Missionários brasileiros e suas histórias
Treinamento, adaptação cultural e ministério em um país árabe muçulmano
Marcos Amado
Este relato foi feito por Marcos Amado a pedido do CIM Minas (Cuidado Integral do Missionário) – uma rede de voluntários que trabalha para proporcionar ao missionário e sua família bem-estar espiritual, emocional e físico. É uma das doze histórias de brasileiros envolvidos com o testemunho de Cristo em ambientes transculturais (no Brasil e no exterior) que compõem o livro Missionários brasileiros e suas histórias a ser lançado em novembro no CBM 2022 (Congresso Brasileiro de Missões).
Era inverno no hemisfério norte, mas o calor ainda se fazia sentir conforme o sol se punha entre as palmeiras centenárias. Estávamos não muito distantes do deserto do Saara, em uma cidade árabe antiga com ruas estreitas que nos faziam pensar nas histórias de Jesus caminhando pelas cidades da Terra Prometida. À medida que o dia se esvaía, a enorme praça principal começava a fervilhar com os diferentes personagens que movimentavam a noite da cidade. Eles vestiam suas túnicas brancas, seus chapéus coloridos e exibiam suas serpentes encantadas, que bailavam misteriosamente ao som de uma flauta. Havia até o ‘dentista’ que, com várias dentaduras usadas espalhadas por um lençol encardido estendido no chão, convidava seus possíveis clientes para um test drive na esperança de eles encontrarem uma que lhes servisse na boca.
Superada a surpresa inicial, caminhamos cidade adentro explorando seus labirintos sem saber exatamente o que esperar. A mesquita, ao longe, com seu minarete de arquitetura andaluza sobrepondo-se sobre as demais construções, convocava os fiéis para se ajoelharem em oração pela quarta vez no dia: mais uma demonstração de submissão e temor a Deus. Em um país em que praticamente cem porcento da população se declarava muçulmana, o que vimos em uma das ruas da cidade antiga, repleta de transeuntes árabes e turistas estrangeiros, nos surpreendeu: em ambos lados havia pequenos estabelecimentos comerciais oferecendo produtos como cascas de plantas com supostos poderes sobrenaturais, unhas e peles de diferentes animais, lagartixas secas e pós milagrosos. Tais itens eram usados pelos habitantes muçulmanos da cidade em rituais que, com a ajuda de versículos corânicos e de acordo com os ensinamentos dos ‘homens santos’ locais, tornavam fértil uma mulher estéril, curavam enfermidades, espantavam os maus espíritos, reatavam um amor perdido, protegiam do quebranto (mau-olhado) ou imputavam maldições sobre um vizinho problemático.
Isso aconteceu nos idos de 1980, quando minha esposa e eu (junto com nosso primeiro filho – à época com dez meses) nos estabelecemos em um tradicional país árabe muçulmano do Norte da África para compartilhar o evangelho com pessoas que ainda não o tinham ouvido. Mas como chegamos a esse ponto? Quais foram alguns dos desafios enfrentados durante o treinamento e o processo de adaptação a uma cultura tão diferente? Nessa época, o movimento missionário brasileiro fervilhava – surgiam agências missionárias e centros de treinamentos, centenas de missionários foram enviados. Algo que escutávamos com frequência era: brasileiros e árabes são parecidos culturalmente e, por isso, estão melhor preparados que os anglo-saxões para o evangelismo e discipulado entre eles. Até que ponto isso se mostrou verdadeiro? Antes de responder a essa pergunta, vamos regressar um pouco no tempo.
Os primórdios
Minha compreensão sobre o que Deus esperava de mim começou a tomar forma por volta dos meus 20 anos. Nasci e cresci em um lar evangélico, minha infância e juventude foram marcadas pelas experiências comunitárias nas diferentes atividades da igreja. Uma das alegrias eram os ensaios musicais nos sábados à tarde e à noite. Aos domingos, depois da escola bíblica dominical e de um bom almoço em família, havia os cultos ao ar livre ou distribuição de literatura cristã de porta em porta. Confesso: não me sentia confortável com essas ‘atividades evangelísticas’, temia ser incomodado na segunda-feira caso algum colega de escola me visse.
Apesar dessa intensa participação na igreja, eu tinha serias dúvidas sobre meu futuro. Minha família não tinha muitos recursos, porém era empreendedora. Isso me levou a desenvolver certas habilidades para os negócios. Nos estudos, até que me saía bem, mas provavelmente meu primeiro sonho (depois da decepção de não ter conseguido ser piloto de avião) era me tornar um grande homem de negócios. Deus tinha outros planos…
Cheguei à maioridade sem ter um sério compromisso com Deus e sua Palavra. Administrava meu próprio pequeno negócio quando um livro de Charles Sheldon chegou às minhas mãos. A pergunta do título me intrigou: Em seus passos o que faria Jesus? No decorrer da leitura, percebi que havia várias áreas de minha vida que deixavam muito a desejar em relação aos ensinamentos de Jesus. Vieram outras perguntas. O que fazer com minha vida? De que forma Deus queria me usar?
Tais dúvidas começaram a ser respondidas quando, no começo dos anos 80, um acontecimento agitou o meio evangélico brasileiro: aportou em Santos (SP) um navio missionário que diziam ter uma livraria com milhares de títulos evangélicos e educacionais distribuídos em 500 metros quadrados na polpa do navio. Eram mais de 300 pessoas a bordo, de cerca de 30 países diferentes, a maioria delas entre 20 e 30 anos. Havia conferências na própria embarcação para milhares de pessoas sobre assuntos relacionados à vida cristã com grande ênfase no desafio de se pregar o evangelho até os confins da terra. Falo do navio Doulos da organização missionária Operação Mobilização (OM), que dava voltas ao mundo treinando jovens para o serviço cristão e promovia programas evangelísticos em cada cidade onde ancorava.
É difícil dimensionar a importância do envolvimento com esse ministério em minha vida (e, posteriormente, na de minha noiva e futura esposa Rosângela). Quando o pastor Waldemar Carvalho (que depois se tornou meu sogro) fez um convite para eu me juntar a uma caravana de líderes cristãos que passariam um dia a bordo participando de palestras e visitando ‘a maior livraria flutuante do mundo’, minha expectativa foi enorme! Nesse dia, depois de uma mensagem bíblica vibrante e desafiadora dada pelo diretor do navio, o pastor Frank Dietz, comecei a entender que o Senhor estava me chamando para o trabalho cristão transcultural.
Foi uma reviravolta em minha vida. Vendi o que eu tinha (carro, negócio e terreno) e, após três recusas (achavam que eu era muito jovem e devia terminar meus estudos), fui aceito para o treinamento bíblico-missionário oferecido no navio. Disse até logo à minha noiva, familiares, amigos e ao Brasil para viver por três anos a bordo do ‘navio de passageiros mais antigo do mundo’. Aprendi muito! Participei de eventos evangelísticos e de formação cristã em cerca de 20 países ao redor do mundo.
No Doulos, amadureci o conceito de missões e o verdadeiro sentido do que significava ser um seguidor de Jesus. Dois anos após ter embarcado, Rosângela foi aceita para passar um ano no navio em treinamento. À medida que o tempo passava, ficava cada vez mais claro que o Senhor nos chamava para servi-lo em um país árabe muçulmano do Norte da África onde a igreja era praticamente inexistente e a pregação do evangelho, proibida.
Ao terminar nosso período de treinamento no Doulos (e também no navio Logos), voltamos ao Brasil e nos casamos. Nosso primeiro filho, o Filipe, nasceu dois anos depois. Para nossa surpresa, ele tinha um sério problema lábio-palatal. Com seis meses, já havia passado por duas cirurgias, e dúvidas sobre o nosso chamado nos sobrevieram. Será que deveríamos ir para o mundo muçulmano, mesmo sabendo que o Filipe precisaria, durante muitos anos, de muita atenção médica e de outras intervenções cirúrgicas?
Em meio aos questionamentos, decidimos dedicar novamente nossas vidas e a do Filipe ao Senhor, confiando que ele estava e continuaria à frente. Assim, com pouco mais de dois anos de casados, nossa igreja local, a Igreja Batista do Morumbi, enviou-nos para o Norte da África. Não sabíamos exatamente o que nos esperava.
Um treinamento missionário diferente
Primeiro passamos alguns meses no Sul da Europa[1], onde nos integramos à missão Projeto Magreb (hoje PMI ou PM Internacional). Em seguida, partimos para Madón,[2] país em que moraríamos, para o processo de adaptação sob a tutela de um casal de missionários norte-americanos com décadas de experiência missionária transcultural.
O processo de adequação nesse país muçulmano foi muito diferente do tradicional adotado pela maioria dos missionários. Segundo alguns missiólogos (com quem concordo plenamente), uma das maneiras menos eficazes de entrar em contato com uma nova cultura é chegar ao país de destino e, no aeroporto, ser recebido por bem-intencionados compatriotas missionários.[3] Eles fazem o possível para os recém-chegados se sentirem à vontade no intuito de facilitar a adaptação a um povo de idioma e cultura completamente diferentes. Durante os primeiros trinta ou sessenta dias, os recém-chegados vivem na casa de seus compatriotas, saboreiam seus pratos favoritos, falam seu próprio idioma e escutam um sem-número de conselhos sobre como devem se comportar diante dos novos e estranhos costumes. Nesse período, procuram uma casa boa para viver, móveis e até um automóvel se o dinheiro permitir.
Quando completamente instalados (sem sofrer nenhum choque cultural), começam, pouco a pouco, a se integrar à cultura estranha. No entanto, a essa altura, terão perdido as melhores oportunidades de adaptação – nas primeiras semanas um missionário tem as condições físicas, emocionais e psicológicas ideais para o ajuste a uma nova situação. É possível que ele se adapte à vida naquele país, mas isso acontecerá de maneira muito mais lenta e, possivelmente, menos eficaz.
Por essa razão, não fomos para a casa de missionários estrangeiros nem de cristãos locais, nem tivemos uma casa própria durante nosso primeiro ano no país. Hospedamo-nos em casas de vários muçulmanos, literalmente imersos nessa cultura: comendo, dormindo e aprendendo com o povo ao qual Deus nos havia enviado.
A chegada a Quiner e a permanência ali
Com quatro malas, embarcamos no navio que nos levaria da Europa até Madón. Chegamos e o estranhamento começou. As pessoas eram fisicamente semelhantes aos brasileiros, mas sentimos o impacto do choque cultural: o povo falava um idioma completamente diferente, vestia-se de modo diferente. A miséria saltava aos olhos, as ruas deixavam a desejar no quesito limpeza. O choque cultural faz isto: esquecemos que no nosso país de origem existem situações semelhantes. Sempre havia muita gente nas ruas – homens e jovens aparentemente sem fazer nada, crianças pedindo dinheiro e dezenas de guias turísticos oferecendo-se para nos mostrar a cidade. O restaurante onde comemos pela primeira vez tinha um aspecto pouco agradável, a comida era bizarra para nós. Tentamos não ficar impressionados com todas essas coisas, mas…
No dia seguinte, viajamos por cerca de seis horas em um trem de terceira classe para a cidade de Quiner. Vivíamos de maneira muito simples, dormindo em hotéis econômicos, comendo em restaurantes acessíveis e viajando em meios de transporte baratos. Dessa forma podíamos, desde o início, estar em contato direto com o povo, língua e cultura locais. Nossa maior preocupação era nosso filho – ele não tinha um ano, comia o mesmo que nós e em horários muito variados. Além disso, sofria com infecções de ouvido, tosse e um resfriado constante e muito forte. A única coisa que podíamos fazer por ele era entregá-lo ao Senhor.
Chegando em nosso destino, todos os dias dedicávamos quatro horas ao aprendizado do árabe e outras duas ao estudo de antropologia missionária. Ao final do dia, voltávamos para a casa da família muçulmana com a qual vivíamos. Sobrava pouco tempo para nós mesmos, o que nos deixava cansados. Nessa época do ano, fazia muito frio e chovia bastante. Dormíamos por volta da meia-noite em um quartinho no alto da casa e às sete da manhã já estávamos na rua com casacos e guarda-chuvas. Rosângela carregava o Filipe nas costas enrolado em uma pano à maneira das madonitas; seria uma vergonha eu carregá-lo. Tomávamos um ônibus (sempre muito cheio) rumo às aulas de árabe. Sem dúvida, os cinco primeiros meses nesse país foram os mais difíceis. Tudo era novo, nos sentíamos muito inseguros. Certo dia escrevi em meu diário:
Hoje é o primeiro aniversário do nosso Filipe. Ainda assim, não foi um bom dia para mim. As aulas de árabe parecem ser o principal problema, porém não o único. Se pudesse, gostaria de estar sozinho em algum lugar onde não tivesse de falar com ninguém nem fazer o que não quero. Começo a entender o significado do famoso choque cultural. É doloroso romper nossos hábitos, aprender uma nova língua e lidar com pessoas tão diferentes. Por isso, tenho a impressão de que se não fizermos isso no início vai ficar muito mais difícil depois. Como família, também passamos por um ajuste. Nosso filho continua com a infecção e percebe que já não dedicamos tanto tempo a ele como antes, por isso chora com frequência. Consequentemente, Rosângela e eu nos sentimos sob muita pressão e isso afeta nosso relacionamento. Ainda assim, creio que esta é uma experiência única em nossas vidas e a maneira correta de começar a conhecer a cultura à qual o Senhor nos chamou.
Alguns dias depois, continuei escrevendo:
A última semana foi realmente difícil. Segunda-feira fui bem nas aulas de árabe; terça-feira, regular; mas na quarta-feira, estive péssimo e fiquei completamente confuso. Também é difícil suportar o que acontece na casa da família muçulmana onde vivemos. Quase todos os dias nosso anfitrião convida dois ou três amigos para conversar comigo e, dessa forma, a Rosângela e eu não temos tempo para conversar. Se vou para o nosso quarto a fim de estudar, eles me seguem e minha esposa tem de sair. Assim, temos de buscar sempre novas maneiras para termos tempos a sós. A Rosângela também se sente sob pressão. Ela tem dificuldades em administrar seu tempo entre cuidar do Filipe e de seus estudos, e isso afeta sua atitude com as outras pessoas da casa. Há algo mais que me incomoda: quando estamos comendo, eles fazem muitas brincadeiras, principalmente arrotando.
Depois de algum tempo, mudamos de casa para ter outra perspectiva da sociedade, hospedando-nos em um lugar muito mais pobre. Nosso tempo ali foi altamente proveitoso, ficamos com uma família muito boa: pai, mãe e quatro filhos, sendo dois meninos e duas meninas. Aprendemos muito sobre o idioma e a cultura. Pouco a pouco, rompemos as barreiras e as diferenças. Em repetidas ocasiões, as vizinhas vinham conversar com a Rosângela, e as pessoas começaram a demonstrar simpatia diante de nossos esforços em viver e falar como elas. Depois de seis semanas, nos sentimos muito melhor no país. Laços de amizade sincera começaram a se estreitar. Já não nos olhavam simplesmente como se fôssemos estrangeiros, mas como pessoas que tentavam fazer todo o possível para se integrar ao modo de vida local.
Nas ruas de En Hadá
Terminando nosso tempo em Quiner, fomos à cidade de En Hadá. Vivemos durante três semanas em um quarto dentro da medina, a parte antiga da cidade. Nosso objetivo era praticar um método de aprendizagem do idioma sem frequentar uma escola e continuar aprendendo da cultura para apresentar o evangelho de maneira eficaz. Três ou quatro vezes por semana, um madonita que falava somente árabe nos ajudava a montar um pequeno diálogo, que gravávamos e depois escutávamos várias vezes, tentando assimilar as novas palavras e a forma de construir as frases.
Quando nos sentíamos um pouco seguros, saíamos pelas ruas conversando com as pessoas para praticar as poucas frases que sabíamos. Assim, ganhávamos a confiança do povo e a fluência do idioma, pois repetíamos a mesma coisa várias vezes ao dia. As reações eram as mais diversas: uns começavam a rir, outros evitavam a conversa; no entanto, muitos ficavam atentos e se mostravam dispostos a ajudar. Certo dia, quando Rosângela conversava na medina com um grupo de mulheres, uma delas a convidou para ir à sua casa. Era uma casa de um quarto só onde vivia uma família de seis pessoas. Naquele quarto, eles comiam, dormiam, assistiam televisão, recebiam visitas etc. Mais tarde, eu também cheguei a visitar aquela casa, e nos esforçamos para travar uma boa amizade com eles. Muitas vezes comemos e dormimos ali.
Opressão em En Hadá
Oficialmente, Madón é país muçulmano, mas existe o chamado islã popular – forma de sincretismo que engloba crença em um deus único, adoração de santos, magia, feitiços e espiritismo. Provavelmente, isso não é tão palpável ou visível em outra parte do país quanto em En Hadá, a cidade descrita no início onde havia os chamados ‘dentistas’ e homens e mulheres que adivinham o futuro. Vimos um homem de aparência estranha com dois escorpiões andando em seu rosto perto das lojas que vendiam as mercadorias para a produção de remédios e feitiços caseiros.
Não era o que esperávamos achar. Imaginávamos nos deparar com pessoas com uma fé rígida, fortemente monoteísta, dominada por explicações aparentemente lógicas e tentativamente racionais. Para nosso espanto, encontramos pessoas que faziam peregrinações a túmulos de santos muçulmanos na esperança de fizessem a mediação entre o humano e o divino; mulheres pendurando réstias de alho na porta de entrada para evitar maldição sobre a família; muçulmanos que realizavam suas orações diárias e também pintavam cada cômodo da casa de uma cor diferente (cada cor apaziguava um tipo diferente de espírito); senhoras casadas, mas estéreis, em um tanque de água na periferia da cidade, oferecendo ovos crus às enguias que ali viviam na esperança de serem recompensadas por seres sobrenaturais e gerarem filhos.
Durante os primeiros dias na pensão em En Hadá, quase não dormíamos à noite. Adoeci subitamente, tive febre e dor de estômago. Filipe acordava agitado chorando. Rosângela e eu tínhamos pesadelos com pessoas conhecidas que morriam. Certa noite, antes de me deitar, meu corpo ficou quente – suava em abundância e tossia sem parar. Levantei, pus a mão em meu pescoço e orei em nome de Jesus. Na mesma hora, minha temperatura normalizou e a tosse cessou. Ao encontrarmos alguns irmãos e compartilharmos tais lutas, eles intercederam por nós clamando a Deus para nos libertar e proteger de todo aquele ataque maligno. A partir dali, nossos problemas de sono começaram a desaparecer.
Nas montanhas
Na etapa seguinte de nosso processo de adaptação cultural e conhecimento das necessidades do povo passamos cinco dias com os habitantes do sul do país. Fomos de carro até onde era possível, depois continuamos na carroceria de um caminhão por estradas de terra até uma pequena aldeia. Dali em diante, visto que não havia mais caminho, subimos a montanha ora a pé, ora em um burrinho. Foram várias horas até chegarmos ao pequeno povoado a quase três mil metros de altitude.
Aquela aldeia de cerca de duzentas pessoas era similar a centenas de outras nas montanhas: casas de barro e madeira perto de um despenhadeiro, condições de higiene precárias, assistência médica a um dia de viagem. Só o chefe falava árabe; os demais falavam um dialeto regional, o berbere. Conheciam produtos da Nike e Coca-Cola, mas quando lhes perguntamos sobre Jesus, pensaram um pouco e responderam: “Não mora aqui, talvez no próximo vilarejo!”. Comíamos e bebíamos o mesmo que eles, dormíamos como eles: no chão. Escutamos do chefe da aldeia sobre supostas curas milagrosas atribuídas a santos locais; águias que, quando invocavam espíritos, traziam dinheiro de lugares longínquos. Deixamos aquele lugar com perguntas: Até quando esse povo vai continuar na escuridão? Onde estão os missionários para alcançar essas pessoas que vivem sob tão intensa opressão espiritual e com tantas necessidades materiais?
De volta a En-Hadá
Depois daquelas experiências, e guardando tudo o que víamos e aprendíamos no coração, voltamos à Europa. Nos dez dias ali, recebemos instruções sobre nossa última etapa do curso. Tínhamos de passar mais um mês em Madón e pesquisar algum aspecto específico da cultura por meio do qual pudéssemos melhor apresentar o evangelho.
Retornamos àquele país e uma vez mais fomos a En Hadá. Fizemos amizade com uma família muçulmana que tinha uma boa casa na parte antiga da cidade. Convidaram-nos para ficarmos com eles pelo tempo necessário. Quanto aprendemos nesse período! A essa altura, sabíamos um pouco mais do idioma e tínhamos vivido com outras famílias muçulmanas, então logo nos adaptamos a eles e a seus vizinhos. Já não sentíamos o medo e a insegurança do começo; sabíamos como comiam, dormiam, se vestiam e se relacionavam – tivemos cuidado em fazer tudo tal como eles.
Nesse tempo, estudamos o idioma com aquele método de gravar diálogos, memorizá-los e logo praticá-los com algumas pessoas. Ao mesmo tempo, pesquisávamos sobre o esposo e esposa madonita: precisávamos conhecê-los mais para lhes comunicar melhor o evangelho.
Notamos que naquela sociedade espera-se que um bom marido seja religioso. Deixei claro para a família com a qual vivíamos que eu não era muçulmano e sim um cristão: orava, lia a Bíblia, jejuava, dava esmolas, não fumava nem tomava bebidas alcoólicas. Tudo isso soava muito estranho para eles, pois a ideia típica que têm de um cristão ou de um ocidental (para eles essas palavras são praticamente sinônimas) é a de uma pessoa com má conduta e sem princípios morais. Percebi também que orar de uma maneira diferente da deles poderia comunicar falta de reverência a Deus. Então, todos os dias, meu tempo de oração transcorria da seguinte forma: como eles, lavava meu rosto e meus pés e, sobre um pano limpo, ajoelhava-me com minha testa tocando o solo. Isso comunicava respeito, a Deus e a eles. Note: a Bíblia não diz nada que impeça orar a Deus dessa forma.
Quando chegou o Ramadã, mês de jejum muçulmano, Rosângela e eu jejuamos com eles, deixando claro que nossa motivação ao fazer isso era diferente da deles. Assim, ganhamos o respeito daquela família e, em poucos dias, toda a vizinhança soube que naquela casa havia pessoas que não eram muçulmanas, mas que sem dúvida eram tementes a Deus e nishan (corretas). A confiança chegou a tal ponto que, após duas semanas, um dos genros de nosso anfitrião dono de uma loja de perfumes e cosméticos na cidade velha por duas vezes me pediu para cuidar do negócio enquanto ele ia à mesquita orar.
Quando conversávamos sobre religião, eles estavam muito mais dispostos a nos ouvir: tinham visto algo diferente em nossa vida. Na despedida, comprometemo-nos a continuar em uma próxima oportunidade nossa conversa sobre o evangelho.
Pós-treinamento
Ao final do preparo, entendemos a importância de ter passado por tudo isso que relatamos. Mais adaptados ao país, nos relacionávamos melhor com as pessoas. Semanas depois, voltamos à cidade de Quiner. Estudávamos o árabe por nove horas semanais, visitávamos diferentes famílias e fazíamos amizade com o maior número de pessoas possível. Conforme a comunicação melhorava, a simpatia do povo crescia e também as oportunidades para falar do evangelho. Procuramos nos vestir ao estilo deles e em nossa casa comíamos a comida típica do país. Em vez de ir a supermercados, íamos a quitandas, sempre de ônibus.
As diferenças culturais diminuíam dia após dia. Não quer dizer que tudo era maravilhoso – muitas vezes foi frustrante não poder compartilhar a mensagem de Jesus Cristo tão eficazmente quanto gostaríamos, ainda tínhamos muitas limitações com o idioma. Sentíamos falta de nossos familiares, de nossa igreja e de nossos amigos, e, em muitas ocasiões, ficamos emocionalmente esgotados, pois eram numerosas as experiências novas. Mas estávamos no país há não mais do que um ano e nosso nível de idioma e compreensão da cultura era mais avançado que o de muitos estrangeiros residentes há bem mais tempo no país.
Tapetes para a expansão do reino?
Uma das responsabilidades que nossa agência missionária nos delegou foi traduzir para o espanhol o treinamento de adaptação cultural que havíamos feito em inglês. Por isso, antes de nos estabelecer na capital do Madón, cidade que seria o nosso lar durante alguns anos, passamos alguns meses no Sul da Europa para adaptar o treinamento. Viajamos para o Brasil para participar do I Congresso Missionário Ibero-americano (COMIBAM ‘87) e para o Filipe se submeter a mais uma cirurgia. Ao regressarmos ao Sul da Europa, recebemos o primeiro grupo de missionários latinos (venezuelanos, centro-americanos e argentinos) que se unia à organização PM Internacional e os levamos para o Madón para treiná-los no processo de adaptação cultural e aprendizado do idioma. Essa seria nossa primeira equipe de missionários.
Somente depois de treinarmos essa equipe é que finalmente nos estabelecemos na capital do Madón. A essa altura já não precisávamos de alguém para nos ajudar a alugar uma casa, adquirir móveis etc., nossa desenvoltura no árabe local e nossa compreensão da cultura já eram suficientes para realizar essas atividades.
Outra questão dizia respeito ao visto de residência no Madón – por ser um país onde pregar o evangelho é proibido, eu devia ter uma atividade profissional reconhecida pelo governo e pela sociedade. Com o intermédio da nossa agência missionária, contatamos irmãos suíços e alemães que comercializavam tapetes importados de diferentes países muçulmanos. Eles me ensinaram as principais lições e macetes sobre os mais diversos tipos de tapetes fabricados em diferentes regiões do Madón, concederam-me um contrato de representação devidamente legalizado na embaixada madonita na Alemanha e, retornando ao Madón, legalizei meu negócio de exportação de tapetes para a Europa, sendo os principais clientes nossos irmãos suíços e alemães.
Os cursos bíblicos por correspondência
A exportação de tapetes madonitas abriu possibilidades que não imaginávamos. Ministérios cristãos no Sul da Europa transmitiam programas de rádio oferecendo cursos bíblicos por correspondência (ainda não havia Internet!). Milhares de muçulmanos, por toda a África do Norte, ouviam os programas e solicitavam os cursos. Só que, por ser um país totalitário, o serviço secreto do Madón inspecionava a correspondência internacional. Se um madonita que havia solicitado um curso fosse descoberto, poderia ser preso ou até mesmo torturado.
Por isso, quando nós ou outros missionários da equipe, por diferentes razões, precisávamos ir de carro para o sul da Europa (uma viagem de cerca de cinco horas), regressávamos trazendo escondidos no porta-malas os cursos bíblicos impressos e uma lista com os nomes e endereços daqueles que haviam solicitado o material. Sempre havia muita tensão quando passávamos pela fronteira e os policiais vinham inspecionar nossos passaportes e revistar o que havia no automóvel. Às vezes tínhamos, além dos cursos, fitas cassetes com pregações e alguns exemplares da Bíblia em árabe, mas, graças a Deus, nunca tivemos problemas. À medida que eu viajava por diferentes partes do país comprando tapetes característicos das diferentes regiões, postava os cursos bíblicos, um pouco em cada cidade. Dessa forma, era quase impossível o serviço secreto dos correios interceptá-los por se tratar de correspondência nacional.
Tendo uma razão legal para viajar pelo país e contatar madonitas de diferentes regiões e níveis sociais, as portas se abriam naturalmente para que o evangelho fosse compartilhado. Na verdade, quando eu iniciava, em árabe coloquial madonita, uma conversa com um negociante de tapetes, as primeiras perguntas que me faziam estavam quase sempre relacionadas ao meu país de origem ou à religião. Esporadicamente escrevia (com muito cuidado para não sermos descobertos nem colocar o destinatário em perigo) para alguns daqueles que estavam há mais tempo fazendo o curso bíblico por correspondência apresentando-me como um homem de negócios estrangeiro residente no país e oferecendo a possibilidade de nos encontrarmos para estudar a Bíblia juntos. Em várias ocasiões, o convite foi aceito, e tivemos o privilégio de iniciar o estudo da Palavra com pessoas que já tinham se mostrado sedentas e que, às vezes, abriam as portas para desenvolvermos laços mais profundos de amizade com suas famílias.
Em 1990, Deus nos presenteou com a Priscila, a madonita da família. Ela nasceu em uma clínica médica na cidade onde vivíamos. Foi um parto difícil para a Rosângela, pois somente no último momento o médico percebeu que o recomendado teria sido fazer uma cesariana, mas já era tarde. Foram momentos de muita dor para a Rosângela e de muita angústia e temor para mim, pois eu presenciei o parto. Estava vendo o que acontecia, mas não podia interferir, a não ser por meio da oração. Se algo mais grave acontecesse com a Rosângela ou com a Priscila, a clínica não estava aparelhada para atender a uma emergência. Mas o Senhor foi misericordioso e, além da alegria da chegada da Priscila, seu nascimento serviu para fortalecer os laços de confiança com alguns de nossos amigos madonitas, pois nem sempre as mulheres estrangeiras queriam dar à luz em uma clínica ou hospital locais.
Conforme os anos passavam, cresciam nossa equipe e minhas responsabilidades, seja no treinamento dos novos obreiros e liderança da missão, seja nas muitas viagens a negócio dentro do país. Continuava estudando o idioma, evangelizando novos contatos, estudava a Palavra com os poucos que, de tempos em tempos, faziam uma decisão de seguir ao Senhor e viajava com frequência ao exterior, principalmente para promover o trabalho da missão em diferentes partes do mundo e recrutar novos obreiros. O movimento missionário brasileiro e latino-americano ao mundo muçulmano ainda era incipiente, pouco estruturado, com poucas pessoas, então os que já estavam no campo multiplicavam esforços.
Dificuldades com a saúde física e emocional
Todo esse esforço começou a se mostrar além do que eu podia suportar. Em viagem a uma pequena cidade ao sul do país (não muito distante do Saara) junto com um homem de negócios espanhol que queria comprar artesanato madonita por meio da nossa empresa, a Novas Fronteiras, senti fortes cólicas abdominais. Não era a primeira vez que isso acontecia desde que havíamos chegado ao Madón, mas as dores estavam cada vez mais frequentes.
Partimos imediatamente para o hospital mais próximo a 250 quilômetros de distância. Viajamos em um furgão antigo e saltitante; a estrada, antiga e esburacada, dificultava o trajeto. Fui deitado na parte traseira com náuseas, a dor aumentava à medida que avançávamos. A 100 quilômetros do hospital, encontramos um pequeno posto de saúde do Crescente Vermelho, quase escondido, à beira da estrada. Paramos buscando ajuda, mas apenas aplicaram uma injeção usando uma seringa (aparentemente usada) que estava sobre a pia. Não resolveu e seguimos até o hospital, onde fui imediatamente internado e permaneci por três dias.
Percebi, com isso, que chegara ao limite das minhas forças físicas e emocionais. Na verdade, em parte por conta da teologia triunfalista com a qual convivi desde a infância, não aceitava que um missionário tivesse questões emocionais somatizadas a ser tratadas. Vivia em constante estado de ansiedade (sem necessariamente reconhecê-la como tal); havia perdido cerca de 15 quilos. A cada três meses, as cólicas abdominais voltavam, e eu era internado.
Em meio a essas circunstâncias, os líderes da missão e de nossa igreja local no Brasil concluíram: devíamos voltar ao Brasil para um período de licença no qual eu faria os exames médicos necessários para investigar o que ocorria. Com mais de vinte exames diferentes nas mãos, os médicos não descobriram nada físico que justificasse as dores e os outros sintomas – meus problemas físicos eram resultado de um forte estresse emocional.
Foi então que entendi a importância de a liderança da igreja local ter maturidade e discernimento em relação à obra missionária. Eles permitiriam que voltássemos para o Madón, mas teríamos de escolher não mais que duas responsabilidades dentre as muitas que tínhamos assumido no campo. Esclareceram que não estavam preocupados com resultados conquanto caminhássemos dentro da vontade de Deus. Ressaltaram a importância de uma vida equilibrada, que levasse em conta não somente ‘a obra’, mas também a saúde física e o relacionamento familiar.
Voltamos para a África do Norte após alguns meses, prosseguindo no ministério com menos responsabilidades. Continuamos nosso trabalho por outros anos, e as oportunidades para falar de Jesus surgiam não somente por conta de nosso ministério, mas também dos ministérios daqueles que tivemos o privilégio de treinar. Mais missionários chegavam, o trabalho se fortalecia no Madón e em outras regiões do mundo muçulmano.
Em oito anos, muita coisa havia acontecido. Filipe tinha quase nove anos e, mesmo depois de várias cirurgias, falava fluentemente árabe, inglês, português e espanhol. Priscila tinha três anos e lidava com soltura com vários idiomas. Ambos estudaram em escolas árabes madonitas e se adaptaram muito bem ao nosso país adotivo. Rosângela também se adaptou: falava o idioma, viajava sozinha com as crianças dentro do país e era feliz naquele lugar sob a convicção de que estávamos onde Deus queria que estivéssemos. Apesar disso, estávamos cansados física e emocionalmente.
Precisávamos de um sabático. Foi um período muito intenso e, com a benção da liderança da igreja enviadora e da agência missionária, fomos para a Inglaterra prosseguir com nossos estudos missiológicos e teológicos no All Nations Christian College na bucólica região ao norte de Londres.
Nesse período, em uma aula sobre o livro de Romanos, percebi que continuava com sintomas de esgotamento emocional. O professor, um teólogo, pastor e exímio evangelista, compartilhou com a classe seu testemunho. Entre outros aspectos importantes do que Deus tinha e estava fazendo em sua vida, ele afirmou, para minha total surpresa, que praticamente todos os anos ele era internado em um hospital local por conta de episódios de profunda depressão. Durante a aula fiquei me perguntando como isso era possível. Um ‘servo do Senhor’ passando por processos depressivos? Mas e o que havíamos aprendido sobre os grandes missionários e missionárias de séculos passados, que rompiam em fé e tudo podiam naquele que nos fortalece? Para aumentar ainda mais a minha surpresa, comecei a me identificar com muitos dos sentimentos, medos e dúvidas compartilhados pelo professor.
Fui conversar com ele, que me encaminhou para conversar com médicos de uma clínica cristã em Londres que só tratava de pastores e missionários. Não foi necessário mais do que uma hora de consulta para me diagnosticarem com forte ansiedade e depressão. Iniciei o tratamento e, apesar das exigências dos estudos, Rosângela e eu decidimos que uma de nossas prioridades na Inglaterra seria a família.
Não seria exagero afirmar que esse tempo na Inglaterra preservou, apesar dos tropeços que ainda teríamos, nosso ministério de um fim precoce e nossa vida familiar. Antes de concluir os dois anos de estudo no All Nations, fui convidado a assumir a presidência da missão PM Internacional, cargo que ocupei nos oito anos seguintes, marcados por um grande crescimento da missão. Em 2006, ao final de outros dois anos de estudos missiológicos na Inglaterra, voltamos ao Brasil. Após um período inicial para tratar de minha saúde, assumi o pastorado de missões da nossa igreja local durante seis anos. Então, Rosângela e eu entendemos da parte do Senhor que era o momento de nos envolvermos mais com o movimento missionário brasileiro: iniciamos o Martureo – Centro de Reflexão Missiológica, nosso principal ministério atualmente.
Mais de quarenta anos se passaram desde o início da nossa caminhada ministerial. Quando penso nisso, dou graças a Deus pela sua misericórdia, pois ele nos deu o privilégio de participarmos daquilo que ele já estava fazendo entre os muçulmanos da África do Norte, apesar das nossas limitações. Em todas as situações, tentamos ser fiéis testemunhas do Senhor Jesus, mesmo sabendo que falhamos com mais frequência do que gostaríamos de admitir. Passamos, literal e figurativamente, por tormentas, com ondas gigantes se levantando sobre nossas cabeças; cruzamos vales, montanhas e desertos. Porém, no meio de tudo isso, percebemos claramente que:
se Deus é por nós, quem será contra nós?… Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?… Em todas estas coisas… somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. (Rm 8.31-37)
Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém! (Rm 11.36)
[1] Alguns dos próximos parágrafos são (com atualizações, adições, modificações e correções) parte de um texto escrito por mim e publicado anteriormente pela Editora Sepal sob o título “Latinos no Mundo Muçulmano – Testemunhos sobre Adaptação Cultural” (editor Federico Bertuzzi).
[2] A organização missionária PM Internacional, com a qual trabalhamos durante cerca de 20 anos, continua atuando no Norte da África. Por isso, apesar de já termos deixado o mundo muçulmano há muitos anos, prefiro não mencionar os nomes reais do país e das cidades por onde passamos.
[3] Para mais detalhes sobre o embasamento teórico para essa estratégia de adaptação cultural e aprendizado de um novo idioma, veja o livro Language Acquisition Made Practical (LAMP): field methods for language learners, escrito por Tom e Elizabeth Brewster (Lingua House, Colorado Springs, 1976).