Não existem ‘Movimentos de Plantação de Igrejas’ na Bíblia

Por que a exegese bíblica e os métodos missiológicos não podem ser separados?

Jackson Wu

Recentemente, o Martureo publicou, de Justin D. Long, o artigo 1% do mundo: uma macroanálise de 1.369 movimentos para Cristo”, e colocou em seu blog o texto Os movimentos de plantação de igrejas ou de fazedores de discípulos (CPM e DMM)”. Para enriquecer o diálogo, trazemos a seguir este contraponto do missiólogo Jackson Wu. Boa leitura!

 

Nos últimos anos, os missionários discutiram e criaram estratégias para catalisar Church Planting Movements (CPM) [Movimentos de Plantação de Igrejas] em todo o mundo.1 No entanto, muitas pessoas têm contestado as práticas missionárias orientadas pela teoria dos CPM.2 Ambos os lados do debate utilizam as Escrituras para apoiar seus argumentos. Na verdade, os teóricos dos CPM, implícita e explicitamente, afirmam que os Movimentos de Plantação de Igrejas são encontrados na própria Bíblia.3 Este artigo examina e contesta qualquer afirmação desse tipo.

Este artigo apresenta um argumento simples: não há Movimentos de Plantação de Igrejas na Bíblia. Embora alguém possa considerar esta resenha uma tese “negativa”, o objetivo é bastante construtivo. É absolutamente imperativo que certas noções e associações sejam postas de lado se quisermos desenvolver uma missiologia biblicamente fiel e estrategicamente sábia. Claro, há muito que se elogiar na literatura de CPM. No entanto, não podemos simplesmente extrair o que nela há de bom sem examinar conceitos relacionados, como o uso das Escrituras. Ao aplicar algum aspecto da missiologia dos CPM, podemos inconscientemente assumir formas de pensar, ou de interpretar a Bíblia, que são contraproducentes. Portanto, este artigo tem por alvo ajudar os leitores a discernir entre teoria e teologia.

Deixo claro, porém, que não estou dizendo que os CPM sejam de todo impossíveis. Deus é soberano para fazer o que deseja. E também não estou dizendo que todos os princípios associados à teoria de CPM sejam antibíblicos.

Da mesma forma, não estou afirmando que aqueles que defendem os CPM se opõem à Bíblia. Dada a facilidade com que as pessoas se entendem mal, todos os lados da discussão devem ter cuidado ao afirmar que os CPM são “bíblicos” ou “antibíblicos”.

Uma coisa é usar a Bíblia para afirmar certos princípios de ministério; outra, bem diferente, é afirmar que as práticas missionárias de uma determinada missão estão realmente nas Escrituras. Este artigo apresenta o seguinte argumento: os teóricos dos CPM afirmam que, na Bíblia, vemos Deus iniciando os Movimentos de Plantação de Igrejas por meio do apóstolo Paulo. No entanto, eles não usam a Bíblia para definir um CPM. Nesse sentido, os padrões usados ​​para avaliar CPM são bastante arbitrários. Por “arbitrário”, quero simplesmente dizer que tais medidas são determinadas por pesquisadores dos CPM, não pela Bíblia. Em termos práticos, uma correlação infeliz é feita aqui. Os teóricos dos CPM apelam à autoridade bíblica enquanto afirmam os critérios extrabíblicos estabelecidos pelos pesquisadores para avaliar os chamados Movimentos de Plantação de Igrejas.

O que está em jogo aqui? Faz alguma diferença se há – ou não – CPM na Bíblia? Sim. O que a princípio parece um uso benigno da Bíblia para afirmar bons princípios, na verdade, leva a uma série de consequências negativas. Eles serão discutidos em mais detalhes no final do artigo. Por enquanto, vou simplesmente traçar algumas ideias gerais sobre essa aplicação.

Em primeiro lugar, a prática da missão deve ser baseada nas Escrituras. No mínimo, as metodologias devem ser consistentes com (ou seja, não contradizer) o texto bíblico. No melhor dos casos, os métodos de missão devem ser derivados das Escrituras.

Em segundo lugar, aqueles que treinam outros para usar métodos específicos devem ter cuidado ao utilizar a Bíblia como autoridade para apoiar sua abordagem. Talvez, um certo método de plantação de igrejas afirme os princípios bíblicos; entretanto, os treinadores podem facilmente exagerar seu apoio bíblico, dizendo que a Bíblia prescreve o uso desses métodos.

Terceiro, nossos métodos de ministério podem, inadvertidamente, moldar a teologia daqueles influenciados por tais metodologias. Por exemplo, se os iniciantes aceitarem a afirmação de que os CPM (ou qualquer outra teoria ou prática) estão na Bíblia, mas descobrirmos o contrário, os iniciantes não apenas interpretarão mal as Escrituras, como poderão promover maus hábitos de interpretação bíblica e até desenvolver métodos de pensamento para compensar seu entendimento incorreto da Bíblia.

Éfeso, um dos lugares em que Paulo pregou o evangelho: o fato de “muitas pessoas” acreditarem na mensagem não indica, de forma alguma, que exista um CPM

 

O que é um Movimento de Plantação de Igrejas (CPM)?

Para identificar um CPM, devemos primeiro tentar defini-lo. Se o rótulo CPM tiver algum significado prático, é importante especificar, o mais claramente possível, o que é (e o que não é) um CPM. Limites razoavelmente distintos são necessários para avaliar os CPM potenciais; caso contrário, o termo se torna totalmente arbitrário, de modo que quase tudo poderia ser chamado de “Movimento de Plantação de Igrejas”.

David Garrison e o IMB (International Mission Board) oferecem uma definição padrão: “Uma definição simples e concisa do Movimento de Plantação de Igrejas (CPM) é um aumento rápido e multiplicativo de igrejas autóctones plantando igrejas em um determinado grupo de pessoas ou segmento populacional”.4 Garrison elabora:

Há um aumento exponencial. Isso significa que o aumento de igrejas não é simplesmente um crescimento incremental – acrescentando algumas igrejas a cada ano ou algo semelhante. Em vez disso, ele se intensifica quando duas igrejas se tornam quatro, e quatro igrejas passam de oito a dez, e assim por diante.5

Quando se trata de avaliar o que constitui um CPM, Jim Slack, pesquisador do IMB, é mais específico. Em 2011, ele afirmou:

Cinco anos atrás, a Pesquisa Global da IMB identificou 42 CPM emergentes. Como regra, buscamos uma taxa de crescimento anual de 50% nas novas igrejas; taxa de crescimento anual de 25% no total de igrejas e/ou pessoas envolvidas em um CPM emergente.6

Para estar em uma “lista de observação de CPM”, Garrison diz que essas taxas de crescimento devem ser mantidas “nos últimos dois anos”.

David Watson, vice-presidente de Plantação de Igrejas Globais da CityTeam International, é um conhecido porta-voz da teoria de CPM. Em seu blog pessoal, ele escreveu:

Deus usou os líderes que David treinou para iniciar mais de 100 mil igrejas nos últimos 15 anos e mais de 4 milhões de pessoas foram batizadas como resultado do mover de Deus nas áreas onde obreiros locais treinados se dedicaram à obra de Deus.7

Ele ilustra ainda mais como as pessoas definem CPM:

Um Movimento de Plantação de Igrejas é um processo autóctone de plantação do evangelho e discipulado baseado em obediência, resultando em um mínimo de 100 novas igrejas iniciadas e lideradas localmente e três gerações de continuidade dentro de dois anos… Menos de 100 igrejas, independentemente do número de gerações, não constituem um CPM. Mais de 100 igrejas e menos de três gerações de continuidade não constituem um CPM. Tem de ocorrer dentro de dois anos ou não se qualifica. Os dois anos podem contar desde o início do trabalho ou partindo de uma contagem regressiva a partir de um determinado ponto. Contando-se para trás, três novas gerações devem ser comprovadas.8

Notavelmente, Watson acrescenta que um CPM deve corresponder a pelo menos 100 igrejas e abranger três gerações em menos de dois anos. Ele fala em termos mais absolutos, enquanto Slack apela à taxa de crescimento: “Quando gerações de membros de igrejas locais multiplicam igrejas a ponto de o número total delas dobrar dentro de quatro a seis anos, provavelmente existe um CPM”.9

Resumindo, os adeptos dos CPM usam pelo menos três medidas objetivas para determinar o que constitui um Movimento de Plantação de Igrejas: quantidade, tempo e localização. Numericamente, os CPM são descritos segundo a taxa de crescimento ou segundo o crescimento absoluto. Com relação ao tempo, apesar de haver divergências entre os principais teóricos dos CPM, dois anos parece, no mínimo, ser um indicador significativo. Por fim, a localização de um CPM – um movimento geralmente se concentra em um segmento estreito da população geral. Em outras palavras, não se contaria o número total de cristãos em uma vasta região (por exemplo, todos os países do leste asiático) para avaliar se uma determinada cidade, como Hong Kong, vivenciou um CPM.

Naturalmente, os teóricos dos CPM mencionam outras características que deveriam ser suas marcas. Garrison diz que todo CPM terá “evangelismo abundante”, liderança leiga local e “igrejas saudáveis”.10 No entanto, uma ênfase inconfundível e essencial da teoria dos CPM é a “reprodução rápida”. Como foi visto, os principais teóricos dos CPM quantificaram a palavra “rápido” em termos bastante específicos. Será que a Bíblia tem o mesmo entendimento sobre o termo “rapidez”?

O que acontece quando essas medidas quantitativas são aplicadas à Bíblia? Se Garrison, Watson e outros aplicassem esses padrões para avaliar o trabalho de Paulo, eles poderiam dizer que ele catalisou um “Movimento de Plantação de Igrejas”?

Que leitura as pessoas fazem dos CPM na Bíblia?

Não podemos encontrar CPM na Bíblia. Uma palavra formal para essa interpretação bíblica é “exegese”. “Exegese” significa “captar” no texto o significado original escrito pelo autor bíblico em determinada passagem. Por outro lado, “eisegese” é o termo para quando ideias e suposições próprias de uma pessoa são “forçadas” a se encaixar em determinada passagem das Escrituras. Eu sugiro que a teoria dos CPM possui um problema fundamental, pois pratica a “eisegese”.

Participei pessoalmente de uma reunião em que Steve Smith apresentou Paulo como um estudo de caso.11 Ele menciona sete passagens de Atos.

  1. Atos 13.4-52
  2. Atos 14.1-25
  3. Atos 15.39-16.40
  4. Atos 17.1-34
  5. Atos 18.1-21
  6. Atos 18.23-20.1
  7. Atos 20.1-38

Que lições Smith tira de seu estudo? Primeiro, Paulo iniciou “6 CPM em 8 anos”. Em segundo lugar, ele diz sobre Paulo: “Uma vez que havia um CPM em operação, ele seguia em frente”.

Com base nas evidências a nós disponíveis, o trabalho de Paulo satisfaria os critérios de avaliação acima mencionados? A resposta inegável é “não”. Para começar, não somos rotineiramente informados sobre quantas pessoas se tornaram cristãs. A exceção mais famosa é encontrada em Atos 2.41, quando “naquele dia houve um acréscimo de cerca de três mil pessoas” (NVT).12

No entanto, a observação descreve apenas o que aconteceu em um único dia. Seis versículos depois, o escritor Lucas acrescenta: “E o Senhor lhes acrescentava todos os dias os que iam sendo salvos” (Atos 2.47). No entanto, devemos observar que Lucas não diz que três mil crentes eram acrescentados a cada dia. Além disso, o grupo de três mil é formado por pessoas originárias de três continentes diferentes. Com relação a Jerusalém, em particular, Lucas não nos dá nenhum número sobre o tamanho da igreja da cidade depois de dois ou três anos. A Bíblia simplesmente não fala sobre isso.

O que o livro de Atos realmente diz? Resumindo, Lucas nos dá poucos dados sobre a quantidade de convertidos. Examinaremos algumas passagens importantes. Esses exemplos ilustrarão suficientemente a facilidade com que alguém pode impor os CPM no texto bíblico.

Com relação a Atos 13, Smith diz que “toda a ilha [de Chipre] recebe o evangelho em dois meses por meio do evangelho e sinais”.13 Na verdade, Atos 13.5-6 diz: “Chegando em Salamina, proclamaram a palavra de Deus nas sinagogas judaicas. João estava com eles como auxiliar. Viajaram por toda a ilha, até que chegaram a Pafos”. O texto não diz nada sobre a ilha inteira realmente aceitar o evangelho.

É possível, melhor dizendo, mais provável, que Lucas se refira mais especificamente à pregação ocorrida em todas as sinagogas da ilha. Embora Smith sugira como resultado um “movimento em toda a região” da Frigia,14 na verdade Lucas simplesmente afirma: “E a palavra do Senhor se espalhava por toda a região” (Atos 13.49). Não está claro quantos daqueles que ouviram essa palavra realmente a receberam com fé. Por exemplo, hoje poderíamos dizer que o evangelho se espalhou (geograficamente) por todo o Oriente Médio; entretanto, ninguém supõe que todas as pessoas da região tenham aceitado o evangelho.

Alguém pode ser tentado a exagerar as afirmações de Atos 19. Especificamente, o versículo 10 diz: “Isso continuou durante os dois anos seguintes, e gente de toda a província da Ásia, tanto judeus como gregos, ouviu a palavra do Senhor”.

Novamente, a declaração de Lucas diz respeito ao escopo da pregação de Paulo. Na verdade, no versículo 26, Demétrio, o acusador de Paulo, argumenta: “Mas, como vocês viram e ouviram, esse sujeito, Paulo, convenceu muita gente de que deuses feitos por mãos humanas não são deuses de verdade. Fez isso não apenas aqui em Éfeso, mas em toda a província”. Mais uma vez, “toda a Ásia” descreve a localização geográfica, âmbito no qual “muitas pessoas” acreditaram em sua mensagem.15 Atos 19.27 reafirma o ponto de que “toda a Ásia” não aceitou o evangelho, pois Demétrio se preocupa que “o templo da grande deusa Ártemis perca sua influência e que esta deusa magnífica, adorada em toda a província da Ásia e ao redor do mundo, seja destituída de seu grande prestígio!”.

O fato de “muitas pessoas” acreditarem na mensagem de Paulo não indica, de forma alguma, que exista um CPM. Afirmar isso extrapola o texto e se dirige à eisegese. Consequentemente, não podemos chamar algo de “CPM” simplesmente porque Atos nos fala sobre “grande número” de convertidos, como em Antioquia (11.21), Icônio (14.1), Derbe (14.21), Tessalônica (17.4), Bereia (17.12) e Corinto (18.10). 16

Também precisamos considerar o tempo e o local para avaliar se Paulo estabeleceu um CPM. A especificidade do relato bíblico sugere que Paulo não teria “sido aprovado” em uma avaliação de CPM. De acordo com Atos 20.31, Paulo passou três anos em Éfeso. Possivelmente, esse seria o período mais longo que Paulo passou em qualquer cidade durante suas viagens missionárias. Ele passou dois anos preso em Jerusalém (Atos 24.27) e em Roma (Atos 28.30). Não sabemos nada sobre a influência de sua plantação de igrejas naquelas duas cidades durante aquele período. Paulo também passou 18 meses em Corinto (Atos 18.11). Ele, simplesmente, não costumava gastar tempo suficiente em nenhum lugar específico para atender aos critérios definidos pelos avaliadores dos CPM.17

Para prolongar o período de referência para além de dois ou três anos, seria necessário incluir todo o escopo geográfico das viagens missionárias de Paulo.18 No entanto, uma área tão grande, cobrindo tantas províncias e culturas locais diferentes, vai além dos critérios válidos de Garrison em relação a um CPM: dentro de “um determinado grupo de pessoas ou segmento populacional”. Mesmo que alguém aceite um território tão vasto como razoável, ainda não temos números para declarar quantas igrejas Paulo plantou e quão rápido elas cresceram.

As considerações acima levantam sérias preocupações sobre o uso da Bíblia pelos que desenvolveram a(s) teoria(s) dos CPM. Este artigo concentra-se principalmente em medidas empíricas como crescimento numérico, tempo de crescimento e localização. No entanto, essas observações devem nos levar a refletir sobre outros critérios usados ​​para avaliar os CPMs. Devemos, então, examinar outros aspectos da teoria dos CPM para discernir se eles derivam diretamente das Escrituras?19 Se não, em que grau essas afirmações dos praticantes dos CPM podem ser consideradas arbitrárias?

Consequências práticas de se confundir a Bíblia com a teoria dos CPM

Que consequências práticas resultam de se usar a Bíblia para justificar a teoria dos CPM? Já vimos que não há evidência de qualquer “CPM” na Bíblia. Embora vejamos muitos novos crentes e igrejas iniciadas no livro de Atos, não devemos correlacionar essa obra de Deus com uma teoria contemporânea. Caso contrário, forçamos nossos próprios critérios de volta ao texto, e usamos erroneamente a autoridade bíblica para apoiar nossas “melhores práticas”. O resumo de Massey é útil.

A missiologia dos CPM vai do descritivo ao estabelecimento de princípios estratégicos. A implicação inevitável é que, se aplicada corretamente, essa metodologia produzirá resultados porque as leis da obra de Deus estão sendo seguidas. A abordagem no desenvolvimento da metodologia dos CPM também levanta questões sobre valer-se de um método puramente empírico para descobrir as formas como Deus atua na redenção (observação e engenharia reversa), usar somente as Escrituras como um guia para revelar como Deus opera, e [só] informar os métodos missiológicos. Será que o grupo dos praticantes [da teoria] de CPM, sem saber, está reivindicando um certo nível de “inspiração” e autoridade para seu método?20

A seguir, sugerirei alguns dos principais problemas decorrentes da confusão entre a teoria e a teologia.

  1. Os missionários, as agências e igrejas enviadoras começam a ter expectativas erradas. As pessoas esperam que um grande número de conversões e plantação de igrejas ocorra quando as metodologias orientadas segundo os CPM são utilizadas. Afinal, se os CPM são vistos como normais na Bíblia, por que não deveriam ser típicos hoje? O que é percebido como “normal” pode, rapidamente, ser considerado “normativo”.
  2. As pessoas podem usar metodologias fracas (excessivamente pragmáticas) sob o pretexto da autoridade bíblica sem qualquer crítica. Se os CPM estão na Bíblia e são avaliados de acordo com a porcentagem anual de crescimento, não demorará muito para que o pragmatismo seja estabelecido. Os praticantes usarão qualquer método que prometa resultados mais rápidos.
  3. Quando as pessoas não satisfazem os critérios definidos para um CPM, isso cria uma sensação de fracasso que prejudica o trabalho missionário. [Os obreiros] ficam desanimados por não poderem fazer o que Paulo supostamente fez. Eis a declaração específica de um missionário:

Os missionários ficam desanimados quando não ocorre uma rápida reprodução de igrejas. Essa metodologia condena 99% dos missionários ao fracasso certo, porque, se não ocorrer nenhum CPM, a maioria deles sentirá que falhou.21

Assim, a teoria dos CPM contribui para o desgaste entre os missionários.

  1. Ao conceder grau de autoridade bíblica à teoria dos CPM, os missionários e agências podem ser tentados a distorcer ou relatar erroneamente o número de novos convertidos e igrejas. Naturalmente, isso pode até não ser feito de forma premeditada. Talvez, um missionário relate um número que é mais uma estimativa generosa do que um relato real dos fatos. Da mesma forma, alguns missionários podem aumentar sutilmente a pressão sobre os parceiros nacionais para relatar números mais altos; em um esforço para manter as aparências ou receber financiamentos, os cristãos locais podem aumentar os dados. Por exemplo, onde números exatos não estão disponíveis, pode-se dar consistentemente o “benefício da dúvida” a números mais altos. Outros cenários também podem ser imaginados.
  2. Cristãos e missionários em particular são avaliados por padrões que não são encontrados na Bíblia. As medidas quantitativas são inerentemente específicas, mas não estão nas Escrituras. Indicadores qualitativos (como o fruto do Espírito) são explícitos nas Escrituras, mas podem ser facilmente minimizados porque, como um pesquisador de campo me disse certa vez: “Você não pode medir coisas como paciência…”. Quando há muita dependência do que pode ser quantificado, a fidelidade rapidamente se torna sinônimo de produtividade numérica.
  3. O uso da Bíblia pela teoria dos CPM conduz a uma leitura seletiva das Escrituras. E como ficam os textos que sugerem que nem sempre Deus pretende realizar um CPM? Por exemplo, Deus disse a Isaías, Jeremias e Ezequiel, desde o início de seus ministérios, que eles deveriam pregar sua mensagem mesmo que ninguém os ouvisse (Is 6.8-13; Jr 1.19; 7.27 ; Ez 3.7). Em outras palavras, Deus não tinha planos para algo como um CPM, por assim dizer, emergindo dentro de Israel.
  4. Atribuir autoridade bíblica à teoria dos CPM justifica a interpretação do “padrão bíblico” a seguir (item 8) em nome do evangelismo. Como vimos, existe um grande abismo entre as Escrituras e a teoria dos CPM. Devemos resistir à tentação de manipular a Bíblia em nossas práticas missionárias para se chegar a um CPM.
  5. A teoria dos CPM, na prática, usa a Bíblia para especificar o perfil de um líder missionário ideal. Para gerenciar ou implementar um CPM, é necessário ser um administrador hábil e bem relacionado. Por mais úteis que sejam, essas habilidades não são as características principais de liderança cristã que encontramos de forma específica na Bíblia. Devemos ainda ser cautelosos para não transformar Paulo em um estrategista de campo moderno, passando seus dias digitando e-mails, aprovando orçamentos, entre outras tarefas essenciais necessárias para atender os evangelistas da linha de frente e os plantadores de igrejas.
  6. Ao fundir a Bíblia e a teoria dos CPM, pode-se ironicamente discriminar ou desencorajar aqueles que são mais teológicos do que pragmáticos. Por razões já declaradas, muitos com formação teológica avançada podem decidir não se tornar missionários. Para aqueles que o fazem, eles podem não ter permissão para usar esses dons essenciais. É possível que, onde o ethos dos CPM é mais forte, os líderes pragmáticos desprezem alguém com um PhD em Teologia ou Estudos Bíblicos porque temem que tal pessoa se preocupe mais com o “conhecimento intelectual” do que com a obediência. Certa vez, ouvi um líder de missões fazer uma observação astuta: “Os teóricos dos CPM falam muito sobre o currículo de Pedro e João (que eram homens comuns e sem escolaridade), mas imediatamente falam dos resultados de Paulo, que era muito culto”.

Em alguns contextos, um missionário pode ser teologicamente convicto de que deve ser mais lento em batizar ou relatar “profissões de fé” por medo de que um “novo convertido” esteja simplesmente se juntando à igreja querendo agradá-lo.

Da mesma forma, em muitas culturas, as pessoas podem ter uma visão pluralista ou funcional da religião. Nesse caso, uma profissão de fé pode facilmente ser considerada como outra ferramenta religiosa para se obter alguma bênção. Essas dinâmicas e preocupações não conduzem à geração do tipo de número que se requer para se enquadrar como um CPM.

  1. Finalmente, o uso da Bíblia pela teoria dos CPM naturalmente pressiona os missionários a eliminar atividades que potencialmente retardem a rapidez do crescimento de curto prazo. Para todos os efeitos práticos, a obediência é reduzida quase que exclusivamente ao evangelismo. Afinal, pode-se contar o número de “profissões de fé”, mas não necessariamente o fruto do Espírito. Ministérios como treinamento teológico ou de família e o cuidado de órfãos e viúvas acabarão sendo cortados das principais estratégias.

Conclusão

Parece que nem mesmo Paulo teria passado em uma avaliação de CPM. Por quê? Pelos padrões usados ​​pelos teóricos dos CPM, seriam necessárias mais evidências. De acordo com os critérios vistos acima, não se pode encontrar um CPM na Bíblia. Essas observações indicam um problema fundamental com a missiologia dos CPM.

Embora possamos concordar com os praticantes dos CPM em uma série de princípios bíblicos, não devemos “fazer engenharia reversa”22 do processo de forma que coloquemos as nossas “melhores práticas” na Bíblia (ou seja, “eisegese”).

É correto estabelecer metas e planejar estratégias para alcançar as nações com o evangelho. Da mesma forma, não há nada de errado em avaliar nosso trabalho. No entanto, devemos ser cuidadosos a respeito de como usamos a Bíblia para fazer essas coisas. Devemos estar dispostos a declarar claramente o fato de que os critérios numéricos usados ​​para avaliar os CPM são arbitrários. Portanto, os missionários não devem sentir que estão aquém das normas bíblicas porque simplesmente seu ministério se assemelha ao de Jeremias ou Ezequiel.

Há uma diferença entre o que Deus pode fazer e o que Deus está fazendo.

 

Sobre o autor

Jackson Wu é Doutor em Teologia Aplicada e ensina Teologia e Missiologia para líderes da igreja chinesa na Ásia. Ele mantém um blog que pode ser acessado aqui.

O artigo original, disponível aqui, foi escrito em inglês e publicado sob o título “There are no Church Planting Movements in the Bible: Why biblical exegesis and missiological methods cannot be separeted” na Global Missiology de outubro de 2014. O Martureo solicitou permissão para traduzi-lo e republicá-lo.

 

Notas

  1. Outros livros que defendem a missiologia dos CPM são Church Planting Movements: How God Is Redeming a Lost World [Movimentos de Plantação de Igrejas: Como Deus está Redimindo o Mundo Perdido] (David Garrison, Monument, CO: WIGTake Resources, 2003); T4T: A Discipleship Re-Revolution [T4T: Uma Re-Revolução do Discipulado] (Steve Smith e Ying Kai, Monument, CO: WIGTake, 2011); Movements That Change the World: Five Keys to Spreading the Gospel [Movimentos que Mudam o Mundo: Cinco Chaves para Espalhar o Evangelho] (Steve Addison, Downers Grove, Ill.: IVP Books, 2011). Uma coleção de artigos de defensores dos CPM pode ser encontrada na edição de março-abril de 2001 da Missions Frontiers, Vol. 33, número 2, intitulado “Church Planting Movements: Rapidly Multiplying Faith Communities” [“Movimentos de Plantação de Igrejas: Comunidades de Fé que Multiplicam Rapidamente”]. Além disso, há o site churchplantingmovements.com.
  2. Entre os que levantaram questões, estão John D. Massey, “Wrinkling Time in the Missionary Task: A Theological Review of Church Planting Movements Methodology” [“Tempo de Encolhimento na Tarefa Missionária: Uma Revisão Teológica da Metodologia de Movimentos de Plantação de Igrejas”], SWJT 55, no. 1 (2012): 100-137; Greg Gilbert, “Book Review: Church Planting Movements by David Garrison” [“Revisão do Livro: Movimento de Plantação de Igrejas por David Garrison”], 9Marks, 5 de março de 2010, n.p. [citado em 9 de outubro de 2013], disponível aqui; George Robinson, “Book Review of T4T: A Discipleship Re-Revolution” [“Revisão do Livro T4T: Uma Re-Revolução do Discipulado”], Globalmissiology.org, outubro de 2011, n.p. [citado em 9 de outubro de 2013], disponível aqui.
  3. Smith e Kai, T4T, 29-33. Depois de citar várias passagens de Atos, Smith diz: “Hoje, chamamos essa revolução de discipulado de Movimento de Plantação de Igrejas” (33; grifo do original). Da mesma forma, em uma apresentação em PowerPoint usada para treinar missionários, Smith lista seis assim chamados “Movimentos de Plantação de Igrejas” no livro de Atos. Consulte também “Yes, But What Does the Bible Say About CPMs” [“Sim, mas o que a Bíblia diz sobre os CPM”], The Strategist, n.d., n.p. [citado em 9 de outubro de 2013] em http://www.imb.org/strategist/CPMs/what_does_the_bible_say.htm.
  4. David Garrison, Church Planting Movements booklet [livreto Movimentos de Plantação de Igrejas] (Richmond, VA: IMB, 1999), 8 e 21-22. Acessado em 9 de outubro de 2013. Disponível aqui.
  5. Ibid., 8.
  6. Jim Slack, “How Many Church Planting Movements Are There?” [“Quantos Movimentos de Plantação de Igrejas Existem?”], Mission Frontiers, 13. Garrison reformula a última cláusula, afirmando que deve haver “afirmação baseada em campo de que um CPM está surgindo”. Consulte David Garrison, “Church Planting Movement FAQs” [“Perguntas Frequentes do Movimento de Plantação de Igrejas”]. Acessado em 9 de outubro de 2013. Disponível aqui.
  7. David Watson, “About”, TouchPoint: David Watson’s Blog. [citado em 9 de outubro de 2013]. Disponível em http://www.davidlwatson.org/about/.
  8. David Watson, “Church Planting Movement (CPM) – Our Definition” [“Movimentos de Plantação de Igrejas (CPM) – Nossa Definição”], postagem do blog TouchPoint. Acessado em 9 de outubro de 2013 em http://www.davidlwatson.org/2009/06/15/ church-planting-movement-cpm-%E2% 80% 93-our-definition/.
  9. Jim Slack, “How Many?”, 12.
  10. Garrison, Church Planting Movement, 171-97. Eles estão incluídos em uma lista de 10 atributos essenciais de um CPM.
  11. Smith, “Building a Strategy” [“Construindo uma Estratégia”]. Implicit, em Smith e Kai, T4T, 29-33.
  12. Todas as citações das Escrituras são da NVT da Bíblia.
  13. Smith, “Building a Strategy”.
  14. Ibid.
  15. A palavra grega utilizada no original tem um significado muito geral para atribuir qualquer dimensão a ela. O contexto torna ainda mais difícil estimar qualquer número. Isso ocorre porque o acusador de Paulo, sem dúvida, enfrentaria a tentação de exagerar a influência de Paulo a fim de persuadir seus ouvintes.
  16. Observe também Romanos 15.19-20, onde Paulo afirma: “…desde Jerusalém até o Ilírico. Sempre me propus a anunciar as boas-novas onde o nome de Cristo nunca foi ouvido, para não construir sobre alicerce alheio”. Claramente, isso não significa que todas as pessoas nessa área se tornaram cristãs. Em vez disso, o versículo 20 sugere que Paulo se refere ao cumprimento de seu dever de pregar o evangelho onde ele não foi ouvido.
  17. Deixe-me adicionar alguns comentários sobre o ministério de Paulo aos Efésios. Atos 20.31 faz uma retrospectiva para fazer uma declaração resumida sobre Paulo passando “três anos” em Éfeso. Quando olhamos mais de perto, podemos ver que Paulo saía e voltava para a cidade. Parece que o período de tempo contínuo mais longo foi de “dois anos” (Atos 19.10).
  18. Em particular, parece que a segunda e a terceira viagens missionárias de Paulo foram mais longas do que a primeira.
  19. Por exemplo, os praticantes dos CPM colocam ênfase especial no fato de que as igrejas dos CPM são lideradas por locais em vez de missionários de fora. Até onde isso se estende? O que devemos concluir do fato de que Paulo era um estrangeiro vindo de Tarso e da Judéia? Da mesma forma, perto do fim do ministério de Paulo, ele deixa Timóteo para permanecer em Éfeso devido a problemas na igreja (1Tm 1.3ss). Na verdade, Paulo continua a dar instruções sobre as qualificações e responsabilidades dos líderes da igreja (1Tm 3). Até que ponto essa igreja, na qual Paulo havia investido mais do que qualquer outra pessoa, ainda dependia de líderes de fora?
  20. Massey, Wrinkling Time,
  21. Gerald Harris, “Shining the spotlight on the IMB’s Church Planting Movement”, [“Colocando um holofote sobre o Movimento de Plantação de Igrejas do IMB”], 24 de maio de 2007. Acesso em: 9 de outubro de 2013. Disponível aqui.
  22. Essa frase vem de Garrison, Church Planting Movements, 11-12, 303.
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