O contexto religioso global da “fraternidade humana”
Todd Johnson
Em resposta a As contribuições da Igreja Católica ao diálogo cristão-muçulmano
A reunião entre o Papa Francisco e do Grande Imã, este mês[1], nos Emirados Árabes Unidos, ocorreu no contexto de uma transformação demográfica global tanto para cristãos como para muçulmanos. Hoje, 65% de todos os cristãos são do Sulglobal (parte da Ásia, África e América Latina), muito acima dos apenas 20% de um século atrás. De modo semelhante, apenas cerca de 20% dos muçulmanos em todo o mundo são árabes, com a vasta maioria vivendo em países da Ásia, longe da sua terra de origem histórica na Arábia Saudita. Essas duas realidades demográficas têm uma consequência muito importante: as relações cristãs-muçulmanas não podem ser reduzidas a um “choque” entre a civilização ocidental e o mundo árabe. Uma interação mais comum entre as duas maiores religiões do mundo é a de dois amigos, um cristão e o outro muçulmano, almoçando juntos na Indonésia. Mesmo os Emirados Árabes Unidos (EAU), o país majoritariamente muçulmano onde o Papa e o Grande Imã se encontraram, não exemplificam uma situação religiosa estática. Em 1990, praticamente não havia cristãos nos EAU, mas hoje eles representam cerca de 13% da população residente. Como vários órgãos de comunicação relatam com precisão, a maioria desses cristãos é de trabalhadores católicos migrantes, muitos provenientes das Filipinas. Uma avaliação mais abrangente da situação atual do cristianismo e do islamismo é útil para a compreensão de quem é potencialmente impactado pela declaração conjunta do Papa e do Grande Imã a respeito da fraternidade humana, que ressalta a importância da paz entre nações, religiões e povos.
Juntos, cristãos e muçulmanos estão crescendo de 33% da população mundial (1800) para 57% (2020) e, no futuro, podem alcançar 65% (2050). Os muçulmanos tendem a manter índices de natalidade mais elevados que os cristãos, mas é de esperar que as conversões para o cristianismo continuem, especialmente nos maiores países do mundo: China e Índia. Por conseguinte, é provável que até 2050 os cristãos (35,5% da população mundial) ainda sejam mais numerosos que os muçulmanos (29%). As maiores populações de muçulmanos continuarão situadas na Ásia, a saber, Índia, Paquistão, Indonésia e Bangladesh. Hoje, há cerca de 1,25 bilhão de católicos, o que representa cerca de metade de todos os cristãos, e eles crescem à taxa de 1,02% ao ano. Contam-se cerca de 1,9 bilhão de muçulmanos e eles crescem à taxa de 1,95% ao ano.
A migração tem tirado os muçulmanos das suas terras tradicionais na África e na Ásia e os levado à Europa, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia. No entanto, apesar de muitos pontos de contato históricos e teológicos entre o cristianismo e o islamismo, é muito frequente os muçulmanos não se sentirem em casa nesses contextos de maioria cristã. Conquanto alguns ocidentais tenham aceitado bem os muçulmanos como parte do ensino cristão do “amor ao próximo”, muitos cristãos abrigam sentimentos profundos de rejeição a imigrantes. Essas atitudes negativas parecem ter aumentado em anos recentes, tornando difícil para os imigrantes muçulmanos realmente se estabelecerem e se sentirem em casa no Ocidente.
Ao mesmo tempo, os cristãos são marginalizados e perseguidos em alguns países de maioria muçulmana. Estudos mostram que a perseguição tem aumentado em anos recentes, com muitos cristãos, especialmente católicos e ortodoxos, forçados a deixar sua terra de origem histórica. Um êxodo massivo de cristãos está ocorrendo no Oriente Médio, o local de nascimento da fé cristã.
Os cristãos e os muçulmanos não se conhecem bem em decorrência de mal-entendidos tanto globais quanto locais. Pesquisas recentes revelam que 86% de todos os muçulmanos do mundo não conhecem nenhum cristão pessoalmente. Outra pesquisa mostra um fosso na amizade e hospitalidade entre cristãos e muçulmanos, uma vez que ambos tendem a encontrar seus amigos mais chegados entre os que professam a mesma religião. Ainda que isso não seja surpreendente, é no nível pessoal que cristãos e muçulmanos irão descobrir interesses comuns e construir a solidariedade que ajudarão a reduzir tensões e favorecer comunidades produtivas que transcendem diferenças religiosas.
Tendo em mente essas tendências globais, o que se pode fazer para prover uma eficácia maior para um acordo de “fraternidade humana”? O documento declara “a adoção de uma cultura de diálogo como o caminho, a cooperação mútua como código de conduta e a compreensão mútua como o método e padrão”. Embora ambas a comunidades possivelmente considerem esse caminho desafiador, nele há grande oportunidade para incentivar cristãos e muçulmanos a interagirem de maneira positiva em comunidades religiosamente diversas. Cristãos e muçulmanos podem aprimorar seu envolvimento mútuo ao desenvolver uma “teologia de solidariedade inter-religiosa” que começa com valores compartilhados, desenvolvendo a confiança e atuando em favor de diálogos mais profundos e interesses em comum. Cristãos e muçulmanos devem ser motivados a conhecer e amar seus vizinhos. A hospitalidade, hoje em dia reduzida ao simples entretenimento de amigos da mesma camada social, perdeu boa parte das qualidades que a associavam aos sacramentos e à aliança. A hospitalidade que ultrapassa fronteiras sociais e religiosas reflete a generosidade divina, antecipando a hospitalidade de Deus.
O Papa e o Grande Imã identificam a fraternidade no cuidado pelo pobre, na recusa da violência e na busca da paz, da liberdade e da justiça para todos. Cristãos e muçulmanos têm recursos teológicos profundos para uni-los nessa empreitada. As tensões entre as duas religiões tendem a aumentar a violência, o medo e a instabilidade ao redor do mundo. Uma vez que as duas maiores religiões logo representarão dois terços da população humana, o documento conjunto, ainda que imperfeito, é uma declaração bem-vinda de “compreensão mútua, fraternidade humana e coexistência harmoniosa”. O futuro do mundo depende disso.
Todd M. Johnson é Diretor do Center for the Study of Global Christianity no Gordon-Conwell Theological Seminary. Ele é co-autor dos livros World Christian Encyclopedia, 3rd edition (Edinburgh University Press), The World’s Religions in Figures: An Introduction to International Religious Demography e Our Global Families: Christians Embracing Common Identity in a Changing World. Johnson também fez parte do Christianity and Freedom Project capitaneado pelo Berkley Center’s Religious Freedom Project. Sua formação, incluindo doutorado, foi na William Carey International University.
Este artigo foi publicado originalmente na página do Berkley Center for Religion, Peace and World Affairs da Georgetown University.
O autor autorizou o Martureo a traduzir para o Português e a publicar o artigo em sua página, bem como divulgá-lo.
[1]Nota do tradutor: a reunião aconteceu no dia 4 de fevereiro de 2019
Foto de Vicenzo Pinto/AFP