Igreja e políticas públicas
Sinalizando o reino de Deus na esfera pública
Mauricio Cunha
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Este artigo é uma versão condensada do capítulo 3 do livro O Reino de Deus e a Transformação Social. Você pode adquirir a obra completa no site da Ultimato.
A relação entre a Igreja e a política (aqui compreendida, de uma forma mais ampla, como as relações de poder, ou seja, a “esfera de soberania” ou “domínio social” relacionado com o exercício do poder e o Estado numa determinada sociedade) é um tema controverso e, muitas vezes, mal compreendido, mas que precisamos abordar se queremos de fato ser uma Igreja que exerce sua missão e seu papel de manifestar os sinais do reino aqui na Terra.
Uma das questões a serem superadas diz respeito à compreensão da importância da participação social e cidadã por parte dos cristãos, não apenas como um “adendo” à “real” missão da Igreja, mas como cerne e essência do chamado de Deus para o seu povo. A militância sócio-política, longe de ser considerada uma atividade “mundana”, encontra-se permeada nas Escrituras como parte central à própria proposta de missão da Igreja. Desde o Velho Testamento, Deus estabelece uma ordem social a ser seguida que, caso cumprida, traria prosperidade e justiça para todos em Israel. Essa ordem social manifesta, entre outras coisas, a sinalização do reinado de Deus na terra, e traduz os elementos do seu caráter a das suas plenas intenções para a criação.
O evangelho, por sua vez, não anulou as implicações sócio-políticas do reino de Deus. Ao contrário, a própria palavra “evangelho” (evangelion, no grego) traz profundas conotações políticas uma vez que se trata de um termo com alto significado político, não sendo um termo religioso usado primeiramente pelos primeiros seguidores de Cristo, mas uma palavra emprestada dos discursos de generais e césares romanos. Dessa forma, o “evangelho” anunciava a vitória do imperador, a chegada do “sóter”, o salvador, o realizador da paz (nesse sentido, da pax romana). Quando os apóstolos e primeiros cristãos mantiveram o termo “evangelho”, portanto, estavam tomando emprestado da esfera política um termo que significava uma nova ordem não apenas religiosa, mas sócio-política, ou seja, um novo projeto civilizacional, o discipulado das nações diante do governo de um novo rei, conforme anunciado pelo anjo a Maria (Lc 1.31-33).
O evangelho de Cristo nasce, então, num contexto de abuso de poder como esperança, fé e plataforma de ação de uma comunidade marginalizada que sofria os efeitos da opressão, anunciando um novo rei e uma nova realidade espiritual e temporal.
Sabemos que culturas e países que receberam uma maior influência cristã histórica reformada tendem a ter uma tradição de instituições mais solidamente arraigadas nos princípios democráticos e num efetivo controle social. Isso não é à toa. A visão cristã de mundo – com os seus valores de justiça, equidade, solidariedade, e especialmente por entender a necessidade de distribuição de poder ao considerar o mal inerente à condição humana e, portanto, a tendência do homem para a corrupção um fato – estabelece o fundamento para a construção de sociedades mais participativas e com uma efetiva vigilância social sobre aqueles que exercem o poder.
Num país como o Brasil, onde ainda encontramos um enorme abismo social e uma das maiores desigualdades do mundo, mas que ao mesmo tempo impõe uma das mais altas cargas tributárias[1], com um Estado que se fortalece a cada dia, torna-se vital para igrejas e organizações cristãs que de fato almejam uma influência no campo da reforma social o exercício da participação cidadã e da relação crítica com a cultura, governos e sociedade. No campo do terceiro setor, há muito devemos sair do mero modelo assistencialista de “entrega de serviços” para a população socialmente vulnerável e migrar para o modelo da defesa de direitos, empoderando a sociedade, especialmente os excluídos, rumo a uma participação cidadã efetiva que toque nas estruturas de perpetuação das misérias e injustiças que ainda assolam o nosso País. O arcabouço jurídico e institucional do Brasil, felizmente, permite-nos essa participação, fruto de uma luta histórica pelos direitos civis e pela defesa da democracia. Resta-nos tomarmos o nosso lugar nessa jornada.
A base do sistema democrático está na participação popular e no controle social. Os espaços garantidos (fóruns, conferências, conselhos, audiências públicas, consultas abertas etc.) são espaços legítimos de influência num país democrático, onde os grupos podem militar por seu ideário e sua visão de mundo na busca maior pelo bem-estar da sociedade. Desse modo, a participação cidadã deveria partir de um compromisso do povo de Deus com o reinado de Cristo, com a justiça e com o próximo, e não apenas da defesa dos interesses da própria Igreja.
A luta da Igreja por sociedades justas, livres, solidárias e prósperas é uma luta histórica, e não constitui nenhuma novidade na sua prática missiológica. Há inúmeros exemplos de cristãos que foram agentes de transformação e de reforma social no seu contexto e na sua geração nos mais variados aspectos e dimensões da realidade social.
Mas a relevância da Igreja na participação cidadã na América Latina de hoje, passa, a meu ver, primeiramente por uma revisão da sua própria teologia. É necessário que abracemos uma teologia de fato integral – rompendo com os diversos dualismos decorrentes da separação entre o “sagrado” e o “profano”. Esse tipo de pensamento, influência da cosmovisão grega e que assume novos contornos na nossa eclesiologia e missiologia de forma muito contundente no século 20, faz com que a militância sócio-política seja relegada a uma segundo plano, inferior, quando muito tolerada pela Igreja, constituindo, quando existente, uma prática isolada de membros das igrejas desprovida de qualquer significado ligado à própria essência da Missão. O rompimento desta dicotomia, que na verdade é a mesma dicotomia clero X laicato, fé X obras, evangelismo X ação social, é um aspecto fundamental para uma ação qualificada e significativa. A compreensão da integralidade das intenções de Deus para a sua criação coloca o evangelismo e a ação social (aqui compreendida como “ação na sociedade”, muito mais do que cuidado direto dos pobres) como aspectos indissociáveis do agir redentor de Deus.
Para a realização de uma incidência política na perspectiva do reino de Deus, todas as dimensões de atuação na sociedade devem ser abordadas como esforço da Igreja de Jesus Cristo em santificar todas as coisas. Para o propósito de redenção de todas as coisas em Jesus, todas as esferas da criação estão sendo reconciliadas nele mesmo. Assim, a atuação em incidência política na perspectiva cristã admite essa atividade como ação em determinada esfera da criação de Deus, que, por sua vez, tem levantado homens e mulheres para cooperarem com ele na redenção desta dimensão da vida.
O advocacy (sem tradução literal para a língua portuguesa) consiste, portanto, em um conjunto de ações que visam influenciar a formulação, aprovação e execução de políticas públicas junto aos poderes constituídos e à sociedade por meio do trabalho em redes e mobilização da mídia. Essa palavra também tem sido utilizada para traduzir toda a ação política realizada, individual ou coletivamente, com o intuito de gerar mudanças em políticas públicas e sistemas de governo em prol de pessoas ou grupos específicos.
Trata-se de tema de grande interesse para as igrejas interessadas em provocar mudanças na sociedade, a partir de políticas públicas nos diversos domínios sociais, na sua tarefa de discipulado da nação. Essas mudanças passam efetivamente pela luta na defesa de direitos, o que significa influenciar pessoas, políticas, estruturas e sistemas a fim de causar mudança, influenciando as pessoas no poder para que ajam de maneira mais ética e igualitária.
Faz parte da missão da Igreja realizar a defesa de direitos, falando contra a injustiça, defendendo a causa dos pobres, responsabilizando as pessoas no poder e empoderando as pessoas para que falem por si próprias. Seu objetivo fundamental é trazer e demonstrar as boas novas da vinda do reino de Deus.
Vamos assumir o processo de incidência como aquele que busca “influenciar”, “alterar rumos”, “gerar impactos no processo de tomada de decisão” com relação à criação, ao desenvolvimento, à avaliação, à correção e ao monitoramento de uma política pública. Por política pública, entendemos aquela que, muito além da política partidária, responde a interesses públicos e que deve se constituir em política de Estado, de longo prazo, sintonizada e fundamentada pelo marco legal, ultrapassando as políticas de governo de uma determinada gestão em exercício, garantindo direitos para a população e que podem ser decorrentes ou não da pressão/proposição de movimentos sociais e de outros setores organizados da sociedade. Esse trabalho de incidência em políticas públicas poderá gerar a criação, implementação ou monitoramento de uma política, o fortalecimento de uma política já existente, ou mesmo o trabalho de barrar algum retrocesso numa determinada questão já conquistada.
Para uma ação efetiva da Igreja no campo das políticas públicas, precisaremos vencer diversos desafios, entre eles:
- O respeito às diferenças, considerando a multiplicidade e a pluralidade da arena social;
- A necessidade de aprendermos a andar em alianças e coalizões por uma causa comum, sem abrir mão das nossas convicções, dentro do princípio da co-beligerância;
- O empoderamento de vocações para a ação extra-eclesiástica e o reconhecimento dessa como expressão legítima da sinalização do reino de Deus;
- A ação qualificada dos cristãos, a partir de um conhecimento profundo da realidade que se quer transformar, num contexto que exige muito mais que “boas intenções”.
Além disso tudo, precisamos de competência no exercício da confessionalidade sem ter agenda proselitista nas ações da arena política – toda a abordagem de engajamento sócio-político cristão não deve ser operada sob a ótica do “gancho para o evangelismo”, nem para impor a moralidade cristã. A legitimidade de nossa ação está na natureza da realização da justiça – valor central do Reino de Deus – e aplicação da verdade do evangelho na dimensão do acesso aos direitos. O exercício dessa competência não abre mão da identidade cristã como motivadora da iniciativa, mas mantém a especificidade da ação garantindo a entrega legítima à sociedade, a saber, o direito realizado à população.
Da mesma forma, devemos evitar a todo custo problemas históricos recorrentes da relação dos evangélicos com a política:
- O messianismo – segundo Paul Freston, “o projeto de mudar o homem no poder, ao invés do conceito reformado de pecadores controlando-se uns aos outros num sistema de fiscalização mútua”);
- O triunfalismo – a crença, absolutamente não comprovada historicamente, de que a presença dos evangélicos na arena política automaticamente, de uma forma mágica (e não pela via do exercício da ética cristã), gerará bênçãos e transformações na sociedade);
- O corporativismo – a militância política apenas para defender os interesses dos grupos evangélicos ou para impor a sua visão de mundo à sociedade pela via do poder, e não da evangelização e do serviço.
Nossa tarefa consiste, portanto, na aplicação da verdade no domínio social das políticas públicas, orientados pela cosmovisão e pela ética cristã na busca pela sinalização do oniabrangente reino de Deus.
Sobre o autor
Mauricio Cunha é assessor de Igreja e Políticas Públicas da Aliança Evangélica Brasileira e Diretor Executivo do CADI Brasil
Fontes
Freston, Paul. Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não. Viçosa: Editora Ultimato, 2006.
Cartilha “Por Muitas Mãos”. Cadernos de Cidadania Cristã – REPAS (Rede Evangélica Paranaense de Ação Social)
[1] Segundo recente pesquisa divulgada nos meios de comunicação e realizada em 30 países, o Brasil apresentou um dos piores desempenhos na avaliação do retorno que a população recebe na qualidade dos serviços públicos em comparação com o nível da carga tributária.