O modelo de Jesus como protótipo para a missão – Parte 1
A essência das boas novas, a forma de se relacionar individualmente e o distanciamento de utilitarismos políticos
Carlos Madrigal Mir
Introdução
A mensagem do evangelho e sua extensão tomou muitas e diversas formas ao longo da história. Isso se deve às mudanças de época e visão do mundo, mudanças culturais ou sociais, religiosas ou políticas. Da igreja primitiva às Ordens Mendicantes, da escolástica ao humanismo, da reforma ao iluminismo, do secularismo ao pluralismo…, foram mil e uma formas de viver o evangelho e de reagir a ele. Em outras palavras, diferentes maneiras de buscar a renovação espiritual em sua essência. De um lado, diante da laxação dos valores cristãos em diversas épocas, sempre apareceu um desejo renovado de regresso aos seus princípios. De outro lado, no contato com cada nova cultura em diversas geografias, havia uma necessidade de encontrar suas chaves universais. Em um aspecto, viveu a diversificação teológica e denominacional na forma de entender a fé no oriente, no ocidente e no norte. Em outro aspecto, sofreu as mudanças de registro ao deslocar a fé do hemisfério norte ao hemisfério sul, e ao se estender até o Pacífico. Todas essas renovações, quando acrescentaram uma revitalização da fé, tiveram um denominador comum: o reencontro com Jesus, a recuperação de algum aspecto de seu modelo.
E não apenas no tempo dos reformadores. Porque os reformadores existiram em todos os tempos da igreja. Por exemplo, Francisco de Assis – que como sentencia P. Raniero Cantalamessa, o pregador dos Papas – fez “um regresso simples e radical ao evangelho real, o que viveu e pregou Jesus, recuperando no mundo a forma e estilo de vida de Jesus e dos apóstolos descrito nos evangelhos”[1].
No ocidente, nos acostumamos a um cristianismo presente no tecido social, que pode elevar sua voz e reivindicar direitos, seja ela escutada ou não. Inclusive, às vezes, trata-se de um cristianismo de espetáculo ou de entretenimento. Mas em culturas em que os crentes não têm nem a presença, nem as liberdades, nem os meios, nem a aceitação religiosa-cultural do ocidente, qual é a chave? Comecemos por dizer o que não é a chave: exportar rasamente modelos e estereótipos de outros lugares. E pouco nos damos conta de quão culturalizadas estão nossas próprias formas de viver a fé. Apenas um exemplo simplório: é bom sublinhar a Bíblia? Sim ou não? Em nosso contexto, quando isso ajuda no aprendizado pessoal, é bom. Mas, no contexto islâmico, é quase uma declaração contra o valor inspirado das Escrituras.
Por isso, é necessário lapidar muito bem para saber o que é cultural e o que é essencial em nossa forma de viver e anunciar as boas novas. E não estou falando aqui de um mero esforço de contextualização, tema hoje em voga e que trataremos mais à frente. Estou falando de identificar os elementos fundamentais do modelo de Jesus, aqueles que são inegociáveis (e que muitas vezes são confundidos com ênfases culturais, deturpações metodológicas ou enquadramentos doutrinais). Se há algo do evangelho que transcende as épocas, as modas e a geografia, é o próprio Jesus[2].
Ligado a isso, em um mundo que hoje aceita o pluralismo como norma de convivência, que sentido levar “outra religião ali onde já há a sua”? Essa pergunta foi, de fato, minha companheira de trabalho há mais de trinta anos, quando mencionei que pensávamos ir a outro país para compartilhar o evangelho. Portanto, devemos responder a esta pergunta: trouxe Jesus uma nova religião? Ou, melhor ainda: o evangelho é mais uma religião? Tem, por acaso, algo a acrescentar além das religiões? Se o que levamos é um mero sistema de crenças e práticas culturais, a resposta é que se trata de mais uma religião. Se o que “levamos” é Jesus – e é necessário matizar o que isso significa – a resposta é que não se trata de uma religião, mas sim de uma relação. Algo como alguém que quer apresentar dois amigos e, então, se retirar da cena.
No ano de 1988, barraram-me pela primeira vez em Istambul por deixar folhetos cristãos nos ônibus. Depois de inúmeros interrogatórios em busca de algum vínculo com o serviço de inteligência de algum país “cristão” (começando pela Espanha[3]), o agente de polícia que escrevia a ocorrência, em uma frase, sentenciou: “O detento apenas busca despertar simpatias por Jesus”[4]. Essa é, de longe, a melhor definição missiológica que ouvi! Porque entendeu que eu não havia sido enviado por uma organização, que não tinha o respaldo político de um país, que não buscava impor uma religião, e que cumpria com a legalidade (estava trabalhando com permissão e a literatura que distribuía havia sido impressa no país por mim mesmo). Ele entendeu que meu único e exclusivo interesse era que as pessoas pudessem ter um encontro com Jesus (a quem eles conhecem como “İsa” (ou “Issa”).
Não temos de ir plantar alguma bandeira, seja ela religiosa, cultural, denominacional, muito menos política… Temos de dar a conhecer uma pessoa que venceu e vence a morte, que é a encarnação do ser humano modelo (a imagem), que não reivindica nem o ocidente nem o oriente, mas que vem do céu e que trouxe a reconciliação do indivíduo com Deus, do ser humano com seus semelhantes, do homem com a criação e de cada um consigo mesmo. Queremos que todo o ser humano se vincule a Jesus, sem perder suas raízes ou sua identidade cultural, e que encontre, assim, a melhor versão se si mesmo e de si mesma, para a glória exclusiva de Deus!
Lembro também de, anos atrás, em um encontro entre pastores na Turquia, sermos questionados: “Se alguém na rua nos perguntasse que necessidade há de igrejas na Turquia, o que vocês acrescentam a esse país, como responderiam de forma que ele/ela pudesse entender corretamente?”[5]. Com base na experiência anterior, nosso grupo chegou à conclusão de que nossa razão de existir como igreja e de estar nesse país é “conhecer e dar a conhecer pessoalmente a Jesus”, nada mais (e nada menos!). Bem, quase todo mundo na Turquia dirá que já conhece Jesus (“İsa”). Mas não se trata de conhecê-lo de ouvir falar, mas de ter um encontro vital com ele. Para isso, é de transcendental importância que, mesmo que sejamos nós que falemos de Jesus a eles, no final, não devem ver a nós, mas ao próprio Jesus. Como disse Felipe a Natanael diante de sua atitude evasiva: “Venha e veja você mesmo” (Jo 1.46). Quer dizer: comprove por si mesmo esse Jesus. Mas Felipe reagiu assim porque antes já havia experimentado “o método” de seu mestre: “Venha em vejam” (Jo 1.39). Ele aprendeu a aplicar o modelo de Jesus!
Muito já se escreveu e se escreverá sobre qual é o modelo de Jesus. Vou prescindir de uma análise sistemática e apenas destacar alguns pontos, talvez contornando outros importantes. E de novo pensando nos lugares “onde o nome de Cristo nunca foi ouvido” (Rm 15.20). Não se trata de buscar uma imitação externa de Cristo, mas de, como destacou o célebre Tomás de Kempis em sua obra monumental De Imitatione Christi: “Se em tudo você busca a Jesus, seguramente encontrará Jesus”.[6] Quando todas as aspirações se colocam nele, ele resplandece sobre tudo. Assim, o propósito de refletir sobre “seu modelo” não é outro senão o de dar a Jesus preeminência e buscar que, na tarefa, destaque-se sua pessoa sobre nós.
É difícil alguém interessado na tarefa global discrepar quanto a esse princípio. Contudo, na hora de colocá-lo em prática, o que realmente buscamos? É fazer as coisas exatamente como ele fez? É simplesmente conseguir o maior número de “decisões” por Cristo? É fazer discípulos “soltos” ou integrá-los em uma denominação? É a prioridade plantar uma igreja ou simplesmente fazer o bem por onde for, e, por meio da obra social, melhorar a qualidade de vida dos necessitados? No passado, vimos uma evolução a partir de um modelo denominacional (missões batistas, com William Carey), passando pelo modelo de agências missionárias (em sua maioria interdenominacionais), e chegando ao modelo de redes (onde todas as estruturas e todos os recursos se entrelaçam ou pelo menos se comunicam). Ao falar do modelo de Jesus como um protótipo para a missão, não quero falar de modelos de organização, mas de modelos de comportamento. Nem confundir a forma (o método ou metodologia de Jesus) com a vocação (princípios que determinam certas ênfases e atitudes. Quero focar os seguintes pontos, sendo que, nesta parcela da publicação, a seguir, estarão desenvolvidos os pontos 1 a 3 e, posteriormente, na segunda parcela, serão abordados os pontos 4 a 7.
1) A essência das boas novas trazidas por Jesus;
2) Sua forma de se relacionar individualmente;
3) Seu distanciamento de utilitarismos políticos;
4) Sua recusa em criar um só grupo exclusivo;
5) O poder de sua simplicidade distante de sensacionalismos;
6) A ênfase na identidade divina de sua pessoa;
7) O encontro com ele, válido para toda cultura.
1. A essência das boas novas trazidas por Jesus
Para começar, assim como refletimos sobre a primeira tarefa comunicada ao homem por Deus em Gênesis [Leia aqui meu texto “Qual o objetivo da missão?”], deveríamos refletir sobre a primeira forma em que se expressa o convite do evangelho. Porque o evangelho deve conter – e contém – o que Deus espera de todo homem, assim como o primeiro comunicado sobre o propósito para o homem em Gênesis continha e contém tudo o que é fundamental do desenho de Deus para a tarefa global. As matizes incorporadas, então, não alteram o propósito primeiro e original.
Jesus pregava (Mc 1.15, Mt 4.17 e outros textos similares):
(a) Chegou o tempo prometido;
(b) O reino de Deus está próximo!;
(c) Arrependam-se;
(d) Creiam nas boas novas!
A que se refere e a que apela cada um desses anúncios? Vejamos duas causas ou premissas – (a) e (b) – que promovem ou demandam duas reações ou consequências – (c) e (d). Além do fato de tais duplicações poderem ser uma repetição complementar e enfática de uma mesma ideia, como traduzi-la (sem traí-la) para que o mundo inteiro, incluindo o “não cristão”, compreenda corretamente?
Em primeiro lugar, e para evitar mal-entendidos, talvez seja necessário sublinhar que certamente esse “reino” hoje em dia não tem, em absoluto, nenhum sentido de aspiração geopolítica[7]. Do contrário, já não seria “o reino dos céus”, como também se costuma chamar[8].
Segundo: não é um chamado para crer em uma doutrina, teologia ou credo, mas crer em um anúncio (o evangelho) sobre a chegada de algo ou alguém. Estava Jesus expressando algo inteligível para seus ouvintes? Entenderiam que ele apenas lhes oferecia ou anunciava a restauração do reino davídico? Em sendo assim, tal anúncio genérico os induziria ao erro, ou o que ele queria comunicar? Entendo que oferecia a eles o restabelecimento das boas relações com o reino por meio do advento do Rei e o encontro com ele. Não creio que seus ouvintes, nem sequer seus discípulos mais chegados, entenderiam essa primeira proclamação em termos de “se creem, já não têm de fazer nada mais para ir ao céu”. Evidentemente, após a cruz e o Pentecostes, o chamado a crer nos méritos de Cristo para o perdão dos pecados ganhou todo o protagonismo. Mas o que quero dizer é que a preocupação de Jesus não era tanto que fizessem uma mudança em postulados doutrinais, mas sim uma mudança de vínculo vital. Explico: sem dúvida, ter um encontro com Jesus, experimentar seu perdão, seu amor, sua força em nós, produz uma mudança de convicções, uma metanoia. Mas não necessariamente nos convencer de seu perdão, seu amor e sua força produz um encontro-vínculo com Jesus. A isso me refiro. E por isso o primeiro anúncio do evangelho (Mc 1.15) me parece tão relevante.
Por muito tempo, acreditei que uma pessoa que não podia expor com clareza o que consiste a salvação pela fé sem obras – na qual não se atribui mérito a ninguém, assim como não se defende que sua perda é por nenhum demérito – não estava aceitando o evangelho. Isso nada mais foi que extrapolar a minha experiência, minha forma de assimilar o evangelho a outros povos e culturas. E devo matizar aqui que a salvação é pela fé e sem obras, ainda que para obras. E, portanto, ninguém deve atribui-la a nenhum mérito, nem pensar que deve ganhá-la de novo por conta de suas quedas. Não deve ganhá-la, mas se arrepender. Sendo assim, é bom que todos tenham um claro entendimento disso. Mas agora penso que, seja qual for a fagulha que ilumine a mente e o espírito, na verdade a “conversão”, o que necessita todo ser humano, é restabelecer sua relação com Deus através de Jesus. E, segundo os matizes de cada cultura e experiência individual, isso em princípio poderá ter diferentes enfoques ou ênfases para um resultado idêntico: entregar-se a ele como seu Senhor e Salvador, nascer de novo, receber o batismo do Espírito Santo, passar da morte para a vida etc.
Colocando de outra forma: em épocas passadas, a forma de induzir as almas a receber a Cristo era ameaçá-las com o fogo do inferno. Hoje em dia, a maneira de atraí-la é voltada a enfatizar o amor incondicional de Deus, um amor que supera suas chamas. Em períodos da história da igreja e em diferentes contextos confessionais, a forma de colocar o penitente em um primeiro contato com Cristo foi por meio dos credos; a princípio, de sacramentos ou de ritos, e, mais adiante, por meio da apropriação da salvação pela fé, em nosso caso. Quando se acaba crendo apenas na fórmula (os credos ou a profissão de fé), não se chega até Jesus. Em um primeiro momento, a priorização dos credos, dos sacramentos ou da profissão de fé era uma maneira de abrir o coração do ouvinte, mas, em não poucas ocasiões, acaba se transformando em um fim em si mesmo. E esse processo de declive esteve e está presente em todas as denominações. Sempre deve haver um regresso, uma (re)orientação em direção a Jesus.
De igual forma, em diferentes contextos, o que ilumina e induz o coração a chegar a Cristo pode variar. Mas definitivamente o importante é superar os obstáculos que nos privam de nos encontrarmos com ele. No ocidente, o que muitos buscaram nele, principalmente, foi livrar-se da culpa. Pelo menos até a chegada do pós-modernismo. Enquanto no oriente, o que apela ao buscador é e foi o estabelecimento da honra, superar a desonra e a alienação. Por outro lado, no Sul global, talvez o que mais encantou foi a capacidade de poder vencer os temores e as cadeias do mundo espiritual. Mas, em todo caso, nem a culpa, nem a vergonha, nem o temor se dissipam como algo abstrato, isso acontece quando vamos àquele que diz: “Venham a mim todos vocês que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso” (Mt 11.28).
Evidentemente tudo isso se fundamenta na vitória da cruz. É aí que toda a culpa, toda a desonra e toda a opressão foram vencidas (Is 28.16; 53.5). Não existe salvação sem a cruz. Mas não existe para as demandas de Deus, antes tudo. Quanto entende o homem das implicações da cruz ao se entregar? Mas o que ele “entende” (ou “deve entender”) é que necessita se entregar àquele que se ofereceu na cruz. E, no primeiro anúncio do evangelho (Mc 1.15), assumo que, mesmo que não se mencione o “dia da expiação” (Lv 23), a páscoa definitiva (1Co 5.7: “Cristo, nossa páscoa”), estaria sempre presente na mente divina[9]. Por isso, ele é o segundo Adão e a imagem em sua condição impoluta. E, por isso, vincular-se a ele é vencer o pecado, a desonra e toda ameaça espiritual. Mas o que aqueles que foram expostos à mensagem antes, e são expostos hoje, tinham e têm de saber é que, sobretudo, ele era/é aquele que em si mesmo comporta todas as coisas: “Cristo Jesus, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção” (1Co 1.30).
Ele é quem, em matizações posteriores ao primeiro anúncio, diz: “Vocês também ouviram o que foi dito a seus antepassados (…). Eu, porém, lhes digo (…)” (Mt 5.33, 34; também Mt 5.22, 28, 32, 39, 44…), ou “(…) ninguém conhece verdadeiramente o Pai, a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho escolhe revelá-lo” (Mt 11.27), ou “Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou” (Jo 5.23), ou “Portanto, se o Filho os libertar (…)” (Jo 8.36), ou de quem se diz “ensinava com verdadeira autoridade” (Mt 7.29; Mc 1.22), ou quem afirma “Toda autoridade no céu e na terra me foi dada” (Mt 28.18) etc. Ele marcava uma diferença que emana de e se centra em sua própria pessoa!
Lembro de um livro de um autor[10] que se desvinculava de qualquer grupo eclesiástico e que, com o título desgarrador Sin Jesuscristo todo es carroña [Sem Jesus Cristo tudo é carniça], arremetia de forma ácida contra toda a parafernália que colocaram em Cristo e que ofuscou sua mensagem. Sim, um evangelho cuja mensagem não seja o próprio Jesus é carniça. E não são poucas as ocasiões em que a tarefa global se faz “convencendo” alguns de que Jesus é a verdade, mas sem “vinculá-los” ao Verdadeiro. Quantos fizeram uma “decisão por Cristo” e, sem mais nem menos, retornam a uma vida sem Cristo. Por quê? Será que os fizemos mais discípulos de nossa doutrina, metodologia, organização, denominação, cultura… que do próprio Jesus vivo? Será que “atravessaram terra e mar para converter alguém e depois o tornaram um filho do inferno do inferno, duas vezes pior que vocês” (Mt 23.15)? Soa duro, amargo, inclusive fora de tom, mas tristemente descreve um aspecto muito preocupante do que está ocorrendo em não poucas ocasiões com a tarefa global.
O tema do reino é extraordinário no NT (umas 120 menções), e progressivamente vai decompondo seu significado até chegar às parábolas do reino e do rei que ajusta contas com seus servos (Mt 18.23): o Filho do Homem que voltará em sua glória (Mt 25.31-34). De fato, esse foi o motivo de seu juízo sumário (Mt 27.11). Assim, “o reino dos céus se aproxima” significa: o Rei se aproxima. Deus brinda a humanidade com a oportunidade de regressar à sua obediência. Esta é a mensagem principal: entrega e obediência ao Rei, a Jesus. Não uma obediência baseada no mero esforço humano, mas que, como ele revelará também, é um esforço assistido pela força do Espírito Santo (Jo 16.7). Portanto, toda a apresentação do evangelho deve pôr sua ênfase neste ponto – podemos anunciar o juízo final, ou o amor incondicional, ou o perdão da culpa, ou a superação de todo rancor, ou a liberdade dos oprimidos, ou a vitória sobre os poderes malignos, ou a restauração da honra, ou a vida eterna, ou o reencontro com os seres queridos, ou a melhora social, ou…, mas, sobretudo, devemos dar a conhecer àquele que é a encarnação e o artífice de todas essas vitórias. Devemos anunciar o Rei! E, mais que anunciá-lo, apresentá-lo em pessoa. Isto é, levar a Jesus e não a uma mera doutrina, ou a uma mera decisão pública, ou a meras regras de comportamento, a uma facção eclesiástica, a um desarraigar de sua cultura… O que nos leva ao ponto seguinte.
2. Sua forma de se relacionar individualmente
Jesus se dirigia muitas vezes às multidões. Nos evangelhos de Lucas e João, contudo, encontramos alguns episódios (que só aparecem neles) nos quais Jesus trata com certos indivíduos de forma muito pessoal. Essas cenas me interessam mais porque, repito, estou pensando sobretudo naqueles contextos em que a tarefa há de se fazer praticamente um a um.
Nesses encontros, nesse contato pessoal com Jesus, o que descobriram ou experimentaram essas pessoas? E Jesus, como as tratou? O que ofereceu a elas? Como as iluminou e como as reconduziu ao reino? Assim como já recordamos antes, ainda não havia chegado o momento da cruz. Sendo assim, como e do que as redimiu? Completou a obra nelas, ou deixou o trabalho inacabado? Elas puderam, de sua parte, se apropriar de todos os benefícios do reino? Evidentemente, como nos recorda Paulo sobre os pecados de eras anteriores à cruz, eles foram “deixados impunes”, ou seja, ficaram à espera “da redenção, da propiciação pelo sangue”, à sombra da cruz vindoura (Rm 3.24-25). Assim, as bênçãos que essas pessoas que se encontraram com Jesus receberam, digamos, ficaram pendentes de ratificação final pelos méritos da cruz. Foram outorgadas de forma antecipada, mas com vistas ao efeito retroativo do calvário, isso porque tais pessoas as estavam recebendo do mesmo Jesus. Não creio em um evangelho sem a cruz. Mas menos ainda em uma cruz às custas de Jesus. O que tento dizer é que, quando a cruz ainda não estava presente, Jesus bastava. E, na hora de apresentar a mensagem da cruz, nossa ênfase deve estar no crucificado, ressuscitado e ascendido ao céu. Por tudo isso, os encontros de Jesus antes da cruz eram, são e podem ser de inspiração para nossa maneira de introduzir o evangelho em latitudes desconhecedoras da cruz ou reticentes a ela. Quer dizer, devem nos ajudar a saber onde colocar a ênfase.
Cada encontro de Jesus com alguém possuía uma atitude “pessoalizada” – são diversas as formas como Jesus tratou cada uma dessas gentes. Em todos os casos, no entanto, achamos pelo menos dois denominadores comuns. O primeiro: Jesus orou por elas, declarou sua saúde ou liberação, tocou-as, abraçou-as, alimentou-as… provocou uma mudança nelas. O segundo: Jesus falou com elas, revelou ou ensinou algo de sua pessoa, ou as confrontou com ele mesmo. Mostrou que a solução é ele. Colocou-as em contato com o divinal e com o divino, com o céu e com o celestial, com o reino e com o rei. Sem dúvida, o salvo-conduto para o “transporte” ao reino (Cl 1.13) leva e deve levar o selo exclusivo da cruz (2Co 2.2). Mas, se a cruz é a ponte levadiça, o que baixa a ponte e nos leva através dela é o Filho (Cl 1.13), é Jesus Cristo (2Co 2.2). Se não se dá um encontro com ele, é impossível atravessar a ponte. E é impossível que o encontro real com ele não nos leve através da ponte, mesmo quando nossos olhos estão tão centrados nele que sequer possamos perceber a ponte.
Sem dúvida, uma das chaves que nos permitem chegar a vê-lo – especialmente agora que não está fisicamente entre nós – é descobrir seu amor, seu perdão e sua vitória na cruz. Assim, não falo de evitar a mensagem da cruz, mas de colocá-la em seu verdadeiro lugar: detrás de Jesus[11]. Quem descobre Jesus, quem tem um encontro real com ele, indefectivelmente acaba entendendo a necessidade da cruz. E mais, em nossa experiência na Turquia, a primeira coisa que muitos turcos querem fazer ao receber o Senhor é pendurar um crucifixo no pescoço. Em uma ocasião, perguntei: “Entendo que queiram levar um sinal de identidade, mas por que em lugar de uma cruz (o símbolo somente) usam um crucifixo (uma cruz com a figura do crucificado)? Vocês não se dão conta que pode ser confundido com um fetiche, um ídolo?”. A resposta foi inapelável: “A cruz é símbolo das cruzadas, e produz repulsa. O crucifixo dá margem para que te digam: ‘Pobre homem, por que acabou ali?’. Gera compaixão e demanda um esclarecimento-testemunho”.
Voltando aos personagens do NT que tiveram um encontro com Jesus, já mencionamos que Lucas e João são os que acrescentam maior número de casos peculiares (ou seja, que aparecem somente nesses evangelhos). Refiro-me a encontros com terceiros, fora do círculo de seus discípulos, achegados ou familiares: com a viúva de Naim (Lc 7.11-17); com Simão, o fariseu; com a prostituta (Lc 7.36-50), com o homem hidrópico (Lc 14:1-6), com os dez leprosos (Lc 17.11-19) e do encontro com Zaqueu (Lc 19.1-10). Falo do encontro com Nicodemos (Jo 3.1-21), com a samaritana (Jo 4.1-42), com o filho de um nobre curado (Jo 4.43-54), com o paralítico de Betesda (Jo 5.1-18), com a mulher adúltera (Jo 8.1-11) e com o cego de nascimento (Jo 9.1-41).
Aos já citados, acrescentaria pelo menos o caso do centurião, cujo relato compartilham com Mateus (8.5-13) e Lucas (7.1-10). Poderiam também ser acrescentados aqueles casos compartilhados pelos três sinóticos: o leproso (Mt 8.1-4; Mc 1.40-45; Lc. 5.12-16), o endemoninhado gadareno (Mt 8.28-34; Mc 5.1-20; Lc 8.26-39), o paralítico cujos pecados são perdoados (Mt 9.1-8; Mc 2.1-12; Lc 5.17-26), a filha de Jairo e a mulher que tocou seu manto (Mt 9.18-26; Mc 5.21-43; Lc 8.40-56), o homem da mão ressequida (Mt 12.9-14; Mc 3.1-6; Lc 6.6-11), o rapaz endemoninhado (Mt 17.14-21; Mc 9.14-29; Lc 9.37-43), o jovem rico (Mt 19.16-30; Mc 10.17-31; Lc 18.18-30) e o cego de Jericó (Mt 20.29-34; Mc 10.46-52; Lc 18.35-43).
O que podemos aprender de tais encontros? Não vou estudá-los um por um, mas vou tratar de destilar sua essência. De um lado, são casos de libertação e saúde; de outro, de acareação e exposição da pessoa de Jesus. Entre seus protagonistas, uns acabaram se afastando de Jesus, outros o seguiram. Em algumas ocasiões, as pessoas buscaram Jesus; em outras, ele as buscou. Alguns casos ocorreram diante dos olhos de todo o mundo e suscitaram grande admiração ou críticas acérrimas; outros ocorreram em segredo, e Jesus os quis manter assim. Em alguns casos, Jesus ajudou os inválidos e marginalizados; em outros, abordou os principais e poderosos. Mas todos esses encontros constituíram um antes e um depois nas vidas de seus protagonistas. E em todos eles Jesus aparece como alguém completamente diferente de tudo o havia sido visto e ouvido anteriormente.
Jesus colocou todos os seus interlocutores em contato com o sobrenatural e com o ser sobrenatural. Não apenas pelas curas ou milagres, mas também em todos aqueles casos nos quais os interlocutores o desfiaram com sua retórica. Como se aplicam todos esses casos aos contextos e desafios globais de hoje em dia?
Sem entrar na discussão de se devemos ou podemos reproduzir os sinais e os milagres de Jesus, creio que o que todos esses exemplos nos ensinam é que hoje nossa tarefa continua sendo levar todo o mundo ao encontro com ele. E de que maneira isso é possível? Uns dirão que pelo conhecimento bíblico, outros dirão que pelas manifestações de poder. Uns por “sabedoria”, outros por “sinais” (1Co 1.22). Eu digo que pelo convite a invocar a Jesus e deixar que ele faça! Ou seja, dizendo “Veja e veja você mesmo” (Jo 1.46). Vou propor um exemplo.
No contexto do islã, pode-se dizer que não são poucos os muçulmanos que estão à espera – ainda que não saibam – de que cheguemos e invoquemos a Jesus por eles e com eles. A que me refiro? Todo muçulmano deveria clamar a Alá cinco vezes ao dia, mas a grande maioria não o faz. Isso porque o sentir determinante é que essas rezas apenas causam efeito na vida prática. Então, mais que nas orações rituais, o que realmente creem é na bênção (como palavra que invoca um bem) e na maldição (como invocação de um mal). Creem mais no bem ou no mal que possa sair de seus lábios – ou de qualquer um – do que na eficácia das rezas.
Até os que são ateus entre os muçulmanos creem nesse poder, ou pelo menos sentem certo respeito. Como exemplo, cito a decana de História na Universidade de Istambul onde estudou nosso filho. Em suas aulas, ela continuamente arremetia contra a credibilidade dos textos bíblicos (e o único que respondia era ele). No dia da formatura, fui a ela apresentado em meio ao burburinho da multidão que enchia o pátio como “pastor da igreja”. A reação imediata dela foi: “Ai, eu acredito muito nas orações, por favor, não se esqueça de me abençoar em suas súplicas”. Diante de tal oportunidade, prontamente lhe falei: “Por que não orar agora?”. Assim, ali mesmo, impus as mãos e a abençoei.
Que implicações práticas isso tem? A maneira mais eficaz de fazer a tarefa é orando no nome de Jesus em toda dimensão a que isso se relaciona. É invocá-lo, ou seja, bendizê-lo em sua presença. Em consequência, colocar as pessoas em contato com o Deus vivo! Neste ponto, Jesus entra em cena. Isso é o que abre as portas dos corações. Outro tipo de “evangelismo” é rejeitado e interpretado como intromissão colonialista ou imperialista. Mas todos estão abertos a receber um bem espiritual! Todo muçulmano crê em Jesus (mesmo que seja apenas como profeta), sabe que nasceu de uma virgem, que curou enfermos, ressuscitou os mortos, saciou os famintos, pregou o amor, a paz e a justiça, não tomou parte em nenhuma guerra… Sabe, inclusive, que ele voltará um dia à terra, e que sua religião ensina que ele é o único que intercederá por ele ou ela no dia do juízo! Dessa forma, se nos propomos a orar em seu nome, em seu coração, a pessoa dirá: “Por que não invocar suas bondades agora?”. Não se trata de uma conversão, mas de uma porta aberta. Não é isso que fazia o próprio Jesus? Orar pelas pessoas?
Marcos afirma que o evangelho não é apenas um relato sobre Jesus, mas que a boa nova é o próprio Jesus (Mc 1.1; 8.35; 10.29). A missão é e deve ser com Jesus. Em suma: a missão é Jesus! A forma para que isso seja uma realidade além de enunciados teóricos é convidando as pessoas a ter um encontro com ele. Um encontro tão simples e tão sublime quanto receber resposta à oração feita em seu nome. É como apresentar a alguém um amigo, e então se colocar ao lado para que eles se tratem pessoalmente. (Sem, é claro, comprometer a necessidade do discipulado.)
Assim, entre os muçulmanos, Jesus aparece em sonhos a alguns, liberta outros da opressão demoníaca, concede a mulheres estéreis ficarem grávidas… Ou simplesmente inunda de paz o coração de muitos. Descobrem que em vez do Deus da represália e do ódio que tinham em mente, aquele Deus de amor, que por outro lado esperavam, existe.
O próprio Jesus, que na grande comissão disse: “Toda autoridade no céu e na terra me foi dada. Portanto, vão…” (Mt 28.18-19), em Mateus e Lucas diz: “Meu Pai me confiou todas as coisas. Ninguém conhece verdadeiramente o Filho (…) e o Pai (…), a não ser aqueles a quem o Filho escolhe revelá-lo” (Mt 11.27; Lc.10.22). Em suma: a autoridade sobre a qual se fundamenta a grande comissão é equivalente à autoridade de dar a conhecer o Filho (e nele, o Pai; Jo 14.9-11). E que ele se encarregue do resto. A forma de conseguir isso é pôr homens e mulheres sem Cristo em contato com o Cristo vivo, invocando-o em favor deles na presença deles. Não falo de apenas um recurso do qual dispõe o crente, mas da forma de estender as boas novas, de fazer missão com a oração-benção, e, por consequência, com Jesus!
Evidentemente, a coisa não termina aqui. Seja diante das multidões, seja nos encontros privados, Jesus nunca perdeu a oportunidade de ensinar e proclamar a verdade. Inclusive, no caso dele, o ensino vinha primeiro: “Jesus viajou por toda a região da Galileia, ensinando nas sinagogas, anunciando as boas-novas do reino e curando as pessoas de todo tipo de doenças” (Mt 4.23); “Jesus andava por todas as cidades e todos os povoados da região, ensinando nas sinagogas, anunciando as boas-novas do reino e curando todo tipo de enfermidade e doença” (Mt 9.35).
A reiteração em Mateus não é distorcida ou irrelevante. Demonstra um padrão de comportamento. A primeira atividade que encontramos no relato é “ensinar”. Mas antes disso ainda, encontramos aquele que ensinava: Jesus. Encontramos primeiro aquele que percorria as aldeias. Inclusive, naqueles casos em que Jesus enviava seus discípulos primeiro, enviava para que preparassem sua visita: “Depois disso, o Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou adiante, dois a dois, às cidades e aos lugares que ele planejava visitar” (Lc 10.1, ver também Lc 1.17, 76; 3.4-6; 9.52). Dessa forma, o ensino deve estar precedido dele ou centrado no falar dele. O foco é fazê-lo conhecido, preparar sua chegada. Por isso, em toda ocasião, antes ou depois, deve-se buscar e invocar seu nome. Todo o resto deve estar subordinado a isso. Qualquer exposição da mensagem do reino (como nos capítulos 5 a 7 de Mateus) é presidida não apenas pelo ensino a respeito da natureza de tal reino, de como entrar nele e de como viver e servir nele como súditos, mas pelo fato de que é SEU ensino, que tudo é “por causa dele” (Mt 5.11). É ele quem ensina dizendo: “Eu, porém, lhes digo…” (Mt 5.22, 28, 32, 34, 39, 44).
Nós apenas podemos ser porta-vozes à sua sombra, ou seja, o abrigo de seu nome, o que, repito, significa invocá-lo. Ou seja, são as “boas novas” do Messias-Rei que libertam de toda penalidade, escravidão, alienação, medo… Isso acontece quando o apresentamos em pessoa em seu reino, em sua área de influência e benção. Podemos apenas ser suas mãos ajudando o desvalido, seus lábios consolando o compungido, seus olhos indicando o caminho…, mas é ele quem há de restaurar o que busca, levando-o ao encontro com o que está vivo (Lc 24.5). Não se trata apenas de ter boas palavras sobre Jesus e seu ensino, mas de colocar as pessoas em contato com o Jesus que ensina, invocando-o. Tampouco se trata de dar uns tapinhas nas costas dos necessitados, mas sim de reascender a presença de Jesus atuando como ele e sob ele, ou seja, invocando-o. É dele que todos necessitam!
Faço essa ênfase de forma intencional pensando na tendência cada vez maior de alguns círculos em ensinar os valores do reino sem proclamar a exclusividade do Rei[12]. Isso acontece especialmente em contextos em que uma clara identificação com Jesus implica risco de morte, repúdio da família ou exclusão da sociedade; onde acusações de traição, intrusão estrangeira e destruição da cultura ou das tradições encurralam aquele que o nomeia ou invoca. Por isso, alguns dizem que aceitar os valores do reino e se entregar aos princípios do reino basta para entrar nele, e os que assim se aproximam, de alguma maneira, ficam sob a custódia do Rei, sem ter de se arriscar por causa de seu nome.
Bem, isso não é o que diz o evangelho, nem como os primeiros cristãos abordaram os riscos, e esse não é o modelo de Jesus. Ele sabia que a fidelidade à sua pessoa seria pedra de tropeço, motivo de escândalo, causa de perseguição…, e não por isso rebaixou o nível. Seu nome deve estar acima de tudo. Isso não implica proclamá-lo aos quatro ventos onde a vida corre perigo – não estou falando disso –, mas de não apresentar um evangelho que ensina que é suficiente aplicar os valores do reino em um dado contexto, mesmo que o nome permaneça relegado a um segundo plano ou tenha de compartilhar a palestra com outros nomes. Um exemplo disso seria a tendência de alguns a compaginar Jesus e Maomé.
Em Jesus não há insultos em relação a outras religiões. Também não há, certamente, meias medidas quanto à sua pessoa e seu lugar de proeminência exclusiva. Isso porque só no contato exclusivo com ele há libertação. Isso é o que nos ensinam, no mínimo, todos os casos de encontro pessoal com Jesus nos evangelhos.
3. Seu distanciamento de utilitarismos políticos
Jesus não desqualifica, mas mostra bondade para com os pagãos (Mt 8.5; 15.21), ao mesmo tempo que arremete contra a hipocrisia e intransigência de seus correligionários (Mt 23). Jesus toma partido pelos deserdados (Lc 4.18; 14.13), e exorta todos para que busquem seus tesouros, morada, amigos e herança nos céus (Mt 6.19-20; 19.21, 29; Lc 16.9; Jo 14.1-3), a fim de que sejam solidários na terra (Lc 6.30, 38; 11.41; 12.33). Isso porque seus olhos não estão ancorados neste mundo (Jo 8:23), ou em suas ambições (Jo 8.50) e facções (Lc 7.33-34, 36). Assim, incorporou ricos e pobres em seu círculo (Mt 27.57; Lc 6.20), homens e mulheres (Lc 8.1-3), partidos políticos e apolíticos (Lc 5.27; 6.15), clérigos e profanos (Jo 7.50; 19.39; Mc 12.15). Jesus reclama total dedicação à vontade de Deus (Mt 4.10; 6.24) ao mesmo tempo que intima a que se dê a César o que é de César (Mt 22.21). Denuncia que o mundo está sob o poder do maligno (Jo 12.31; 14.30; 16.11) ao mesmo tempo que se relaciona com os mais mundanos (Mt 9.10; 11.19). Rejeita os bens terrenais (Mt 8.20) ao mesmo tempo que oferece multiplicá-los àqueles que abandonam tudo por sua causa (Mc 10.29-30). Evita o confronto com os políticos (Mc 8.15; Lc 13.32; Jo 18.36) ao mesmo tempo que deforma e enfeia o exemplo deles (Mt 20.25-28). Submete-se às autoridades (Mt 5.41; 17:25-27) ao mesmo tempo que joga na cara delas que não têm nenhuma autoridade sobre ele (Jo 19.11). Conviveu com todos e em todo lugar, e se desprendeu de todos e de todo seu afã!
Por que são importantes essas distinções? Porque Jesus não tinha interesse nos poderes deste mundo, nem em rivalizar com as religiões. No entanto, essa é a acusação mais comum contra aqueles que levam seu nome às culturas e contextos religiosos fechados. Isso, em parte, é um mecanismo de defesa gerado pelo temor a toda novidade que é percebida como ameaça. Mas se deve também ao fato de, lamentavelmente, o evangelho ter se emaranhado demais com valores culturais e políticos dos mal denominados países cristãos. Essas atitudes constituem uma barreira alheia às Escrituras, e atrapalham a tarefa global.
Falo de novo de um exemplo a partir de nossa experiência em um contexto muçulmano. Hoje em dia, há uma euforia entre certos setores evangélicos pelo Israel político e por recuperar os rituais judaicos – aos que expresso todo meu respeito –, como se deles emanasse uma benção especial. Na realidade, isso não faz nada além de, consciente ou inconscientemente, respaldar certos lobbies políticos e construir um muro de separação na hora de compartilhar o evangelho com os muçulmanos, pois os evangélicos são vistos como um braço do sionismo. Reafirmo meu mais sincero apreço por todos os israelitas e por todas as nações, bem como minha admiração por todo o simbolismo e pela profunda carga de significado presente em todos os rituais do Antigo Testamento. Mas se o Novo Testamento nos impele a deixá-los para trás (Hb 8.13; 2Coríntios 3.11, 13), e se hoje em dia tal aclamação pode ter outras conotações (contrárias à mensagem evangélica de reconciliação entre os povos), não estaremos, assim, nos esquecendo e nos afastando do modelo de Jesus? Não somos conscientes de que, ao apoiar certos símbolos e reivindicações que levam uma forte carga política, estamos tomando partido por uma facção da humanidade e repudiando outras?
Em 1996, Samuel Huntington, em seu livro O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial[13], colocou o dedo na ferida ao pressagiar o iminente enfrentamento de blocos que aconteceria depois do fim da guerra fria. Segundo ele, o próximo choque seria entre a civilização resultante do cristianismo e aquela abandeirada pelo islã. Os atentados de 11 de setembro de 2001, de 11 de março de 2004 e a invasão do Iraque pareciam confirmar, sem espaço para dúvidas, suas premonições.
Mas qual é o enfoque que nos dá Jesus e, portanto, o que nós deveríamos abraçar como cristãos? Antes, gostaria de recordar um dos primeiros incidentes entre Israel e os “palestinos” (os filisteus). Aquele incidente no qual Josué perguntou ao anjo do Senhor (o príncipe dos exércitos de Yahvé) de que lado ele estava não deixa lugar para dúvidas: “Você é amigo ou inimigo?”, perguntou. E ele respondeu: “Na verdade, cheguei agora e sou comandante do exército do Senhor” (Js 5.14-15). Não estava a favor de bandeiras na terra, mas dos planos divinos no céu. Do mesmo modo, creio que, como crentes, chamados a ser arautos daquele que veio a ser “nossa paz, [e] dos povos fez um” (Ef 2.14), devemos nos desprender de qualquer posicionamento a favor de um ou outro bloco, só que tristemente muitas vezes vemos o contrário. Não deveria estar nossa cidadania nos céus?
Fazendo uma revisão muito rápida do lapso da história entre o século sétimo (data do surgimento do islã) e nossos dias, no que diz respeito às relações entre “mouros e cristãos”, podemos dizer que: no século 7, apresentamos um cristianismo politeísta (Deus Pai, Deus Mãe e Deus Filho[14]), pregamos a eles um evangelho de cruzadas nos séculos 12 e 13[15], e então os colonizamos para humilhá-los e despojá-los de sua dignidade e suas terras nos séculos 19 e 20[16].
É bem verdade que não se pode dizer, precisamente, que eles “não tenham quebrado um prato”, já que arrasaram a cristandade do norte da África nos séculos 8-9, devastaram o bastião bizantino nos séculos 15-16, e puseram em xeque todo o ocidente nos séculos 20 e 21. Dito nas palavras de Huntington: “O perigo de choques do futuro provavelmente surgirá da fricção entre a arrogância do ocidente e a intolerância islâmica” (1996: 183). Onde estamos ou deveríamos estar? Devemos denunciar a intolerância ou seria melhor nos despojarmos de nossa arrogância? Creio que a melhor maneira de combater qualquer tipo de intolerância comece por aprender a respeitar, inclusive, o que nos parece uma ameaça. Os turbantes nos assustam, as barbas ou os hijabs…, mas a imensa maioria está tão preocupada, como nós, em chegar ao fim do mês, em pagar as parcelas de uma hipoteca e em levar os filhos a uma boa escola!
Como cristãos, devemos evitar demonizar outras partes, e recuperar o evangelho do amor aos que nos são hostis (Mt 5.44), o evangelho do “vençam o mal praticando o bem” (Rm 12.21). O islã se autodefine como a religião da paz, do “salam” (equivalente ao “shalom” hebreu), mas deve pregar com o exemplo. A fé cristã se define como “o evangelho da paz” (At 10.36; Ef 6.15), “da graça” (At 20.24) e “da salvação” (Ef 1.13). Por isso, devemos reconhecer os erros do passado, mesmo que os atribuamos mais à cristandade nominal do que ao “remanescente fiel” da igreja, e também devemos pregar com o exemplo. Apenas existe uma maneira de vencer as hostilidades: passando uma borracha e virando a página das feridas ou de velhos preconceitos, tentando conhecer e, assim, amar o máximo possível o “outro”, mesmo se “quanto mais eu os ame, menos vocês me amam” (2Co 12.15) Esse é o modelo de Jesus! E deveria ser o nosso também!
Devemos buscar o delicado equilíbrio que Jesus manteve para se relacionar com todos sem se comprometer com os interesses partidaristas de ninguém, para receber os diferentes sem pré-requisitos e, ao mesmo tempo, chegar a ver transformados seus corações. O mesmo poderíamos dizer sobre a forma de chegar nos grupos indígenas e não destruir suas culturas com uma patada da civilização ocidental e sua exploração econômica. Não posso falar com conhecimento de causa nesse caso pois não tenho experiência, mas estou seguro de que há muitos valores que nos chocam – só que não são contrários ao evangelho –, e devemos aprender a respeitá-los. São valores com os quais devemos conviver estando entre eles, ajudando, inclusive, a preservá-los.
Necessitamos de uma reforma da Reforma, e passar das atitudes dogmáticas às encarnacionais[17]. Ou seja, aprender a “ser semelhantes em tudo a [povos] irmãos…, mas sem pecado” (parafraseando Hb 2.17 e 4.15). Não falo de uma mera contextualização (reproduzir as formas) ou enculturação (apropriar-se dos conteúdos), mas de uma atitude encarnacional (nos identificarmos como um deles). Como se costuma dizer: nos colocarmos na pele do outro. Mas aqui o assunto é não içar bandeira por nenhuma ideologia ou bloco, apenas por Jesus. E não é que alguém, como cristão, não possa ter sentimentos patrióticos, orgulho por sua seleção nacional ou preferências políticas (e, inclusive, se envolver em política). Mas, quando fazemos algo em seu nome, devemos fazer como Jesus: sem misturar o seu com outros “nomes”.
Jesus não tomava partido, nem por Roma, nem pelos dissidentes zelotes. Entrava nas casas de publicanos (considerados traidores, como Zaqueu, Lc 19.1-10), assim como de fariseus (legalistas intransigentes, como Simão, Lc 7.36-50). Tratou com aqueles que não se conformavam com o sistema social e religioso da época. Ministrava tanto a pobres e marginalizados quanto a ricos e poderosos, mas a todos confrontava com um reino alheio a este mundo, porém capaz de transformar o mundo para o bem. Desde dentro, desde a transformação do coração e rejeição de todo sectarismo. Pela superação do primeiro dos fanatismos: o ódio fratricida de Caim contra Abel. Ele buscava a reconciliação, a misericórdia, o amor, a justiça, a solidariedade, a honestidade, o arrependimento e o perdão de pecados.
Jesus era cuidadoso em sua atitude em direção a todos, e mostrava um delicado equilíbrio na hora de evitar tomar partido entre facções – como no caso do tributo a César (Mt 22.15-22), não como aqueles que retorciam as normas religiosas em benefício próprio e em detrimento dos demais (Mt 23). Essa hipocrisia existe em todas as religiões e confissões, porque é uma enfermidade inata ao homem em general. É necessário denunciá-la? Isso nos leva a outra pedra de tropeço desnecessária, fomentada por atitudes intransigentes na hora de confundir a proclamação da verdade com a desqualificação de outras religiões e culturas.
A fidelidade à verdade nos exige desqualificar ou demonizar as outras religiões? É legítimo desmascarar o engano e a falsidade onde se encontram, mas não escutamos Jesus dizer nada, por exemplo, contra os pagãos e suas crenças. Ele não começa atirando contra a idolatria deles como condição prévia para recebê-los, para orar por eles e para libertá-los. Jesus não vai além de colocar a forma de rezar (Mt 6.7) deles, ou seu olhar angustiado para o futuro, como exemplos a evitar (6.32), ou de comparar os impenitentes da igreja com um deles (Mt 18.17)[18].
O restante do Novo Testamento fala pouco mais sobre a idolatria, e, quando o faz, não é como crítica aos pagãos, mas em advertência aos crentes a não contemporizar com a idolatria.[19] No entanto, Paulo, em seu conhecido discurso em Atenas, aproveita a crença nos ídolos como base para pregar o evangelho (At 17.16-31). Fora isso, pouco mais se menciona sobre o tema.[20]
É evidente que no Novo Testamento não há uma obsessão por desqualificar os pagãos e suas crenças. Na Palavra, não há uma luta entre credos, mas entre sinceridade e falsidade, entre bem e mal, entre misericórdia e juízo, entre amor e ódio, entre santidade e pecado, entre reconciliação e intransigência, entre perdão e rancor! A sinceridade, o bem, a misericórdia, o amor, a santidade, a reconciliação e o perdão são e devem ser nossa única bandeira. Difícil e delicada bandeira! Mas, ao mesmo tempo, abençoada e aguardada pelo mundo.
Em contrapartida, a denúncia contra os escribas e fariseus ocupa um volume considerável nos evangelhos. Baseando-se nisso, muitos, por muito tempo, entenderam que a forma de defender a verdade é denunciando o erro dos outros com toda aspereza. Mas também aqui, em Jesus e em todo o Novo Testamento, há um delicado equilíbrio que devemos discernir.[21] Que conclusão podemos tirar do que foi dito até aqui sobre a atitude de Jesus e as Escrituras? Em minha humilde opinião, há três princípios que devemos considerar:
1) No Novo Testamento, achamos mais uma crítica à falta de integridade interna que…
2) uma crítica às crenças externas. Em contrapartida,…
3) sim, há uma crítica sem titubear aos desvios tangenciais (a heresia).
O primeiro constitui o direito e até o dever de denunciar a hipocrisia entre os correligionários. O segundo mostra o respeito que deve ter o estrangeiro frente a outras religiões, mesmo que a nosso ver representem o maior dos erros.[22] O terceiro consiste em uma clara denúncia daqueles cujos desvios surgem entre as filas dos “cristãos” e se dividem a partir deles (como Alexandre, o latoeiro, em 1Tm 1.20 e 2Tm 414). Interessa para nós aqui o segundo princípio, o de uma crítica comedida às religiões externas. Com respeito, amor e franqueza, sempre se pode mostrar o erro.
Quando chegamos a terras de “outras” religiões e descobrimos não erros mas o mesmo grau de hipocrisia dos fariseus (ou pior), devemos elevar a mesma voz de denúncia que achamos em Jesus? Isso seria visto como a agressão de “uma” religião a “outra”. Não no caso daqueles que converteram “dessa” religião a “outra”. Quer dizer, aquele que é natural do lugar, que cresceu nessa cultura e que, por vontade própria, abraçou o evangelho é quem tem o direito, não como invasor externo, mas como filho de sua terra, de denunciar tais hipocrisias entre os que foram seus correligionários. Mas uma coisa é a hipocrisia, outra, o erro. Jesus não contrariou os fariseus por suas crenças, mas por suas práticas dolosas. E, muitas vezes, permuta-se a denúncia da hipocrisia por uma denúncia pública às crenças, o que não é a maneira de Jesus, não é o caminho a seguir. Não é inteligente tentar arrancar um osso dos dentes de um mascote, nem mesmo de seu próprio mascote. É melhor jogar um suculento pedaço de carne, e, imediatamente, ele abandonará o osso.
Jesus não veio para construir novos muros, mas para derrubar os muros de separação entre os povos (Ef 2.14) e destruir as obras do diabo (1Jo 3.8). Não juntou a seus discípulos muitos antagonistas e os ensinou a conviver em harmonia? Publicanos, zelotes, pescadores, parentes do sumo sacerdote, helenizantes e judaizantes. Ele não veio para derrubar pontes, mas para construí-las![23]
Inclusive, me atreveria a ir além. Devemos saber valorizar o que há de culturalmente positivo também em outras religiões porque, como está escrito: “Se cumprimentarem apenas seus amigos, que estarão fazendo de mais? Até os gentios fazem isso” (Mt 5.47). Censuraremos o gentio que saúda seu irmão apenas pelo fato ser um pagão? Deixaremos, por eles, de nos saudar para nos diferenciarmos deles? Podemos encontrar coisas positivas, inclusive inspiradoras, em outras culturas e religiões, o que não quer dizer claudicar diante delas. De fato, Jesus não competia com religiões, mas com tudo aquilo no coração do homem que se afasta de Deus. O que nos faz livres não é insistir sobre o erro, mas proclamar a verdade!
A amabilidade para com todas as pessoas, seja qual for sua idiossincrasia (“Que todos vejam que vocês são amáveis em tudo que fazem”, Fl 4.5), o respeito às sensibilidades culturais sem discriminação (“Não ofendam nem os judeus, nem os gentios, nem a igreja de Deus”, 1Co 10.32) e a dignificação de todos, não importa a afiliação (“Tratem todos com respeito e amem seus irmãos em Cristo. Temam a Deus e respeitem o rei”, 1Pe 2.17), não tem nada a ver com eclipsar a verdade, mas com comunicá-la em amor e respeito. Não podemos ser prepotentes a ponto de subestimar culturas milenares desqualificando tudo. Isso é chauvinismo. Não falo de contemporizar, transigir ou comprometer a mensagem fazendo concessões, mas o contrário. Trata-se de escutar a mensagem porque acharam um mensageiro que os ama tal qual são, que os aceita sem reparos, mesmo que não esteja de acordo com eles. É assim que o mensageiro ganha o direito de ser escutado: quando se distancia de posturas hostis, dos bandos e facções, como fez Jesus. Guardemos nossa indignação e censura para fazer autocrítica. E façamos com que as pessoas sintam que têm um novo valor para Deus, como Jesus fez. Reflitamos em nós a imagem para que queiram para eles mesmos a imagem!
A seguir (à esquerda) está o “mais perfeito soneto cristão de contrição”[24] segundo alguns. Ele tem um intrigante paralelo com o poema sufi muçulmano (à direita) de uma época bem anterior. Negaremos sua beleza apenas por sua origem? Ao lê-los, não nos assalta a dúvida de se, no soneto cristão, há traços do muçulmano?
Isso demonstra que, em todos os corações, há os mesmos desejos, mesmo que nem todo o mundo tenha toda a luz necessária. Justino († 165) considerava que as religiões do mundo continham sementes latentes do evangelho que estavam esperando o risco, a iluminação da Palavra de Deus, para poderem germinar.
Jesus se aproximava de partidários e críticos deste ou daquele bando. Mas, precisamente por isso, chegava às pessoas da rua, porque não representava nenhuma facção, nenhuma estrutura humana, apenas o céu e a si mesmo. O que ou quem representamos nós?
Mas se Jesus não queria representar nenhuma instituição, o que podemos dizer, então, da igreja? O frescor de Jesus sufoca sua “institucionalidade”?
A Parte 2 de “O modelo de Jesus como um protótipo para a missão” está disponível aqui
O texto foi extraído do livro Recomponiendo La Missión Con Jesús – Reflexiones sobre la misión, sobre la tarea global y sus implicaciones para el mundo [Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo], publicado na Espanha por Impresiones em 2018. O Martureo recebeu autorização do autor para traduzi-lo e publicá-lo. Tradução: Lucas F. R. Juknevicius. Edição: Fernanda Schimenes.
Sobre o autor
Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.
[1] Primeira Pregação do Advento, Francisco de Assis e a Reforma da Igreja pela Via da Santidade, Cidade do Vaticano, 07.12.2013 (título e nomes traduzidos ao português).
[2] Por mais que tenham rotulado o próprio Jesus de diversas maneiras: o Jesus da patrística, dos sete concílios ecumênicos, do pantocrator, do cisma, das ordens monásticas, da escolástica, dos místicos, dos reformadores, da alta crítica, das denominações, do Vaticano II, do pluralismo, do feminismo ou da pós-modernidade.
[3] O consulado nem sequer se interessou por minha situação quando minha mulher ligou para eles. Eles lhe disseram: “Senhora, seu esposo que não tivesse se metido em confusões”. Até que um tio meu advogado ameaçou fazer uma queixa no ministério de assuntos exteriores.
[4] Ou “…promover afetos por Jesus”. Em turco: “…İsa’yı sevdirmeye çalışıyor”.
[5] Na Turquia existe a ideia genérica de que a presença de cristãos e qualquer tentativa de apresentar o evangelho, definitivamente, é uma tentativa de recrutar partidários ao serviço de uma força estrangeira com o objetivo de destruir sua nação e seus valores culturais. Nada mais descabido!
[6] Tomas A Kempis, Imitación de Cristo, Libro Segundo, Capítulo 1 (DE LA CONVERSIÓN INTERIOR), Seção 7 (DEL AMOR DE JESUS SOBRE TODAS LAS COSAS), Ponto 3. Instituto Cultural Quetzalcoatl de Antropología Psicoanalítica, A.C., www.samaelgnosis.net, p. 25.
[7] O leque de possíveis implicações do “reino de Deus” ou “dos céus”:
- A soberania divina sobre as hostes celestes e o mundo é desafiada
- a) A rebelião celestial (Is 14.12-15; Ez 28.12-19; Ap 12.7-9)
- b) A rebelião de Adão e Eva e o pecado original (Gn 3; Rm 5.12-14)
- Processo de restauração da soberania no Antigo Testamento
- c) Governo divino sobre as consciências e por meio de castigos exemplares antes de Abraão (Gn 4-11)
- d) Governo em e por meio de Israel depois de Abraão (Gn 11-Ml 4)
III. Irrupção e restauração do reino no Novo Testamento…
- e) Entrada do Rei no mundo (Mt-Jo/ Lc 1.33; Is 9.6-7; Dn 7.13-14)
- f) Caráter provisional, testemunhal ou escatológico: “está próximo/chegou/virá…” (Mt 4.17; /Mt 12.28; /Lc 17.20)
- g) Seu governo na igreja e/ou a promessa do céu (Mt 16.19; 21.43; 24.14; Mc 9.1; Lc 12.32; Rm 4.17; Cl 1.13 / 1Co 6.9-10; Gl 5.14)
- h) Milagres, exorcismos, curas… (Mt 4.23; 9.35; Lc 10.9)
- i) Efeito restaurador sobre a sociedade e as injustiças (Mt 5.3-16)
- j) Separação dos “direitos” de César e Deus (Mt 22.21; Jo 18.36)
- Acontecimentos sobre a segunda vinda de Cristo:
- k) Restauração de Israel: simbólica, real? (At 3.19-21; Rm 11.25-27)
- l) O milênio, reino de justiça: terrenal, escatológico? (Ap 20.1-10)
- Restauração cósmica do reino no além (1Co 15.24; Ef 1.9-10).
[8] Mesmo que essa seja talvez apenas uma forma de não mencionar Deus para evitar desconfianças frente à escrupulosa tradição judaica, que considerava uma blasfêmia nomeá-lo.
[9] Jesus, frente à recusa dos principais, começa a anunciar a “necessidade” inevitável de sua morte e ressurreição: Mt 16.21; 17.22; 20.18; 26.2, 24, 54; 26.45; Mc 8.31; 9.31; 10.33-34; 14.21, 41; Lc 9.22, 44; 12.50; 13.13; 17.25; 18.31-34; 22.22, 37; 24.6-7, 26, 44, 46; Jo 3.14; 16.7.
[10] Santos Olabarrieta (Ediciones B. P. I. W).
[11] Paulo mostra também essa ordem: “Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado.” (1Co 2.2).
[12] E aqui não nego o fato de que o evangelho e os crentes podem ter um efeito positivo e reparador na sociedade sobre aqueles que não invocam seu nome e inclusive em colaboração com eles. Falo realmente sobre não esconder a origem e o objetivo desse benefício: Jesus.
[13] Samuel Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, New York: Simon & Schuster, 1996.
[14] Esta é a forma que o Alcorão percebe a Trinidade influído pela expressão “mãe de Deus” (Theotokos quer dizer “portadora de Deus”) e/ou pela iconografia das igrejas: “E quando disse Alá: Oh, Jesus, filho de Maria! És tu quem disse aos homens: Tomai-nos a mim e a minha mãe como divindades em vez de Alá? Disse: Glorificado sejas! [Valha-me Deus!] Não me corresponde dizer algo sobre o que não tenho direito…” (Sura 5:116).
[15] Salvo honrosas exceções como Francisco de Assis (1182-1226) ou Raimundo Lulio (1232-1316) que, na época das cruzadas, recusaram a espada e promoveram a pregação do evangelho do amor de Deus aos muçulmanos. Inclusive foram em pessoa proclamá-lo entre eles.
[16] Há exceções, como Samuel Zwemer (1867-1952), chamado o apóstolo para o islã, que disse: “O islã é nosso irmão que só pode ser ganhado pelo amor da igreja” (Islã and the Cross: Selections from “The Apostle to Islã”, ed. Roger S. Greenway, Phillipsburg, 2002, p. 153).
[17] A Reforma consolidou-se como reação e rejeição teológica a certos erros. Daí seu apelido: “protestante”. Esse espírito reativo permanece presente por séculos tanto frente a outros credos ou religiões como entre os próprios “protestantes”, fomentando muitas vezes antagonismos e divisões por atitudes intransigentes na doutrina e teologia, menosprezando qualquer atitude conciliadora e ignorando o princípio atribuído a Santo Agostinho: “No essencial, unidade; no duvidoso, liberdade; em tudo, amor” [In necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus carita].
[18] Mesmo que nessas passagens não haja referência explícita aos “pagãos” como tais, mas às “nações” ou “povos” (no grego, ethnikos). É uma maneira de dizer: “Vocês os criticam fazem o mesmo”.
[19] Quando Paulo argumenta contra os idólatras (1Co 510, 11; 6.9; 10.7; Ef 5.5…), sua crítica vai dirigida àqueles entre os crentes que, por sua negligência, dão vasão à idolatria ou criam confusão entre os neófitos (1Co 8). Ainda assim, rejeita dar qualquer valor aos ídolos em si (1Co 8.1, 4, 10, 18, 28), ainda que relacione seu culto com os demônios (1Co 10.19-21). Por outro lado, aos colossenses, diz: “Portanto, façam morrer as coisas pecaminosas e terrenas que estão dentro de vocês. Fiquem longe da imoralidade sexual, da impureza, da paixão sensual, dos desejos maus e da ganância, que é a idolatria” (Cl 3.5). Dessa forma, adverte-nos que certas atitudes pagãs (adorar o material) também podem nos pegar.
[20] Paulo relembra os coríntios que, no passado, eles eram levados “aos ídolos mudos” (1Co 12.2), e que os tessalonicenses “deixaram os ídolos a fim de servir ao Deus vivo e verdadeiro” (1Ts 1.9). E, no Concílio de Jerusalém, os apóstolos e anciãos impelem os crentes gentios a se absterem “de alimentos oferecidos a ídolos” (At 15.20, 29; 21.25).
[21] Também é clara a denúncia nas epístolas contra os judaizantes pela tentativa de arrastar os gentios convertidos aos rituais da Lei e, por sua vez, contra os judeus que perseguiam os crentes (por exemplo: Rm 2.27-29; 1Co 7.19; Gl 2.13; 5.6, 11; 6.15; Ap 2.9; 3.9).
[22] É legítimo defender fé e, em uma discussão franca e aberta, destacar os erros de qualquer postulado contrário ao evangelho em outros credos, inclusive os erros internos deles mesmos. Ao falar de uma aproximação respeitosa e de não carregar contra os erros de outras religiões, me refiro à atitude geral que devemos ter na hora de apresentar as boas novas sem fomentar hostilidades. No que diz respeito à defesa da fé, ver meu livro: APOLOGIA. My Defense vs Islãic Critics of the Gospel, © Carlos Madrigal, 2016.
[23] Não falo de construir pontes de união entre religiões (sincretismo), mas de entendimento e irmandade entre os povos (reconciliação), ou seja, de uma atitude não insultante em direção às crenças deles.
[24] Atribuído a numerosos autores (entre outros, a São João da Cruz ou a Santa Teresa de Jesus), mas nos dias de hoje considerado anônimo.
[25] Traduzido do francês. Versos da mística sufi Rabi’a Al-Adawiyya: 717- 801 (Khushwant Singh, The Freethinker’s Prayer Book: And some word to live by, Aleph Book, 2013, p. 35). Tradução livre para o português.