O paradigma missionário da pós-modernidade

Breve resumo do capítulo 10 da obra Missão Transformadora, de David Bosch

Philip Rout

A história das missões é acidentada. Gerações passadas são conhecidas hoje pelos mosteiros ou pelas sociedades paraeclesiásticas que fundaram, outras são lembradas por negligenciarem o envolvimento com a missão, por sua imposição cultural, ou até mesmo suas guerras.

  • Como será que os evangélicos brasileiros do século 21 serão lembrados por futuras gerações?
  • Quais erros eles apontarão em nós?

David J. Bosch nos fornece uma lente, ou um espelho, que nos ajuda a responder a essas importantes perguntas.

Bosch dedica a maior parte de seu livro Missão Transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão a uma análise de cinco paradigmas missionários ao longo da história da igreja. Ele começa com o cristianismo primitivo (capítulos 1-4), e segue examinando as principais épocas subsequentes até chegar ao modernismo (“A missão na esteira do iluminismo”, cap. 9). Após essa explanação, ele conclui que “em cada época histórica dos últimos dois milênios, a ideia missionária foi profundamente influenciada pelo contexto geral em que os cristãos viviam e trabalhavam”.[1] Isso nos conduz ao importante questionamento de como nós hoje, em nossa reflexão e ação missionárias, somos influenciados pelas tendências e pressupostos do momento cultural em que vivemos. Ao mesmo tempo, seus insights nos permitem perceber oportunidades que estamos perdendo.

A partir do capítulo 10, o autor procura traçar o caminho rumo a uma missiologia relevante, a começar pela análise das tendências socioculturais da atualidade. Quem lê o livro em 2021 impressiona-se com a perspicácia do autor quanto ao momento histórico em que vivia – a obra foi publicada em 1991, e os últimos 30 anos comprovaram muitas de suas considerações.

O capítulo 10 – “A emergência de um paradigma pós-moderno” – busca analisar a realidade emergente com a cautela que convém ao momento de transição cultural no qual vivemos. A pós-modernidade carrega uma perda de confiança nas certezas que o iluminismo pregava, e, por isso, é um tempo de incerteza profunda. Como sabemos o que sabemos? Em que, ou em quem, podemos confiar? O realismo ingênuo do paradigma antigo se corroeu, e esse processo foi acelerado por duas catastróficas guerras mundiais. Assim, a pura razão instrumental vem perdendo seu lugar de hegemonia, dando cada vez mais espaço para os papéis da história, do sujeito humano e do grupo social no discernimento da verdade (se é que a gente ainda crê nela).

Diante disso, Bosch volta às sete características do iluminismo (discutidas no capítulo 9), e passa o restante do capítulo 10 avaliando como cada uma tem sido contestada pela transição ao paradigma pós-moderno.

  1. A expansão da racionalidade

No auge do paradigma iluminista, pensava-se que a religião morreria, tornando-se obsoleta; mas agora, ao contrário, o que está morrendo é essa ideia, pois o século 20 viu o ressurgimento de várias religiões. Se o iluminismo elevou a razão e a definiu de maneira estreita, agora vemos o próprio conceito de racionalidade sendo expandido e redefinido para incluir elementos outrora negligenciados, como a experiência.

Bosch cita Gregório de Nazianzo que, no 4º século d.C., declarou hereges aqueles que reivindicavam “ter se assenhoreado de Deus por meio dos poderes da razão humana”. Hoje voltamos a nos aproximar da perspectiva de Gregório de que o melhor teólogo não é o que consegue dar um relato lógico completo do seu sujeito, mas o que “congrega mais da imagem e sombra da verdade”.

Assim, há no paradigma pós-moderno um crescente reconhecimento das limitações da linguagem e da impossibilidade de definir algo objetivamente no sentido último. No ambiente da teologia, é possível ver isso na diminuição da prioridade dada à sistemática, que vem cedendo espaço para a teologia narrativa. “Deveríamos (…) reter e defender o poder crítico do iluminismo, mas deveríamos rejeitar seu reducionismo.”[2]

  1. Além do esquema sujeito-objeto

O iluminismo tendia a tratar o mundo físico (e até mesmo outras pessoas) como objetos que podem ser dominados – meta suprema da produção. Bosch argumenta que isso levou a diversos problemas, como a crise ecológica generalizada na qual vivemos: “A cultura iluminista – ciência, filosofia, educação, sociologia, literatura, tecnologia – interpretou mal tanto a humanidade quanto a natureza… de uma forma radical e completa”.[3] Hoje compreende-se a necessidade do pensamento holístico e de se enfatizar a simbiose.

  1. Redescoberta da dimensão teleológica

Teleologia é a ciência ou doutrina que se pauta no conceito de finalidade. Ou seja, é quando as coisas são explicadas não pelas suas causas, mas pelos seus propósitos. É uma perspectiva que foi muito negligenciada pelo iluminismo, com sua ênfase em causa e efeito. Isso explica o niilismo do ocidente hoje, com seus frutos trágicos como as altas taxas de suicídio.

Na pós-modernidade, as pessoas estão voltando a buscar significado: nem tudo é tão previsível, nem tudo é lei e consequência, e os rumos da história podem ser mudados. Isso tem tudo a ver com as noções de arrependimento e conversão, e abre uma porta de oportunidade para a missão cristã, ao mesmo tempo em que recupera a importância da escatologia.

  1. A contestação do pensamento baseado no progresso

Progresso era um elemento forte da visão de mundo modernista, e a influência disso na igreja e na missão evidenciou-se na aliança das missões com o colonialismo e na ênfase mais recente no desenvolvimento. Porém, essas gerações não alcançaram suas metas: “Em termos sociais e ecológicos, os resultados, muitas vezes, beiravam o desastre”.[4] Tornou-se evidente que a tecnologia não resolve nada por si só, mas depende das disposições sociais e religiosas subjacentes.

Um tema fortemente relacionado a isso é a questão do poder. Os ocidentais queriam ajudar o então chamado terceiro mundo, mas sem abrir mão do poder que exerciam, pois isso lhes era tanto indesejável quanto impossível. Nos últimos dois séculos, a lacuna de poder entre norte e sul cresceu em vez de diminuir. Qual a solução? Revolução? Bosch argumenta que o modelo da libertação também se alicerça em pressupostos iluministas falidos, como o do bem inato em (alguns) seres humanos.

  1. Uma estrutura fiduciária

Fiduciário, aqui, significa aquilo que envolve fé. A fé fora empurrada para a periferia no pensamento iluminista, o qual fazia uma distinção radical entre fatos e valores. Mas essa construção toda já ruiu. Agora sabemos que não existe verdadeira objetividade ou fatos brutos, existem apenas fatos interpretados. Isso conduz à valorização da estrutura de plausibilidade do cientista na interpretação dos fatos, a qual é produzida em grande parte social e culturalmente.

Há sempre um compromisso anterior à suposta objetividade, fato este que o cristianismo afirma sem dificuldades desde Agostinho. Assim, citando Michael Polanyi, Bosch propõe reconhecermos a crença como a fonte de todo conhecimento e adotarmos conscientemente uma “estrutura fiduciária”. Mas essa autocrítica não é algo fácil de se fazer. Logicamente, a cosmovisão que uma pessoa adota (conscientemente ou não) pode não ser verdadeira. “É possível, em realidade, que ela seja a Grande Mentira. Ainda assim, ela permanece irresistivelmente persuasiva, já que remove todos os critérios de validade existentes e os repõe para que lhe forneçam esteio.”[5]

Missionários transculturais, que se expõem a diversas culturas e se familiarizam com diferentes cosmovisões, têm uma contribuição rica a fazer às suas igrejas de origem, ajudando-as a reconhecer seus próprios compromissos anteriores.

  1. Otimismo moderado

Semelhante à ideia anterior de progresso, vem crescendo a pressão sobre a convicção iluminista de que todos os problemas podem ser solucionados. Os grandes projetos do ocidente falharam tristemente, e no mundo hoje cresce a decepção, em forte contraste com as esperanças e expectativas de gerações passadas. Atrelada a isso, há uma consciência renovada da realidade do mal e a busca por um novo sentido para a vida. Assim, a falência do falso deus do progresso constitui uma oportunidade para o povo de Deus, cuja mensagem oferece tanto um diagnóstico realista da realidade atual quanto a sólida esperança da volta de Cristo, a qual também confere sentido para o presente.

  1. A caminho da interdependência

O iluminismo deixou um legado de forte individualismo, que conferiu a muitos ocidentais a liberdade individual para procurar sua própria felicidade. Era tudo o que queríamos, mas os resultados têm sido desastrosos! Temos a liberdade para crer e agir como quisermos, contudo multidões já não creem em nada, e passam seu tempo evitando confrontar esse vazio existencial. Perdemos todas as convicções e crenças; resta apenas o niilismo. “A autonomia do indivíduo, tão alardeada nas últimas décadas, acabou na heteronomia; a liberdade para crer no que quer que se decida crer resultou em crença alguma; a recusa de arriscar a interdependência terminou na alienação também de si próprio.”[6]

Duas coisas são necessárias para nos salvar desse abismo e romper com a doutrina da autonomia segundo Bosch. Precisamos:

  1. Reafirmar a indispensabilidade da convicção e do compromisso;
  2. Recuperar a proximidade, a interdependência e a simbiose. Precisamos aprender, mais uma vez, a viver

Ao leitor que percebeu a perspicácia das reflexões de Bosch e sua relevância para o empreendimento missionário do século 21, recomenda-se a leitura completa do referido capítulo e também uma incursão no capítulo 11 (“A missão em um período de testes”)!

 

Sobre o autor
Philip Rout cursou Fisiologia e Estudos Bíblicos e Pastorais (M. Div.). Ele é missionário da Latin Link e pastor auxiliar na Igreja Cristã Paulistana.

 

[1] BOSCH, David J. Transforming Mission: Paradigm Shifts in Theology of Mission. Maryknoll: Orbis, 1991, p. 349. Tradução livre. Em português, a obra foi publicada como Missão Transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002. Todas as indicações de página citadas neste texto são da versão em inglês.

[2] Ibid. p. 353-354. Tradução livre.

[3] Ibid. p. 355. Tradução livre.

[4] Ibid. p. 357. Tradução livre.

[5] Ibid. p 360. Tradução livre.

[6] Ibid. p. 362. Tradução livre.

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