Estabelecimento de comunidades de fé em contextos não cristianizados – Parte 3/3

Um modelo sociocultural (contextualizado, que produz arraigo) e perdurável (liderança autóctone e equipes mistas)

Carlos Madrigal Mir

Na primeira parte do texto (disponível aqui), o autor fala sobre como um modelo de comunidade com direção e com “honra” (ser bem vista) foi essencial no contexto turco. Na segunda parte (disponível aqui), também a partir das décadas que atuou na Turquia, Madrigal toca em assuntos críticos como a questão do sustento da obra transcultural e a necessidade de o “povo do Livro” ser a prova viva da veracidade da Escritura.

Nesta terceira parte, o autor toca novamente em questões sobre contextualização, expondo como lançaram mão de festividades para comunicar o evangelho. Por fim, trata da necessidade de se desenvolver uma liderança autóctone e o processo para tal, bem como a riqueza ministerial que equipes mistas proporcionam. Confira!

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Um modelo sociocultural

Todos somos parte de grupos humanos. Começando pela família, os vizinhos, nosso ambiente na escola ou no trabalho, o círculo de amigos, a sociedade à qual pertencemos etc. Ao mesmo tempo, o crente é chamado para ser “igreja”, o que, segundo a etimologia de ekklesia, quer dizer “chamado a sair” fora, ou seja, a formar um grupo diferenciado. Só que a igreja não está isolada do mundo, ela faz parte da sociedade. Todo ser humano – incluindo os crentes que são a igreja – não apenas participa desses grupos como também se relaciona com eles, e essa relação orienta-se por padrões culturais. O contexto cultural em que se está inserido inclui tradições populares, dias festivos, celebrações religiosas, expressões artísticas, eventos públicos…

As festividades dadas por Deus ao povo de Israel no Antigo Testamento serviam para exemplificar sua relação com ele, dar uma identidade como povo e fortalecer os laços entre eles (ver Levítico 23). Ao mesmo tempo, cada uma prefigurava um aspecto da obra redentora de Cristo:

  1. A Páscoa: o sacrifício de Cristo (1Co 5.7; Hb 9.28)
  2. Os pães sem levedura: a comunhão com Cristo (1Co 5.6-7)
  3. As primícias: a ressurreição de Cristo (1Co 15.23)
  4. Pentecostes: a descida do Espírito de Cristo (At 2)
  5. As trombetas: a segunda vinda de Cristo (1Ts 4.16)
  6. A expiação: o valor expiatório de Cristo (Hb 9.23-26)
  7. Os tabernáculos: as nações adorando a Cristo (Zc 14.16)

O próprio calendário festivo do Antigo Testamento nos dá uma primeira pauta para as festas que podemos promover entre crentes vivendo em um contexto não cristão. A razão das festas é conhecer, celebrar e dar a conhecer a Jesus, além de fortalecer a identidade e vínculos como povo de Deus.

O que nos interessa aqui é ver que as festividades são uma maneira de inculcar os valores de uma cosmovisão na consciência coletiva. Aqui devemos fazer três preguntas:

(1) Quais são as festividades da igreja e em que medida encaixam ou não em outros contextos culturais?

(2) Pode haver alguma festividade de culturas alheias ao evangelho das quais a igreja possa se apropriar (por exemplo, festas da colheita)?

(3) Em que grau o crente deve ou pode participar das festas religiosas de seu entorno e de familiares não crentes?

Falar de festividades cristãs é um pouco complexo e ao mesmo tempo relativo. As duas únicas celebrações-cerimônias que nos recomendam o NT são o batismo e a mesa do Senhor (a eucaristia). Não aparecem no texto sagrado nem mesmo instruções específicas para os casamentos ou funerais. A Semana Santa é celebrada como uma consequência lógica da data e do valor da morte de Jesus. Não é uma coincidência Jesus, a “nossa Páscoa” (1Co 5.7), ter morrido durante a Páscoa. O Natal, por sua vez, surge como uma “contextualização” ao culto do solstício (nascimento do sol) no calendário do Império Romano. Logo, cada ramo do cristianismo foi desenvolvendo seu próprio calendário religioso, enchendo o ano de festas maiores ou menores.

Um dos propósitos da contextualização – além de tornar a mensagem acessível a uma cultura – é ou deveria ser apoiar o novo crente, evitando na medida do possível o choque do desarraigo cultural. Ou, no mínimo, evitar que se sinta alienado, sem nenhum arraigo social. Portanto, é importante prover uma identidade comunitária, seja com os crentes, seja com a sociedade inteira na medida do possível, e as celebrações desempenham um papel-chave nisso. Muitas vezes o desenraizamento é provocado pela rejeição de seus concidadãos à nova fé – isso é inevitável –, mas também pode decorrer do fato de o crente ficar perplexo entre sua nova e velha identidade, não sabendo como se comportar diante dos compromissos sociorreligiosos de seu entorno familiar e cultural.

Paulo dedicou uma boa parte de suas epístolas para tratar desses assuntos, pois  causavam confusão e conflitos entre diferentes culturas (crentes de origem judaica e de origem gentílica, de modo geral). O crente gentil, por exemplo, não sabia até que ponto continuava a participar dos encontros sociais com os seus familiares e amigos não crentes já que muitos desses eventos tinham componentes pagãos. Surge, por exemplo, o dilema sobre comer ou não com aqueles que ofereciam seus alimentos aos ídolos. Paulo propõe uma atitude flexível. Ele diz: “Se um descrente o convidar para uma refeição, aceitem o convite se desejarem. Comam o que lhes oferecerem, sem questionar nada por motivo de consciência” (1Co 10.27). Parece não censurar o fato em si de comer carne oferecida aos ídolos já que “nós sabemos que, na verdade, o ídolo nada vale neste mundo” (1Co 8.4). Adverte, no entanto, sobre a confusão que isso pode causar na consciência do “fraco” na fé (ou neófito) ou na consciência do não crente: “Contudo, tenham cuidado para que sua liberdade não leve outros de consciência mais fraca a tropeçarem” (1Co 8.9); “Mas, se alguém lhes disser: ‘Esta carne foi oferecida a um ídolo’, não a comam por respeito à consciência da pessoa que os avisou” (1Co 10.28).

Com relação aos crentes de origem judaica, Paulo não tenta dissuadi-los de guardar certos dias festivos, contudo exorta tanto os que praticam como os que não a não julgarem uns aos outros (Rm 14.1-6).

Agora, onde está o limite ou a fronteira entre o respeito e o sincretismo? Podemos participar indiscriminadamente de todo tipo de ato social ou religioso? Podemos manifestar, inclusive, que comungamos com seu conteúdo religioso?

Um texto comumente apresentado pelos crentes dos insider movements [traduzido para o português como movimento infiltrador ou movimentos internos[1]] com o intuito de animar os novos crentes a seguir visitando a mesquita e participar de seus ritos é o relativo à consulta de Naamã a Eliseu. Naamã diz: “‘Mas que o Senhor me perdoe por uma coisa: quando meu Senhor, o rei, for ao templo do deus Rimom para adorar ali e se apoiar em meu braço, que o Senhor me perdoe quando eu também me curvar.’ ‘Vá em paz’, disse Eliseu. (2Re 5.18-19). Naamã pede permissão para se inclinar junto com seu rei perante o ídolo Rimom quando tivesse de acompanhá-lo ao templo, e Eliseu não o recrimina, mas diz: “Vá em paz”.

O caso de Naamã justifica continuar adorando na mesquita mesmo sendo cristão? Eu acredito que o texto é mais aplicável aos cargos públicos. É o caso de um mandatário (como era Naamã) convidado a uma cerimônia em um templo alheio a suas crenças em qualidade de funcionário do Estado. Ali, não está representando o Senhor, mas a posição de seu governo. Hoje em dia, seria como respeitar o pluralismo. Por outro lado, conhecida é a recusa dos crentes em adorar a figura de César e as consequências que isso acarretou. A dicotomia entre (1) mostrar flexibilidade e respeitar os demais e (2) não fazer concessões no terreno da fé não é simples.

Quando abertamente se dê a entender que, com sua participação, você está comprometendo sua fé, então deve abster-se. Como já notamos na advertência de Paulo – “Mas, se alguém lhes disser: ‘Esta carne foi oferecida a um ídolo’, não a comam por respeito à consciência…” (1Co 10.28) –, era como se o pagão estivesse dizendo ao cristão: o que te ofereço é para que você também adore aos ídolos. Por isso, os cristãos rejeitavam o culto a César: tinham de optar entre César e Cristo. O Novo Testamento, por sua vez, nos dá liberdade, mas o uso dela não deve colocar em risco nossa fé em Jesus, causando confusão e tropeço.

Qual foi a atitude de Jesus, se a tomou, em situações semelhantes? Afinal de contas, ele deve ser nossa referência em tudo. Jesus era tremendamente social. Sua primeira aparição pública acontece em um casamento (Jo 2.1-2). Já destacamos que ele não se recusava a entrar em nenhum ambiente, mas não para se adaptar ao ambiente e sim para iluminá-lo. É certo que não estava disposto a entrar em círculos pagãos? Vejamos o caso do servo do centurião.

Naquela ocasião, um escravo muito estimado de um oficial romano estava enfermo, à beira da morte. Quando o oficial ouviu falar de Jesus, mandou alguns líderes judeus lhe pedirem que fosse curar seu escravo. (…) Jesus foi com eles, mas antes de chegarem à casa, o oficial mandou alguns amigos para dizer: “Senhor, não se incomode em ir à minha casa, pois não sou digno de tamanha honra. (Lc 7.2-6).

Jesus parece determinado a entrar na casa de um pagão. É o centurião, talvez por respeito à sua condição de judeu, que evita o incômodo. É que, para o judeu, era abominável entrar na casa de um gentil! Por isso, Pedro teve de ser sacudido por uma visão celestial para chegar a entrar na casa de um centurião: “Vocês sabem que nossas leis proíbem que um judeu entre num lar gentio como este ou se associe com gentios. No entanto, Deus me mostrou que não devo mais considerar ninguém impuro ou impróprio” (At 10.28).

Se o Senhor Jesus assim guiou Pedro desde o céu, podemos assumir uma vez mais que ele também estaria disposto a entrar na casa do centurião em seus dias na terra.

Podemos deduzir da atitude de Jesus um princípio de atuação? Creio que este seria o princípio: não é com quem nos relacionamos o que pode representar um problema, mas como nos relacionamos. Se tal relação é para negar – ainda que tacitamente – a Jesus, estamos comprometendo a fé. Se é para representá-lo ou proclamá-lo, somos chamados a entrar até no mesmíssimo inferno[2] (Mt 16.18)!

Em que grau o crente deve ou pode participar das festas religiosas de seu entorno e de familiares não crentes como o iftar?

 

Agora, o ponto de nossa dissertação aqui era ver em que medida se pode evitar o desarraigo e a repulsa do convertido em uma sociedade hostil ao evangelho, bem como suprir a necessidade de um arraigo social em tais circunstâncias. O que fazer com as festividades próprias e alheias? O tema é amplo e complexo, e não discorreremos sobre ele aqui em toda sua extensão. Vale ressaltar que é um tema que os evangélicos ainda não abordaram adequadamente, talvez por nossa repulsa “protestante” à desproporção que alcançaram certas celebrações no âmbito da cristandade tradicional, como o carnaval, por exemplo. Para não ter de entrar em esclarecimentos intermináveis nem deixar o tema no ar, prefiro compartilhar brevemente alguns exemplos de nossa experiência, mesmo que apenas aporte umas pinceladas. Incentivo que estudiosos tratem desde tema como se merece em outro lugar.

Por um lado, nossa luta por ganhar legitimidade em uma sociedade de esmagadora maioria muçulmana enfatizando nossa identidade cristã nos levou a ser convidados a diversos atos públicos. Assim, todo ano o prefeito de nosso distrito em Istambul nos convidou, junto com o mufti sunita e o dede alevi[3], a participar de pelo menos três festas: a aşure (festa alevi em comemoração ao assentamento em terra da arca de Noé), o último e principal iftar (refeição ao anoitecer para romper o jejum diurno no mês de Ramadã) e um café da manhã “natalino” promovido pela prefeitura. Em tais ocasiões, ninguém pensou que mudamos de religião por conta de nossa presença. Não estávamos lá encobrindo Jesus, pelo contrário, era para falar dele. E podíamos fazer isso diante de milhares de pessoas às quais não teríamos acesso de outra forma! Por isso, é uma maneira de seguir o princípio deduzido da atuação de Jesus que antes apontamos. Outra coisa muito diferente seria a igreja organizar um iftar e convidar os representantes muçulmanos – dessa forma as identidades se diluiriam (e lamentavelmente não falta quem tenha tentado).

Por outro lado, as festas cristãs são conhecidas na sociedade turca, em especial o Natal. São, inclusive, apreciadas. Na véspera de Natal, todas as igrejas de todas as confissões do país estão abarrotadas, e a maioria dos que participam das celebrações são muçulmanos! Algo parecido acontece no domingo da ressurreição. Qualquer outra tentativa de propagação pública do evangelho – exceto convites para alguma festividade religiosa – é vista basicamente como uma provocação. Portanto, como igrejas, percebemos que nosso patrimônio festivo protestante, que se reduz a Natal e Páscoa, era insuficiente. Começamos, então, a buscar no calendário católico ou ortodoxo outras celebrações de raiz bíblica que pudessem servir para convidar a comunidade: ascensão, pentecostes, a transfiguração… Tais festividades, junto com o  Natal e a Semana Santa, eram acontecimentos “exóticos” e atraentes para os visitantes nos quais celebrávamos Jesus e falávamos dele ao longo do ano.

A conclusão seria que podemos participar de qualquer tipo de ato religioso alheio sempre que isso nos permita representar Jesus ou inclusive falar dele. Podemos, também, resgatar qualquer tradição cristã, qualquer atividade que seja um meio aceitável e atrativo para a sociedade na qual nos encontramos de expressar nossa fidelidade a Jesus e proclamar seu nome. Dessa forma, o crente nativo, em vez de se sentir desarraigado, fica orgulhoso de sua identidade em Cristo e amparado em um novo marco de festividades. Encontrou seu lugar no mosaico cultural de sua sociedade!

Mais uma vez, ressalto que não pretendo expor fórmulas com esses exemplos, que seguramente não serão válidos em outros contextos, apenas mostrar como em nosso caso enfrentamos a necessidade de buscar arraigo social. Com isso, nossa intenção é animar outros a buscar suas próprias alternativas sob o direcionamento do Espírito Santo e das Escrituras.

Um modelo perdurável

A chave para abençoar as nações é a igreja que Jesus deseja. Ali onde esta igreja está, é luz e sal. Ali onde a igreja exemplifica e proclama a Jesus, a imagem toma força, inclusive sobre os que não confessam a Jesus. Ali onde a igreja fortalece seus laços de comunhão e unidade, a presença de Deus se manifesta.

Olhando para trás na história, uma vez assentada a igreja no mundo clássico e nas nações bárbaras, a forma de cumprir a Grande Comissão foi diferente de acordo com as religiões presentes nos diversos contextos. Concretamente, depois da Reforma e nos centrando nos protestantes ou evangélicos, ali onde já existia uma igreja reformada esta se multiplicou embasada nos chamados “avivamentos”. Em contrapartida, na hora de se estender onde dominavam outras confissões, ou seja, católicos e ortodoxos, podemos dizer que se deu uma “protestantização”. Já em lugares com religiões de vocação universal como o budismo, o islamismo etc., foi necessário um trabalho de mais profundidade, o que poderíamos chamar de uma “cristianização”. Por último, naquelas latitudes com religiões politeístas, panteístas, animistas, xamanistas etc., antes foi necessário fazer uma “monoteização”. Mesmo que hoje em dia alguns desses termos gerem antipatia e evoquem metodologias contraproducentes, eles são válidos para destacar que se requer diferentes graus de aprofundamento segundo os diferentes contextos. Devem servir para notarmos, por exemplo, que não podemos esperar um “avivamento” ali onde a igreja ainda não se arraigou socialmente. Antes, deveríamos orar e trabalhar para ver uma “colheita”.

Pela mesma regra de três, devemos destacar que serão necessários diferentes níveis de esforço na hora de estabelecer a igreja. Será oportuno distinguir entre “importar”, “implantar”, “reproduzir” ou “plantar” igreja. Se queremos ver modelos de acordo com os diferentes contextos, necessitamos considerar tais diferenças. Mais ainda se o que buscamos é plantar a igreja de Jesus e não a nossa, nem de nossa cultura ou nossa denominação.

Hoje em dia todo mundo fala de “plantar igreja”, mas devemos ser conscientes de que o que muitas vezes entendemos por “plantar igreja” é o que funciona em nossos países onde já existem modelos consolidados. Portanto, mais que “plantar”, o que se faz é “reproduzir”. Enquanto que, se falamos de plantar igreja em terrenos virgens, “onde o nome de Cristo nunca foi ouvido” (Rm 15.20), falamos de todo um trabalho extra até chegar a ver que os modelos se consolidam, trabalho esse incomparavelmente mais árduo. Não me refiro tanto a criar ou não modelos contextualizados, mas à necessidade de se estabelecer modelos perduráveis. Se não somos conscientes desses diferentes níveis de dificuldade na hora de estabelecer novas comunidades, nos frustraremos ao não podermos levar o projeto adiante com brevidade, e abandonaremos antes da hora devido ao custo. Portanto, qual é a diferença entre um e outro nível na hora de formar a igreja?

  1. Importar – Trazer modelos forasteiros (denominações)
  2. Implantar – Abrir igreja onde já há igrejas nativas
  3. Reproduzir – Abrir sucursais de igrejas já estabelecidas
  4. Plantar – Criar e estabelecer modelos onde não há nada

Importar é como trazer para casa uma árvore de natal. A árvore é árvore (mesmo que seja de plástico), mas já não está onde tinha suas raízes (ou sua fábrica) e tudo nela (os enfeites) é postiço.

Implantar é como cultivar um campo de pinheiros ao lado de um bosque de pinheiros (em um terreno que, pela presença de outras igrejas tradicionais, já tem precedentes). Tomará seu tempo até que os implantados alcancem a envergadura de seus vizinhos (das outras igrejas), mas sua presença não é estranha para a sociedade.

Reproduzir é o resultado natural de os pinheiros implantados terem alcançado a maturidade, produzirem suas sementes e as espalharem. Ocorre de uma forma natural. E se os pinheiros cresceram é porque o terreno enriqueceu, sendo assim, a reprodução não encontra tantas travas.

Abrir uma igreja onde já há igrejas nativas é como cultivar um campo de pinheiros ao lado de um bosque de pinheiros.

 

Plantar, por sua vez, tendo em conta que se trata de grupo humano no qual não há igreja que o represente, seria como reflorestar um monte pelado ou um bosque queimado. É plantar onde as condições são inexistentes ou desfavoráveis. Requer começar do zero, o que é muito menos que começar de algo. Demanda criar modelos “novos”, mesmo que lançando mão de tudo aquilo que é favorável ao novo terreno em modelos “velhos”. Mas descobrir o que é favorável não é fácil, não se descobre senão com tentativas frustradas. É mais ou menos o processo que detalhamos sob o subtítulo “Um modelo de honra” na primeira parte deste conteúdo. Descobri-lo tomou tempo, foi necessário aprender o que não “funcionava” primeiro. Só que, uma vez criado o “modelo”, reproduzi-lo não é tão laborioso. Os novos brotos crescerão à sombra de seus vizinhos que os precederam e que já estão consolidados. Assim, em 30 anos, vimos 10 igrejas estabelecidas por meio de nosso ministério na Turquia, mas não uma igreja a cada três anos. As duas primeiras nos tomaram quase uma década cada uma. Estabelecido o modelo, o processo de reprodução acelera-se – já existe um modelo transferível!

Formação de líderes nativos

Importar modelos já existentes, em princípio, parece acelerar os resultados; a longo prazo, contudo, frente a outros modelos que se adaptam ao terreno, os ralenta. O mesmo pode ser dito sobre algumas ênfases importadas, em especial a teimosia em formar líderes de maneira efetiva. Não há dúvida que todos almejam ver crentes maduros tomando as rédeas da obra; ver, por fim, uma igreja estabelecida. A questão é que os esforços importados enfatizam formar líderes entre os recém convertidos. Uma quantidade de programas que vez ou outra batem à porta apresenta-se como treinamento para líderes. Programas que, em teoria, em um par de semanas equipam o novato para assumir liderança. Vai que ele aceita!? Aceita por inexperiência, ou, pior, por rebeldia. O problema é que esse tipo de formação descarta a jornada do discipulado, imprescindível para o modelo perdurável que buscamos – salvo honrosas exceções, a única coisa que produz são divisões. Como, dando os primeiros passos na vida cristã, pode-se receber a ratificação de seus pais espirituais por imposição de mãos para que assumam responsabilidades se ninguém presta contas do que faz a ninguém e ninguém se sujeita a ninguém (e, consequentemente, ninguém pode mediar quando surgem os conflitos)?

Meu ponto é que em nenhum lugar do Novo Testamento lemos “formem líderes” e sim “façam discípulos”. Dentre esses, alguns se sobressairão por seu coração, seus dons, seu serviço e um chamado específico. Então, o que nos diz o Novo Testamento é que são esses quem devemos “reconhecer, nomear, designar e ordenar” (At 14.23; Tt 1.5). Creio em uma liderança influente, ou seja, daqueles que por seu bom exemplo exercem uma influência positiva sobre os demais, levando aqueles que os seguem a desejar reproduzir seu exemplo. Todo líder que não tenha surgido de um processo de verdadeiro discipulado, em vez de uma influência positiva, propaga a “influenza” – uma gripe espiritual, um germe de orgulho e prepotência que vai de encontro com o modelo de líder-servo das Escrituras.

Se no passado se exerceu um paternalismo insano que freou o surgimento de líderes nativos, hoje em dia há uma pressa insana que está abortando a maturação de líderes nativos. Devemos colocar nossos anseios nas mãos do Senhor; equipar todos os crentes com os recursos do discipulado; dar oportunidades de serviço a todos; identificar os que se destacam por sua fidelidade e serviço; e apresentá-los aos irmãos como modelos a seguir. Como diz Paulo:

Vocês sabem que Estéfanas e sua família foram os primeiros convertidos na Acaia e têm dedicado a vida ao serviço do povo de Deus. Peço, irmãos, que se sujeitem a eles e a outros que, como eles, servem com tanta devoção. (…) Eles têm sido um grande estímulo para mim, como foram para vocês. Valorizem todos que servem tão bem. (1Co 16.15-18)

Implementamos nas igrejas da Turquia em plantamos um programa de estudos em três níveis: (1) discipulado, (2) desenvolvimento dos dons no serviço, (3) equipamento para tarefas de liderança. É um modelo transferível que fomenta o crescimento e a participação de todos de forma saudável e fluida. São os próprios crentes nacionais que,  uma vez tendo terminado um nível, compartilham com os novos crentes os ensinamentos que aprenderam, e assim sucessivamente.

Equipes mistas

Por equipes mistas me refiro tanto às formadas por membros de diferentes nacionalidades e contextos como em Atos 13.1 como às formadas por irmãos com os diferentes dons mencionados em Efésios 4.11 (o que poderíamos chamar de equipes apostólicas).

Criar equipes mistas de pastorado (estrangeiros e nativos) é prático, é saudável e é transferível.

 

É difícil encontrar Paulos hoje em dia, mas é possível encontrar um conjunto de crentes, uma equipe, que reúna entre todos os seus membros as habilidades e a autoridade de Paulo. De fato, nem sequer Paulo era Paulo sozinho (recordemos sua necessidade de encontrar Tito e de como ele mesmo formou equipes). Graças a isso, uma equipe pode aglutinar:

  • os que dão uma base estável à nova estrutura – dons apostólicos;
  • os que compartilham a Palavra com autoridade – dons proféticos;
  • os ganhadores de almas – dons de evangelista;
  • os que são mais protetores e educativos – pastores e professores.

Todos esses dons fazem falta em diferentes momentos e medidas no processo de estabelecimento de uma igreja. Como mencionado, é difícil encontrar alguém que reúna todas essas capacidades. A solução são equipes mistas no que diz respeito aos dons. Contudo, em um contexto que começa do zero, o número de obreiros estrangeiros e de crentes nativos, por um tempo, está no mesmo nível (ou pelo menos está no mesmo nível levando-se em conta os que estão aptos a assumir responsabilidades). Por isso, criar equipes mistas de pastorado (estrangeiros e nativos) é prático, é saudável e é transferível. O estrangeiro traz a experiência de seu contexto e, em geral, já teve contato com muitos outros ministérios. O nativo tem a experiência do país e conhece os aspectos culturais em profundidade. Assim, uns suprem as necessidades dos outros, ou seja, se complementam, sendo mais eficazes na hora de transferir, de reproduzir, de consolidar e de se estender a novas áreas.

Uma igreja com liderança estrangeira tem identidade estrangeira. O interessado que chega pode se sentir como que entrando em um terreno hostil, e o convertido se sente  como um visitante. O líder nativo, por sua vez (se é genuíno espiritualmente falando), atrai e retém os nativos. É trabalhoso o processo de se desvencilhar da imagem de igreja estrangeira – a chave está em formar equipes mistas por meio das quais o estrangeiro não se desgasta em situações que estão além de sua compreensão, e o nativo não se esgota com cargas que o excedem. Além disso, em muitos contextos, evita-se o risco de divisão por atitudes radicais de rejeição para com o estrangeiro que não poucas vezes afloram de repente. Os participantes já não se sentem visitantes, sentem-se em casa e se comprometem a levar adiante o que percebem como “seu”. A igreja, assim, ganha facilmente uma identidade autóctone frente às autoridades e à sociedade.

Essas são no entender algumas das características que ajudam a estabelecer um modelo perdurável.

Conclusão

Um modelo perdurável:

(a) É consciente das condições do terreno e de acordo com isso desobstrui, aduba, planta ou refloresta;

(b) Põe toda sua ênfase no discipulado, e deixa que a liderança surja de forma espontânea;

(c) É um modelo no qual os diferentes dons e culturas suprem as carências uns dos outros, e todos juntos glorificam ao Senhor, exemplificando e promovendo a reconciliação dos povos.

Além disso, é um modelo que reúne as características já mencionadas em partes anteriores deste conteúdo sobre o estabelecimento de comunidades de fé em contextos não cristianizados: igreja com três direcionamentos, modelo de honra etc. Pelo menos é o que aprendemos até aqui a partir de nossa experiência. Talvez no dia de amanhã as circunstâncias demandem substituir muito do que foi dito. O importante é saber ler e se adaptar aos tempos e às estações, e ter um espírito aberto e sensível ao direcionamento das Escrituras e do Espírito Santo.

Diz respeito a deixar a pegada na rocha, não na areia da praia. Porque deixar uma pegada na praia é questão de um segundo: não é necessário esforço, basta a força da gravidade. Só que tão fácil como se marca uma pegada na areia ela também se apaga, a menor das ondas já a faz desaparecer. E na rocha? Eu vi algumas e de considerável profundidade. Sim, pegadas humanas na rocha! Sem dúvida foi necessário um enorme número de colaboradores unidos, plantando o pé no mesmo lugar várias e várias vezes. Ninguém pode fazer algo dessa profundidade sozinho. Os que assim fizeram certamente sentiram que cumpriam com um dever sagrado, como sagrado é nosso dever de deixar pegadas. Inclusive as inclemências como a chuva com certeza ajudaram, corroendo e aprofundando a pegada na rocha ali onde já se desenhava. As adversidades, em vez de reverter o processo, ajudaram a acentuá-lo. Dessa forma, por conta da persistência de anos se alcançou o resultado (quem sabe quanto tempo atrás)! Uma vez gravada, a pegada na rocha não se apaga, fica para a posteridade. Apenas as pegadas na rocha serão modelos perduráveis, ou seja, transferíveis ao longo do tempo e das gerações.

Que ele nos use para edificar sobre a rocha!

–x–

O texto foi extraído do livro Recomponiendo La Missión Con Jesús – Reflexiones sobre la misión, sobre la tarea global y sus implicaciones para el mundo [Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo], publicado na Espanha por Impresiones em 2018. O Martureo recebeu autorização do autor para traduzi-lo e publicá-lo. Tradução: Lucas F. R. Juknevicius. Edição: Fernanda Schimenes.

Sobre o autor
Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona, e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.

Que tal ler outros textos do mesmo autor?

Perseguição e martírio de cristãos

Desmistificando o chamado missionário

 

[1] Saiba mais sobre os movimentos internos no artigo “A ‘ortodoxia’ evangélica, os líderes de missões e os muçulmanos seguidores de Cristo”, de Marcos Amado, disponível aqui.

[2] O texto de Mateus (NVI), na realidade, diz “portas do Hades”. A cena aconteceu em Cesareia de Filipo (Mt 16.13), em frente a um templo construído na boca de uma gruta conhecida como “a porta do Hades”. Assim, talvez seja possível assumir que Jesus está incentivando os seus a “entrar” em todo círculo pagão, se for necessário, e resgatar dali as almas perdidas.

[3] Os alevitas são um grupo étnico religioso islâmico heterodoxo que segue os ensinamentos místicos (Batini) dos Doze Imames e do santo Haji Bektash Veli. O nome deriva de Ali, genro e primo do profeta Maomé.

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