. Mas, se buscamos uma vida sem doenças, sem adversidades, de opulência e de sucesso contínuo, não estamos um tanto à deriva? E, se querer acabar com o sofrimento nos faz desistir de tudo que nos exija sofrimento, não acabaremos fechando-nos em nós mesmos e evitando os grandes desafios que envolvem a chegada do evangelho às zonas mais perigosas do mundo?

De outro modo, se assumimos que a tarefa da igreja é “erradicar o mal do mundo, seja qual for o sacrifício requerido”, então as palavras de Pedro aos crentes sofredores na Ásia Menor assumem um grande significado: “Portanto, uma vez que Cristo sofreu fisicamente, armem-se com a mesma atitude que ele teve e estejam prontos para também sofrer. Porque, se vocês sofreram fisicamente por Cristo, deixaram o pecado para trás” [i.e., o mal]” (1Pe 4.1). Devemos recuperar uma atitude mental, uma cosmovisão, que inclua o padecimento. Não se trata de buscar a mortificação e o sofrimento como fim em si mesmo, mas de redescobrir o objetivo final, o custo que em muitas ocasiões a tarefa vai demandar. O objetivo é erradicar o mal individual e estrutural; o custo é o sacrifício.

A semeadura de Diocleciano

O Império Romano, durante os três primeiros séculos da história da igreja, desencadeou dez grandes ondas de perseguição, dentre as quais a mais feroz foi sobre a nova fé cristã. Nas terras da Ásia Menor, cunharam-se frases célebres como as de Inácio Mártir, bispo de Antioquia (68-107 d.C.): “Sou o trigo de Deus; preciso ser moído pelos dentes das feras para chegar a ser pão limpo” de Cristo[2]. Ou as de Policarpo, bispo de Esmirna a seus verdugos (74-155 d.C.): “Durante oitenta e seis anos servi a Cristo e nunca me fez nenhum mal… Tu ameaças com fogo que arde por uma hora e logo se apaga; mas ignoras o fogo do julgamento vindouro e o castigo eterno…”[3]. E assim até chegar à célebre sentença de Tertuliano (160-220 d.C.): “O sangue dos mártires é semente de cristãos”[4].

As perseguições não acabaram com os cristãos. E mais! Apesar delas, ou talvez graças a elas, os cristãos sobreviveram ao próprio Império Romano. Exemplo disso, no contexto da Ásia Menor, é a última e mais devastadora das perseguições imperiais: a perseguição decretada de 303 a 313 d.C. pelo imperador Diocleciano e referendada – ou talvez instigada – por Galério, seu césar subalterno. Diz-se que, como resultado dessa repressão, metade do total de mártires de toda a era de perseguições romanas morreram. Sobre ela informam tanto Eusébio em História Eclesiástica como Lactâncio em seu livro Sobre a morte dos perseguidores. Diocleciano, inclusive, ergueu um monumento comemorativo com estas palavras: “extincto nomine Christianorum” [“o nome dos cristãos foi apagado”].[5] Hoje, sobre o local do palácio de Diocleciano na antiga Nicomédia, está a cidade de Izmit-Kocaeli na moderna Turquia.

Em 1998, o Senhor nos guiou para estabelecer a obra em Izmit (não Izmir). Depois de um ano de semeadura, decidimos procurar um prédio – segundo nossas possibilidades econômicas – para comprar e usar como local para os encontros da igreja. Em 17 de agosto de 1999, um terremoto de 7,4 na escala Richter devastou a cidade. Mais de 35 mil pessoas morreram em um intervalo de 45 segundos! Nosso edifício imediatamente se converteu no centro de distribuição da ajuda humanitária enviada por organizações evangélicas de todas as partes do mundo. O edifício da igreja não sofreu nenhum dano, mas vários edifícios dos quarteirões da frente desmoronaram. Debaixo deles apareceram os restos do palácio de Diocleciano! Dentre todos os lugares possíveis em uma cidade com mais de um milhão de habitantes, sem que soubéssemos, o lugar onde havíamos instalado a igreja estava sobre o palácio daquele que mais sangue de mártires havia derramado em toda a história e que se gabava de ter acabado com o cristianismo. Casualidade ou direcionamento providencial? Se aceitamos uma das versões da máxima de Tertuliano – “O sangue dos mártires é semente da igreja” –, a resposta não oferece muita dúvida! Essa pequena e vacilante igreja permanece hoje ali lutando contra marés e ventos para seguir adiante. “Os reis da terra se preparam para a batalha; os governantes conspiram juntos, contra o Senhor e contra seu ungido. ‘Vamos quebrar estas correntes!’, eles dizem. ‘Vamos nos libertar da escravidão!’ Aquele que governa nos céus ri; o Senhor zomba deles.” (Sl 2.2-4)

Os frutos da perseguição

Com a perseguição iniciada por Diocleciano, um soldado da guarda pessoal do imperador, conhecido como Georgios (Jorge), recebeu ordens de participar na repressão, mas ele preferiu revelar sua condição de cristão e se opor à decisão imperial. Um irado Diocleciano reagiu, ordenou sua tortura – a qual suportou sem emitir nenhuma queixa – e, posteriormente, a execução. Jorge foi decapitado em frente às muralhas de Nicomédia (Izmit) em 23 de abril de 303. Os testemunhos de seu sofrimento convenceram a imperatriz Alexandra e uma sacerdotisa pagã anônima a se converterem a Cristo, e elas se juntaram a Jorge no martírio. Hoje tal mártir é conhecido como São Jorge.

A perseguição em Nicomédia e Capadócia é ilustrativa de como, em última instância, a perseguição e o martírio, embora sejam um duro golpe para a subsistência e extensão do evangelho, também o revitalizam, trazendo uma sensação de feito épico e de grande vitória sobre todos os poderes das trevas.

Se a perseguição humilha e fere, perdoar e saber pedir perdão, ao contrário, nos dignificam e nos fazem mais que vencedores. E vencemos também quando assumimos a perseguição como parte da estratégia do Senhor e como prelúdio de sua vitória. Como há alguns anos redescobri nas palavras do sofredor Jeremias: Que deem a outra face para os que os ferem e aceitem os insultos de seus inimigos. Pois o Senhor não abandona ninguém para sempre. Embora traga tristeza, também mostra compaixão, por causa da grandeza de seu amor” (Lm 3.30-32). Quanto o martírio gera perdão incondicional, essa é a vitória incondicional conquistada e que o converte em semente: “Senhor, não os culpes por este pecado!… Os que haviam sido dispersos, porém, anunciavam as boas-novas a respeito de Jesus por onde quer que fossem” (At 7.60, 8.4).

Os mártires de hoje

  • Em 5 de fevereiro de 2006, Andrea Santoro, sacerdote católico em Trabzon (costa do Mar Negro), morreu com dois tiros na nuca enquanto fazia suas orações nos bancos da igreja.
  • Em 19 de janeiro de 2007, Hrant Dink, jornalista armênio e evangélico, foi morto com um tiro na entrada do jornal armênio que dirigia em Istambul.
  • Em 18 de abril de 2007, três evangélicos foram torturados e degolados no escritório da editora que representavam em Malatya (sudeste da Turquia). Dois deles, turcos convertidos do islã: Necati Aydin, de 36 anos, e Uğur Yüksel, de 32. O terceiro, Tilman Geske, de 45, era cidadão alemão.
  • Em 3 de junho de 2010, o bispo apostólico de Anatólia, Luigi Padovese, foi degolado por seu motorista em Iskenderun (perto de Antioquia, no sudeste da Turquia). Depois de ter cometido o assassinato, o motorista subiu ao terraço, clamou “Allah’u ekber” [“Alá é grande”] (como também havia gritado um dos assassinos de aluguel mencionados anteriormente), e então gritou: “Matei o diabo…”.

Eu gostaria de concluir com três depoimentos que nos dão uma medida da dimensão espiritual dos fatos. O primeiro é o texto lido com pesar no funeral do monsenhor Santoro por seus companheiros de apostolado, mas entre louvores e orações de gratidão ao Senhor:

Eu lhes digo a verdade: se o grão de trigo não for plantado na terra e não morrer, ficará só. Sua morte, porém, produzirá muitos novos grãos. Quem ama sua vida neste mundo a perderá. Quem odeia sua vida neste mundo a conservará por toda a eternidade. Se alguém quer ser meu discípulo, siga-me, pois meus servos devem estar onde eu estou. E o Pai honrará quem me servir. (Jo 12.24-26)

O segundo é uma reflexão da viúva de Hrant Dink, Ra-hel Dink, lida por ela no funeral em massa de seu marido, que aconteceu no dia 23 de janeiro de 2001 em Istambul e que ainda reverbera nos ouvidos de uma nação inteira:

Sei que houve um tempo em que o assassino foi um bebê; que força das trevas é a que pode converter um bebê em assassino? Isso é o que temos de questionar… porque no céu só e unicamente entrará o amor.[6]

O terceiro, são uns versos premonitórios de um dos mártires de Malatya, Necati Aydin, que podem servir de reflexão final para nós crentes sobre nossa atitude em relação à vida e à morte, e sobre como aproveitar o resto de nossas vidas:

Dei meu endereço à morte

Para que sem me buscar me encontre,

Que não pense que a temi,

que de sua sorte me escondi…

Que esteja próxima a morte!

Não está já sempre presente?

Já vou, sem dizer adeus à minha gente,

Sem me saciar do amor, da verdade,

da beleza, da bondade…

Mas corro a todo instante,

para alcançar em cada instante,

a meta, a eternidade [7]

Como lagartixas

Provérbios nos fala que quatro coisas na terra são pequenas, mas muito sábias” (30.24): a formiga, os coelhos, os gafanhotos e as lagartixas, “que, embora sejam fáceis de apanhar, vivem até nos palácios dos reis” (30.28). Por que são sábias? As formigas “armazenam alimento no verão” (30.25), os coelhos “fazem sua toca nas rochas” (30.26), os gafanhotos “marcham em fileira” (30.27). E as lagartixas (traduzidas como aranhas em algumas versões)? Porque mesmo não fazendo parte do palácio e não tendo sido convidadas podem entrar na câmara do trono, superando qualquer barreira. Provérbios elogia o fato de as formigas serem trabalhadoras e provisoras, de os texugos saberem obter refúgio do perigo, de os gafanhotos serem organizados sem necessidade de orientação, e de as lagartixas conseguirem audiência na corte.

Assim, na tarefa global, Deus quer nos levar a um ponto em que, embora não agrademos a todos, cheguemos a ser necessários para a paz, a convivência e o bom entendimento de todos. O Senhor deixou bem claro: “Vocês serão presos, perseguidos e mortos. Por minha causa, serão odiados em todo o mundo” (Mt 24.9). Também disse: “Por minha causa serão julgados diante de governantes e reis, mas essa será a oportunidade de falar a meu respeito…” (Mt 10.18). Embora aqui basicamente se fale de serem levados à força e de darem testemunho como Paulo diante de Agripa, Jesus também disse aos seus: “Não tenham medo, pequeno rebanho, pois seu Pai tem grande alegria em lhes dar o reino” (Lc 12.32). De novo ele não fala aqui de um reino terreno, nem sequer de influenciar diretamente os reinos terrenos, mas sim de confiar na provisão divina (Lc 12.31-34). Mas, se contribuímos para fazer retroceder os efeitos do mal em nossa sociedade, não acabamos sendo de benefício também para os governos do mundo? Como as lagartixas, toleradas na câmara do rei porque acabam com as moscas!

Creio – e assim expressamos em nossa declaração de propósitos como igreja – que a comunidade crente, espalhando-se pelo mundo, deve ter como um de seus objetivos ser aceita como “um interlocutor válido na sociedade” devido às suas contribuições positivas. Isso implica sair de uma mentalidade de gueto e atuar com plena consciência de nossa condição de “embaixadores” do Rei.

Para isso, é necessário demonstrar que somos um “benefício”, ou, dito em termos bíblicos, que somos “bênção para as nações”. Isso abarca desde um testemunho exemplar (“assim… vejam vossas obras e glorifiquem ao vosso Pai que está nos céus”) até o testemunho coletivo (“vede como se amam”, Tertuliano), passando pelos efeitos terapêuticos sobre a sociedade (“vós sois o sal da terra …”). Um exemplo atual disso na prática: uma agência de correios na região sudeste da Turquia perguntou à pequena congregação protestante da cidade se havia jovens que quisessem trabalhar com eles, porque os “outros” jovens acabavam cometendo furtos e desaparecendo, mas sabiam que “os cristãos não são assim”.

À medida em que cada crente testemunhar Cristo [também] sendo um exemplo de honestidade e profissionalismo, a comunidade crente conquistará um lugar [de fala] na sociedade por respeitar as leis e promover a ordem pública. Igualmente, devemos conectar nossa mensagem com aqueles temas que inquietam a opinião pública ao ponto de influenciá-la positivamente para que nossa opinião seja consultada e/ou, inclusive, para que sejamos requeridos para mediar as partes em qualquer conflito. É a isso que me refiro com se tornar “um interlocutor válido na sociedade” – como foi o bispo anglicano Desmond Tutu em sua mediação do fim do apartheid na África do Sul.

Evidentemente há situações em que é necessário “obedecer a Deus antes e não aos homens” (Atos 4.19-20, 5.29). Portanto, não falo de moldar a compreensão do evangelho para agradar aos poderes do mundo, embora deva ser assinalado que, às vezes, são os crentes que provocam situações desnecessárias de tensão. Por exemplo: estávamos distribuindo convites para um evento de um distrito de Istambul e a polícia chegou e nos disse que era necessária uma licença para tal ação. Como não a tínhamos, paramos e, no dia seguinte, solicitamos a licença às autoridades locais. Conseguimos e voltamos a distribuir os convites. A polícia chegou, mostramos a licença e seguimos com a distribuição. No mesmo distrito, em datas diferentes, a polícia se aproximou de um grupo que estava dando testemunho de Cristo nas ruas e lhes disse que era necessário ter uma licença. E assim foi em várias ocasiões, mas eles continuaram um dia e outro dia sem pedir a tal licença. Por fim, a polícia os prendeu. Isso é perseguição ou teimosia dos crentes? Para não dizer estupidez. No entanto, o incidente ressoou como a “perseguição” que há na Turquia. Não há? Sim, em muitos outros casos, mas não é necessário que fabriquemos outros totalmente desnecessários e evitáveis. Respeitar as leis não diz respeito a apenas não atravessar no semáforo vermelho.

Depois de finalizada nossa licença de trabalho no início dos anos 1990, houve uma temporada em que permanecemos como turistas no país antes de obter outra. A cada três meses tínhamos de ir para a Grécia para renovar nosso visto. Em uma das ocasiões, encontrei um uma freira no ônibus que ia a Alexandrópolis (Grécia). Falando de diversos temas, chegamos à razão de estarmos na Turquia. A freira tinha vindo para ajudar como enfermeira em um hospital católico, mas, na hora de processar sua autorização de residência, as autoridades avisaram que não havia opção legal para lhe darem o visto como enfermeira, mas que, se ela a solicitasse como religiosa, seria concedida. Por conta disso, ela estava indo ao consulado turco na Grécia para iniciar o processo. A próxima autorização de trabalho que solicitei foi como “clérigo”! Isso foi anos mais tarde, depois de finalizarmos o trabalhoso processo para formar uma fundação em nome da igreja. Isso, não apenas pagar os impostos, também considero “respeitar as leis.

Não vou relatar aqui o processo para formar a fundação, que definitivamente foi outro milagre do Senhor, mas quero compartilhar aqui uma das aberturas (bênçãos) que isso nos trouxe, permitindo que estendêssemos nossa influência cristã na sociedade turca. Depois de nos registrarmos como fundação religiosa, recebemos vários convites para participar de fóruns de discussão em que organizações não governamentais de todo tipo se reúnem para promover melhorias sociais. Uma delas: a redação de um projeto de lei para penalizar os crimes de ódio, dentro eles os cometidos contra as minorias religiosas.

Há muitas áreas nas quais os crentes podem ser “sal da terra” e “sal nos extremos da terra”, sendo que essa última tarefa envolve um processo muito mais custoso – ela demanda despertar a consciência social e promover a base legal que em outros lugares já existe há séculos. Há, inclusive, legislações que sequer deixam uma porta aberta para avançar nessas áreas. É um tema de oração e que exige a sabedoria de saber “ser lagartixa” para penetrar no palácio.

Definitivamente, a difusão da bênção, da imagem e da glória de Deus, objetivo principal da tarefa global (isso é tratado em outro artigo de Madrigal dispovível aqui), envolve o engajamento em várias frentes:

  • reprodução da imagem nos indivíduos (evangelização e discipulado),
  • projeção da imagem na sociedade (cidadãos modelo em todos os níveis),
  • restauração da imagem entre os desfavorecidos (restauração social),
  • repercussão da imagem na esfera da justiça (advogando pelos oprimidos) e nas instituições (influência ou participação na gestão política).

Quanto mais lacunas há nas fileiras, maiores são os riscos, inclusive quando se trata da relação do evangelho com questões políticas. Além do risco da armadilha da ambição pelo poder e dos casos lamentáveis de corrupção nos quais se viram implicados políticos que se declaram cristãos, Jesus nos chamou a desconsiderar proclamações políticas, a não usar seu nome em política. É necessário distinguir entre fazer política para impor a fé (teocracia) e fazer política baseando-se na fé (teopraxis), isto é, aplicar os valores do reino de Deus em benefício de todos, incluindo os não crentes. Devemos almejar a teopraxis e nos afastar da teocracia para não comprometer nossa vocação e o acesso a todos os grupos sociais. (Mas discriminar aqui todas as nuances sobre esse tema não é o propósito deste texto.)

Antes da globalização, o mundo estava dividido em blocos por religiões. No entanto, no mundo de hoje, global e pluralista, as religiões se encontram cara a cara nos mesmos bairros. Em um mundo que cada vez recrimina mais as religiões do que os conflitos que nascem dos choques entre elas (seja verdade ou não), como exemplificar que Jesus não está em conflito com as demais crenças e, ao mesmo tempo, oferecer sua alternativa para todo o mundo? As confissões têm de aprender a tolerância e a convivência mútuas, encontrando, inclusive, eventuais pontos de concordância. Por exemplo, reivindicar para os demais a mesma liberdade de culto ou garantir os mesmos direitos e liberdades de expressão que reivindicam para si mesmas. Para isso, membros ou representantes de diferentes religiões têm que aprender a dialogar. Não para concordar com os credos e/ou intercambiar materiais de fé, mas para conviver como bons vizinhos. Precisamos estabelecer certos princípios de respeito, assim como de clareza, na hora de proclamar as verdades do evangelho. Temos de desenvolver um discurso que mostre com respeito como Jesus – que convive com todos sem fazer distinções de credo, raça, cultura, classe ou sexo – não traz outra alternativa senão oferecer a si mesmo como ponte, tanto entre o céu e a terra como entre todos os grupos humanos.

O fato é que quando Jesus nos disse: “Vão e façam discípulos de todas as nações (Mt 29.19), não diz “em”, mas “de” todas as nações. Quer dizer, não se trata de fazer alguns discípulos nas nações, mas de discipular as nações inteiras. Portanto, a grande comissão deve repercutir em nações inteiras, o que não devemos confundir com colonialismo ou imperialismo religioso. Desejaríamos que essa repercussão fosse uma forma de bênção direta, ou seja, que cada indivíduo aceitasse Jesus e se entregasse a ele como Salvador e Senhor. Mas, ao mesmo tempo, também pode e deve ter uma repercussão em forma de bênção indireta, ou seja, colaborando com todos em favor da paz, da justiça, da liberdade e da igualdade em todos os níveis possíveis. Para isso, é necessário que os cristãos estejam presentes na educação, nas profissões liberais, na economia, na ação social, na cultura, na reflexão ética e filosófica, nas artes, nos meios de comunicação, na gestão política… Temos de ser sábios como “as lagartixas”, que entram em todas as partes, inclusive em “palácios do rei” (Pv 30.24-28).

Por último, vale ressaltar que para uma tarefa de tal envergadura é necessária a colaboração unida e unânime de todo o povo de Deus. Assim como clamou Ester quando tinha de entrar na presença do rei sem ter sido convocada (o que, segundo a lei do reino, podia acarretar pena de morte) – “Vá, reúna todos os judeus de Susã e jejuem por mim. Não comam nem bebam durante três dias e três noites. Minhas criadas e eu faremos o mesmo. Depois, irei à presença do rei, mesmo que seja contra a lei. Se eu tiver de morrer, morrerei” (Es 4.16) – é questão de vida ou morte! E não apenas para nós, mas para todos os que estão sem Cristo!

Que Deus nos ajude a sermos sábios e práticos como lagartixas!

 

O texto foi extraído do livro Recomponiendo La Missión Con Jesús – Reflexiones sobre la misión, sobre la tarea global y sus implicaciones para el mundo [Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo], publicado na Espanha por Impresiones em 2018. O Martureo recebeu autorização do autor para traduzi-lo e publicá-lo. Tradução: Lucas F. R. Juknevicius. Edição: Fernanda Schimenes.

Sobre o autor
Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona, e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.

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As qualidades que deve reunir o pioneiro

Visão de mosca: distrações no cumprimento da tarefa global

 

A imagem deste artigo retrata o apedrejamento de Estêvão. É um afresco de S. G. Rudl (1896) na Kostel svatého Cyril’s Metodeje em Praga, na República Tcheca.

 

 

[1] Taylor, William D.; Van Der Meer, Antonia; Reimer, Reg (Eds.). Sorrow & Blood: Christian Mission in Contexts of Suffering, Persecution, and Martyrdom. Pasadena (CA): William Carey Library, 2012.

[2] Epístola de Inácio Mártir aos Romanos IV, 1.

[3] Epístola de Inácio Mártir aos Romanos IV, 1.

[4] Apologia, XL,13.

[5] “El nombre Cristiano ha sido erradicado”. Sala, Harold J. Why You Can Have Confidence in the BIBLE. Harvest House Publishers, 2008, p. 58.

[6] “Katilin de bir zamanlar bebek olduğunu biliyorum. Bir bebeği katile dö-nüştüren karanlıklar sorgulanmalı… Cennete yalnız ve yalnız sevgi girecek.”

[7] Aydin, N. 2008. Benim adım göklerde yazılı. Istanbul: Gerceğe Doğru Publishers, pp. 12 e 46.

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