Missões em meio a crise da Covid-19: os povos não alcançados
“Vamos aproveitar para ajustar o nosso plano de jogo em relação aos 7.402 grupos etnolinguísticos com pouco ou nenhum acesso ao evangelho”
Ken Katayama
Como brasileiro, adoro futebol! Desde que mudei para os EUA, há dezesseis anos, aprendi muito sobre o futebol (americano). Agora, quando chega o outono nos EUA, adoro o clima mais fresco e o campeonato de futebol universitário! Seja no futebol ou no futebol americano, os intervalos dentro da partida são essenciais para que o time possa descansar, se recompor e se reagrupar para o próximo tempo.
Precisamos aproveitar esse tempo para ajustar o nosso plano de jogo.
Introdução: o intervalo de meio-tempo
Muitos de nós vemos a Covid-19 como algo perturbador, e com razão. No entanto, gostaria de mudar essa visão da Covid-19 neste artigo. Em vez de nos preocuparmos com seus efeitos negativos, vamos nos concentrar nas oportunidades por ela trazidas. Vamos entender a Covid-19 como sendo o “intervalo do jogo”, muito necessário para a Igreja global.
Já houve muito progresso em relação à divulgação do evangelho. Existem agora movimentos emergentes em algumas partes do mundo que, há uma ou duas décadas, eram consideradas lugares dos mais difíceis para a proclamação das boas-novas. Em 2008, por exemplo, apenas doze anos atrás, no Uzbequistão estavam expulsando a maioria dos trabalhadores cristãos estrangeiros. Hoje, conheço pelo menos duas importantes redes de plantação de igrejas locais uzbeques que estão não apenas abrindo centenas de igrejas domésticas no Uzbequistão, mas que também enviam trabalhadores uzbeques locais para alcançar os Karakalpaks, os Uigures e até mesmo sua própria diáspora uzbeque na Rússia.
Como comunidade global, sabemos que o jogo ainda não terminou! Ainda há muito a ser feito para que vejamos o Reino de Deus estabelecido entre os povos e em lugares que nunca ouviram sobre Jesus Cristo. Mas, durante esse “intervalo”, os líderes globais podem atuar como os treinadores das equipes esportivas. Podemos usar a oportunidade que essa crise apresenta para fazer uma pausa e analisar o que está funcionando e o que não está. Podemos aproveitar essa oportunidade para alcançar mais jogadores de todo o mundo. A lista atual pode ficar ainda maior e mais diversificada.
Então, eis aqui o cenário atual do jogo… Fizemos grandes progressos. Temos mais jogadores diversificados. Sabemos que é quase impossível fazer um trabalho desbravador com distanciamento social. Precisamos aproveitar esse tempo para ajustar o nosso plano de jogo. Temos a oportunidade, temporariamente, de colocar o foco em nosso trabalho interno em vez de em nosso trabalho externo no que se refere a alcançar os 7.402 grupos etnolinguísticos restantes que ainda têm pouco ou nenhum acesso ao evangelho.[1]
Enquanto aguardamos por uma solução para combater a Covid-19 ou, em outras palavras, enquanto durar o intervalo, apresento três áreas principais nas quais os líderes globais que estão servindo entre os grupos de pessoas não alcançadas podem trabalhar.
Os líderes globais têm a responsabilidade de equipar os santos ao ministério.
1. Recém-convertidos maduros
As Escrituras fornecem uma clara orientação para que os seguidores de Cristo ajudem outros a subir as escadas da maturidade espiritual. Após dado o primeiro passo, o da evangelização, temos a ordenança de levar uma pessoa da condição de afastado de Deus à condição de verdadeiro seguidor de Cristo. Paulo escreve à igreja em Colossos que, da mesma forma que eles receberam a Cristo Jesus, o Senhor, continuem a viver nele, enraizados e edificados nele, firmados na fé, como foram ensinados, transbordando de gratidão (Colossenses 2.6-7). A pandemia está oferecendo uma grande oportunidade para que as igrejas nativas locais entre os grupos de pessoas não alcançadas fortaleçam a sua fé em Cristo.
Um líder local na Ásia Central assumiu um grande risco, mas que já está rendendo frutos. Enquanto a Covid-19, por decreto governamental, forçava o confinamento em seu país, ele rapidamente percebeu que precisava pensar criativamente para que pudesse continuar ajudando novos crentes de origem muçulmana a amadurecer em seu relacionamento com Jesus. Por razões de segurança, e pela primeira vez em seu ministério, ele gravou uma série de mensagens em seu idioma local, e enviou essas mensagens de áudio para a sua rede de plantadores de igrejas. Eles, então, enviaram-nas aos membros de suas igrejas domésticas. Após alguns dias, muitos desses plantadores de igrejas perguntaram se poderiam enviar as mensagens para seus familiares fora da Ásia Central. Essas mensagens fortaleceram não apenas os crentes locais, mas também alcançaram toda uma nova rede de relacionamentos que não fazia parte de sua estratégia de ministério antes da Covid-19.
2. Equipar os líderes locais
As Escrituras nos mostram que os degraus da maturidade espiritual movem seguidores comprometidos a se tornarem obreiros eficazes. Paulo escreve para a igreja em Éfeso que os líderes devem usar seus dons para equipar os santos para que eles, os santos, possam fazer o ministério de edificação do corpo de Cristo.
E designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, outros para pastores e mestres. Eles são responsáveis por preparar o povo santo para realizar sua obra e edificar o corpo de Cristo… (Efésios 4:11-12 NVT)
Os líderes globais possuem a responsabilidade de equipar os santos ao ministério. Isso é imprescindível para multiplicar o nosso impacto, para criar o legado duradouro entre os povos não alcançados que permanecerá pelas futuras gerações.
Na região do Cáucaso, a liderança de uma rede local de plantação de igrejas deu um passo ousado ao fazer “entrevistas” por telefone buscando encontrar líderes potenciais para serem equipados on-line. Já se passaram alguns meses desde então, e a resposta tem sido ótima. A Covid-19 deu a esses crentes locais o tempo necessário para se concentrarem no crescimento do conhecimento bíblico, assim como nas habilidades práticas para liderar uma igreja doméstica. Com o tempo (espero que em breve), eles serão capazes de colocar em prática tudo o que aprenderam.
Temos a oportunidade de encorajar líderes locais dotados de visão global e preparar aqueles que estão dispostos a ir.
3. Preparar os enviados [e mobilizar os que enviam]
O próximo passo no desenvolvimento da maturidade espiritual é conduzir os que estão sendo equipados para que se engajem na Grande Comissão. Estamos falando de líderes cristãos que assumem a responsabilidade pessoal de servir no cumprimento do mandato global de Jesus registrado em Mateus 28.18-20. Eles mobilizam os membros de suas igrejas locais para atuar como enviados ou como os que enviam missionários para alcançar as centenas de milhares de pessoas que não têm acesso ao evangelho.
O apóstolo Paulo desafiou as igrejas em Roma a orar e a apoiar sua ambição de “anunciar as boas-novas onde o nome de Cristo nunca foi ouvido” (Romanos 15.20), argumentando:
Mas como poderão invocá-lo se não crerem nele? E como crerão nele se jamais tiverem ouvido a seu respeito? E como ouvirão a seu respeito se ninguém lhes falar? E como alguém falará se não for enviado? (Romanos 10.14-15)
Paulo era o enviado pedindo às igrejas em Roma para que fossem os enviadores. Da mesma forma, como líderes globais, temos a oportunidade de encorajar líderes locais para que tenham uma visão global e preparar os comissionados. Quando este “intervalo do meio-tempo” terminar, esperamos que mais trabalhadores tenham sido treinados para serem enviados aos campos de colheita do Senhor.
A Crossover Global, enquanto organização de plantação de igrejas, dá grande enfoque à preparação de líderes locais para que se tornem plantadores de igrejas. Sua prática de treinamento inclui reunir candidatos à plantação de igrejas quatro vezes por ano, e fazer com que coordenadores locais visitem cada candidato uma vez por mês para um treinamento individual. Durante este tempo de pandemia global, essa prática ministerial precisou passar por ajustes, mas o foco em equipar plantadores de igrejas, não. Das regiões do norte da Índia, passando pelas ilhas da Indonésia, até as montanhas do norte da África, nossas equipes têm conduzido aulas on-line para líderes locais selecionados que, pela graça de Deus, se tornarão plantadores de igrejas prontos para serem enviados quando suas respectivas regiões locais abrirem novamente.
Eu creio firmemente na promessa de Jesus de que ele construirá a sua Igreja e nada, nem mesmo a Covid-19, o impedirá de fazer isso.
Plus: maximizar o alcance digital
Por fim, a Covid-19 catalisou um novo e significativo processo de digitalização na forma como trabalhamos. As velhas práticas de encontros face a face, que pareciam ser bastante apropriadas antes da Covid-19, provavelmente serão substituídas pelo ambiente virtual sempre que possível. Por exemplo, reuniões globais, reuniões organizacionais e o planejamento estratégico serão realizados on-line, bem como os treinamentos e a formação de equipes. Embora seja do nosso conhecimento que, em alguns aspectos, perderemos algo ao fazer isso dessa maneira, de outro lado, isso nos permitirá obter um envolvimento muito mais amplo de todo o mundo.
Ao levar em conta os riscos de segurança nas áreas de acesso restrito, devemos tirar proveito dos desenvolvimentos tecnológicos disponíveis. Vejo uma grande oportunidade em reorganizarmos o time de forma global por conta das possibilidades que as ferramentas virtuais oferecem em vez de restringirmos as equipes geograficamente. Lembre-se: agora temos equipes maiores e mais diversificadas! Essas pessoas podem não se parecer com você, não falar a sua língua e pensar de forma culturalmente diferente, mas podem ser exatamente o tipo de jogador que você precisa quando o “intervalo” terminar. Meu querido amigo Warren Janzen, Diretor Internacional da SEND International, lançou o livro TECHnically Connected [2], que oferece ótimas ideias para se liderar equipes virtuais.
Não há como parar
Vejo o futuro próximo com otimismo, e oro por desenvolvimentos científicos bem-sucedidos quanto à solução para o novo coronavírus. Mas, aconteça o que acontecer, acredito firmemente na promessa de Jesus de que ele construirá a sua Igreja e nada, nem mesmo a Covid-19, irá pará-lo.
Uma coisa é certa. Declarar a glória de Deus entre todos os povos exigirá a mobilização de um grande número de crentes firmemente estabelecidos em sua caminhada com Cristo e efetivamente equipados para seu trabalho como seus colaboradores. As maneiras e os métodos por meio dos quais a multiplicação de nossos ministérios ocorrerá podem parecer diferentes, mas, ao selecionar sabiamente, treinar adequadamente e lançar obreiros estrategicamente, a Igreja verá o evangelho ser conhecido por todos os povos do mundo.
Nesse sentido, a Covid-19 talvez seja exatamente o “intervalo do jogo” necessário! Que proveito que você está tirando dele?
Ore
- Pelos líderes e membros das igrejas nativas e movimentos missionários locais em todo o mundo, para que vejam as oportunidades criadas pela pandemia do novo coronavírus, para saberem testemunhar de Cristo de maneiras novas e poderosas.
- Por inspiração clara do Espírito, mostrando formas inovadoras de se demonstrar e declarar o evangelho em partes do mundo que permanecem sem um testemunho adequado das boas-novas.
- Pelo fortalecimento das relações entre os treinadores de missões (onde quer que estejam) e os crentes nas áreas onde a Igreja está menos representada, pelo desenvolvimento da confiança mútua para que vejam o Reino de Deus sendo estabelecido de maneira poderosa em lugares ainda não alcançados.
- Para que todos nós tenhamos coração e mente abertos enquanto esperamos em Deus por instruções no “intervalo do meio-tempo”, para que possamos seguir com confiança para o próximo período de serviço, conscientes do trabalho a ser executado pelo povo de Deus (ver 1 Crônicas 12.32).
Notas
- Os grupos etnolinguísticos restantes não alcançados podem ser rastreados em https://joshuaproject.net/people_groups/statistics
- https://www.amazon.com/TECHnically-Connected-Navigating-Distance-Virtual-ebook/dp/B088KVCVF5/ref=tmm_kin_swatch_0?_encoding=UTF8&qid=&sr=
Sobre o autor
Ken Katayama é o vice-líder da Comissão de Missões da World Evangelical Alliance (WEA) e também presidente da Crossover Global, organização de plantação de igrejas comprometida em honrar a Deus fornecendo acesso ao evangelho a grupos de pessoas não alcançadas. Ken nasceu no Brasil, e começou a trabalhar na Crossover em 1999. Ele tem um bacharelado em Administração pela Columbia International University, e completa o mestrado em Estudos Muçulmanos em dezembro de 2020. Atuou como vice-presidente do conselho da COMHINA (braço do COMIBAM nos EUA) e, até setembro de 2019, presidiu o conselho da Missio Nexus (a aliança de missões dos EUA).
Esse artigo foi originalmente escrito em inglês e publicado no site da Comissão de Missões da World Evangelical Alliance (WEA) em julho de 2020 em https://weamc.global/covid-upgs/. O Martureo obteve permissão para traduzir o conteúdo para o português e republicá-lo. Tradução: Marcos Tachikawa. Edição: Fernanda Schimenes.