Missio Dei, Missão e Missões

por Kevin D. Bradford

Esse conteúdo é parte do Curso de Introdução à Missões da Editora Vida Nova. Publicado com permissão.

Se uma pessoa acredita que existe um Deus e que ele se revelou à humanidade, conhecê-lo deveria ser um dos esforços mais importantes da vida. Esses são, evidentemente, princípios cardeais da fé cristã. O Deus de quem estamos falando não é meramente um deus entre muitos, mas o Deus Criador. E nós acreditamos que ele se revelou não apenas em um sentido geral, por meio de sua criação, mas também de uma forma especial mediante a Palavra Escrita, a Bíblia, bem como por meio da Palavra Viva, Jesus Cristo.

Porque Deus existe e tomou essa iniciativa, há uma esperança para a humanidade além daquilo que é visível. Ter muitos amigos, uma boa família e um emprego bem remunerado são coisas boas, mas pálidas em comparação com a possibilidade de conhecer o Ser sobrenatural que é a fonte e o sustentador de toda a vida.

Assim como conhecer a Deus deveria ser, inerentemente, um desejo de todos os homens, o fato de que Deus revelou a si mesmo indica que ele quer ser conhecido. Ele não tinha a obrigação de enviar Jesus ao mundo nem de oferecer à humanidade sua Palavra inspirada; contudo, evidentemente Deus fez essas coisas porque ele mesmo deseja que homens e mulheres venham a conhecê-lo. Aquelas pessoas que fazem isso e, no processo, se convencem de sua bondade e amor para conosco devem desejar que mais pessoas ainda venham a conhecer a Deus como elas mesmas o conheceram.

Desse modo, o engajamento na missão de tornar Deus conhecido para os outros deve ser visto, antes de todas as outras considerações, como algo orgânico e inerentemente lógico para aqueles que já o conhecem. Se alguém pensa nessa missão como opcional ou reservada a poucos, está confessando que não conhece a Deus ou que não pensou nas claras implicações de conhecê-lo.

A missão do cristão, enquanto vive neste mundo, não se baseia em algumas passagens espalhadas pela Bíblia, como se elas constituíssem simplesmente “mais um mandamento”. Em vez disso, a própria Bíblia em sua totalidade é um testemunho do fato de que Deus quer ser conhecido e usa homens e mulheres movidos pelo Espírito Santo para fazer isso acontecer. A revelação especial de sua Palavra está completa, todavia Deus ainda chama, equipa e capacita todos aqueles que o conhecem para serem suas testemunhas.

Há muitos pensamentos conflitantes sobre a missão da igreja. A tarefa de defini-la é um pouco mais complicada pelo fato de a Bíblia não usar a palavra “missão” especificamente. Isso não quer dizer, no entanto, que o conceito seja estranho à Bíblia. Muito pelo contrário, existem inúmeras passagens e uma riqueza de termos que desenvolvem a ideia de missão.

Quando uma pessoa lê sobre patriarcas, discípulos e outros sendo “chamados” pelo Senhor, isso está inevitavelmente relacionado à missão de Deus. O próprio Jesus falou dezenas de vezes acerca de ser “enviado” pelo Pai, quase sempre em referência ao seu desejo de tornar o Pai conhecido aos outros.

A maior parte do próprio Novo Testamento foi escrita para os crentes nas novas igrejas do “campo missionário”. De fato, o desafio para o intérprete não é a falta de informação sobre a missão de Deus, mas a abundância dela!

 

O mandato de missões

Nosso mandato para a evangelização do mundo, portanto, é a Bíblia inteira. Deve ser encontrado na criação de Deus, porque todos os seres humanos são responsáveis diante dele; no caráter de Deus, transcendente, amoroso, compassivo, não desejando que ninguém pereça, mas que todos venham ao arrependimento; nas promessas de Deus, que todas as nações sejam benditas por meio da semente de Abraão e venham a ser a herança do Messias; no Cristo de Deus, agora exaltado com autoridade universal, para receber aclamação universal; no Espírito de Deus, que convence do pecado, dá testemunho de Cristo e impele a Igreja a evangelizar; na Igreja de Deus, que é uma comunidade missionária multinacional, com ordens de evangelizar até que Cristo volte.

A dimensão global da missão cristã é irresistível. O cristão individual e as igrejas locais que não se comprometem com a evangelização do mundo estão contradizendo, por cegueira ou por desobediência, uma parte essencial de sua identidade, a qual provém de Deus. O mandato bíblico para a evangelização do mundo não pode ser ignorado.

John R. W. Stott, “A Bíblia na evangelização do Mundo”, in: Kevin D. Bradford; Ralph D. Winter, Steven C. Hawthorne, eds., Perspectivas no movimento cristão mundial (São Paulo Vida Nova, 2009), p. 20.

 

O contexto para entender a missão de Deus é o nosso mundo. Uma vez que ele está trabalhando no universo inteiro e se revela por meio de todas as coisas criadas (cf. Sl 19; Rm 1), fica claro que Deus tem um interesse especial pela humanidade. Diferentemente dos animais, os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26). Nossa importância para o Criador é ressaltada pelo fato de que a Bíblia foi dada para nosso benefício, e Jesus Cristo veio a viver como homem enquanto estava na Terra.

John R. W. Stott, “A Bíblia na evangelização do mundo” Perspectivas no movimento cristão mundial, cap. 1.

Outro fato inegável sobre a humanidade é que estamos fortemente ligados ao pecado. Exceto por breves passagens no início e no final, o pecado está presente ou pressuposto em todas as páginas das Escrituras. Desde a Queda da humanidade registrada em Gênesis 3, nós não apenas nos envolvemos em atos de comportamento pecaminoso, mas também somos inclinados a pecar por nossa própria natureza, e até mesmo encorajamos a multiplicação do pecado por meio de determinadas estruturas sociais que criamos em todo o mundo. Por todas essas razões, a missão de Deus não é meramente um assunto fascinante para contemplarmos, mas uma questão urgente para os pecadores rebeldes. A Bíblia deixa claro que não somos apenas apanhados pelo pecado; somos também incapazes de nos desvencilhar dele por nossos esforços — precisamos de um Salvador.

 

A MISSÃO DE DEUS

Existe uma tendência por parte de muitos cristãos para definir a missão de Deus principalmente em termos de sua resposta às nossas necessidades.

Essa é uma abordagem útil no sentido de que nos lembra de sermos práticos, mantendo especialmente como centrais a mensagem de salvação e as demonstrações práticas do amor de Deus. Nesse sentido, a missão de Deus talvez seja diferente de muitos outros tópicos teológicos. Não é suficiente apenas acreditar no que é verdadeiro; missão implica claramente ação. Por exemplo, o objetivo dessa perspectiva não é simplesmente entender o destino dos perdidos, mas sobretudo tornar-se mais bem equipado para salvá-los desse destino.

No entanto, outra abordagem que nos ajuda a compreender a missão cristã é visualizá-la a partir da perspectiva de Deus, que pode ser entendida como um ponto de vista mais amplo, uma vez que nossa salvação foi concebida antes que a humanidade ou o próprio mundo existissem (cf. Ef 1.4; 3.11).

A salvação oferecida por meio de Jesus Cristo não é apenas uma resposta à situação da humanidade, mas também o cumprimento de um plano posto em prática muito antes do nascimento de Jesus.

Essa abordagem é especialmente útil por fornecer uma base para entender o Antigo Testamento. Se a salvação vem por meio de Jesus, pode-se perguntar: E os judeus que viveram nos séculos anteriores? Ou, por falar nisso, qual era a situação da humanidade antes que o povo judeu fosse formado?

Ou, retrocedendo ainda mais, qual era o plano de Deus para a humanidade antes da Queda? E qual é o seu plano para o futuro, quando estaremos em sua presença? A salvação será então um fato consumado para os crentes; e o que vem depois?

Missio Dei é uma expressão em latim (traduzida por “missão de Deus”) comumente usada para descrever o plano de Deus para o universo a partir de sua própria perspectiva. Inclui a parte do plano que mais diretamente diz respeito à igreja, mas engloba muito mais que isso. Por exemplo, como já foi observado, a Bíblia nos diz que Deus concede para toda a humanidade um testemunho sobre seu caráter por meio da revelação geral. Em outras palavras, ele já está trabalhando antes que o evangelista apareça!

Seríamos presunçosos em pensar que Deus trabalha exclusivamente por meio de homens e mulheres. Ele não é nosso servo, nem depende de nós de maneira alguma. Assim como realiza coisas além de nossa compreensão (Ef 3.20), Deus opera no universo independentemente do homem (cf. Sl 90.1,2). Da mesma forma, ele trabalha no coração dos homens antes mesmo de o evangelho lhes ser pregado, permitindo que experimentem os efeitos da vida vivida à parte de seu desígnio (Rm 1.24,26,28), bem como incomodando sua consciência o suficiente para ficarem perturbados (cf. Rm 2.1,14,15).

O seguinte diagrama retrata o relacionamento entre a Missio Dei, a missão da igreja e a missão global:1

Missio Dei, a maior esfera, refere-se a tudo o que Deus está realizando no universo, incluindo coisas fora do nosso mundo. Abrange tanto o reino visível como o mundo invisível dos anjos, principados etc. A amplitude do tempo também é maior, estendendo-se para antes e depois do período em que a humanidade existe na Terra.

Fundamentalmente, remete ao fato de que Deus é ativo.

A missão de Deus é uma expressão lógica de seu caráter santo, amoroso, todo-poderoso e eterno. Ao contrário do pensamento do deísta, Deus não acabou de criar o mundo e simplesmente se afastou até que ele por fim desmoronasse. Ele está constantemente trabalhando, buscando a plena implementação (consumação) de sua missão (cf. Ef 1.10; Cl 1.20).

Missão” refere-se à parte do plano de Deus que foi delegada à igreja de Jesus Cristo. O reino, neste caso, é principalmente o mundo físico, mas os servos de Deus têm o maravilhoso privilégio de lhe pedir, por meio da oração, que alinhe os seres e as forças

do mundo invisível para promover o trabalho que eles executam, isto é, o trabalho de Deus. A amplitude do tempo é aquela fatia da eternidade em que a humanidade habita este mundo, incluindo a obra de Deus por meio de Israel e da igreja, bem como os servos

que ele chamou antes da formação de Israel e até aqueles que o servirão na Terra depois da volta de Cristo. Para os cristãos, nossa “missão”, além de promover o conhecimento de Deus no mundo, inclui o cumprimento de todos os mandamentos de Deus, a vida reta e santa, em comunhão com outros crentes, estudando a Palavra de Deus e adorando o Pai.

Missões”, entre as demais esferas, é mais bem entendida como um subconjunto essencial da “missão” da igreja. Refere-se aos esforços dos cristãos para dar um testemunho positivo, centrado no evangelho, àqueles que estão fora do corpo de Cristo. Historicamente, o termo foi reservado às ações concretas dos crentes para alcançar aqueles que estão a uma distância geográfica ou cultural das igrejas locais estabelecidas.

Uma grande variedade de ações pode ser incluída nesse esforço, mas a proclamação da boa-nova sobre a morte e a ressurreição de Jesus Cristo deve ser nosso principal objetivo. O estabelecimento de igrejas autossustentadas e reprodutivas também é considerado um objetivo necessário, tanto para mostrar plenamente a vida transformada dos crentes quanto para dar continuidade aos esforços ao longo de várias gerações.

Henry T. Blackaby; Avery T. Willis Jr., “Em missão com Deus”, in: Perspectivas no movimento cristão mundial, cap. 6.

 

Veja a continuação no arquivo anexo a este post

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