Estabelecimento de comunidades de fé em contextos não cristianizados – Parte 1/3
Um modelo com direção e com “honra” (ser bem visto) foi essencial: lições extraídas do contexto turco
Carlos Madrigal Mir
A comunidade crente deve suprir o vazio, o desenraizamento que se cria nos convertidos que não podem viver abertamente sua fé com os seus ou que eventualmente começam a sofrer perseguição. O fato é que tal demanda não é apenas dos crentes. Na verdade, a vocação da comunidade cristocêntrica (a igreja) é tapar esse buraco negro que ficou em toda a sociedade desde que o primeiro homem se afastou de Deus.
Seja como for que a definamos, a igreja é mais do que suas reuniões e atividades. É mais do que sua declaração de fé ou sentido de governo. Mais do que seus distintivos teológicos ou suas metas e projetos. E, claro, mais, muito mais do que os edifícios ou estruturas. Ao mesmo tempo, é algo muito simples. A igreja é uma família para o povo de Deus. Inclusive, uma família para brilhar no meio de todas as famílias da Terra; para exemplificar e anunciar a restauração da imagem, da bênção e da glória perdidas; para produzir um efeito reparador em meio a toda a sociedade. Mas para isso deve descobrir sua essência e não se envolver em intervenções alheias ao projeto de Jesus.
Se falamos de recuperar essa família em um contexto que por diversas razões presenciou a redução dos cristãos de 20% para 0,01% em apenas cinquenta anos como na Turquia, não podemos esperar resultados ou créditos imediatos. Devemos falar de perseverança, longanimidade e investimento sacrificial, mesmo que seja para que talvez apenas outras gerações colham fruto abundante. A tarefa é duplamente difícil: não somente temos de proclamar a verdade, primeiro temos de desfazer equívocos. Mas temos o privilégio de curar feridas onde outros foram feridos, de permanecer onde outros sucumbiram e de construir onde outros foram derrubados.
Acima de tudo, a comunidade é e deve ser esse lugar ou ocasião de encontro com Deus e com a família da fé, de refúgio espiritual, de crescimento saudável e de preparação para se lançar a novos horizontes. Assim como Deus formou uma primeira família para povoar uma terra desabitada, a comunidade entendida como família será a chave para repovoar os lugares devastados. E leva uma vida inteira para construir uma família! Mas, se vamos recompor [a missão] com Jesus, precisamos redescobrir a igreja que ele almejava, buscar a essência do que ele propunha quando falou de edificar a sua igreja. Por sua vez, devemos saber respeitar tudo aquilo que há de legítimo no desenvolvimento posterior do que foi e é a igreja na história e nas culturas. Para não cair em uma mera imitação formal nem em uma crítica autodestrutiva, teremos de mergulhar fundo em certas questões, abordando alguns temas espinhosos, talvez polêmicos, ou, no mínimo, incômodos.
Há anos caiu em minhas mãos um livrinho muito revelador intitulado A igreja que Jesus ansiava, escrito por jesuítas. Seus capítulos abordavam diversos tópicos tratados por diferentes autores. Mal tinha umas cem páginas. Tristemente não voltei a encontrá-lo entre meus livros, por mais que o tenha procurado. Cada capítulo era mais desafiador que o outro. Recordo de um especialmente interessante que, se bem me lembro, chamava-se “O pecado monárquico”. Nele, argumentava-se que a igreja católica, com a formação do estado do Vaticano, havia incorrido no mesmo pecado que Israel ao pedir a Samuel um rei. Impactante, não?
Um modelo com direção
Este é o tipo de autocrítica que devemos fazer, e o discernimento que devemos almejar: estar dispostos a nos desvencilhar de todas as nossas ideias preconcebidas para escutar somente Jesus.
Mas o que disse Jesus sobre a igreja? Bem pouco! E nem sequer sabemos se usou a palavra em um sentido técnico, referindo-se a um grupo formal, ou em seu sentido genérico de comunidade, coletivo ou povo. Ekklesia é a palavra que usaram os tradutores da Septuaginta para se referir à comunidade de Israel. Sabemos que Jesus falou de “minha ekklesia” e disse “eu” a “edificaré” (Mt 16.18). Assim, ao que parece, Jesus tinha um projeto concreto em mente. Contudo, apenas se referiu a ele em apenas duas ocasiões. Na passagem já aludida de Mateus 16 e no capítulo 18 do mesmo evangelho. Há algo em comum e distintivo da “igreja” nesses trechos?
Eu acrescentaria a essas duas passagens a Grande Comissão, posto que com essas últimas instruções Jesus se dirigia a todos aqueles com que ele compartilharia sua presença “até o fim do mundo” (ou “fim da era”). Ou seja, fala do grupo ou coletivo que se formaria a partir de sua partida. Assim, sem entrar em uma argumentação detalhada do porquê, podemos dizer que:
- Mateus 16.16-20 aponta para a igreja universal;
- Mateus 18.15-22, para a igreja local;
- Mateus 28.18-20, para a igreja transcultural.
Quais são aqueles distintivos supra culturais e atemporais que se podem discernir das menções de Jesus? Ou seja, podemos identificar em suas palavras alguns princípios universais, válidos para qualquer contexto e época? Para não nos perdermos em explicações pormenorizadas, poderíamos resumir os distintivos que afirma Jesus da seguinte maneira.
A primeira pergunta que me ocorre é: Quem tem a última palavra, a terra ou o céu? E ligada a essa, a pergunta de um milhão: O que é e como se exerce essa autoridade cósmica? Uns dirão que é pelo magistério apostólico e pelos sacramentos, outros dirão que se consegue por meio de uma estrutura clara de governo bíblico, outros que se exerce por meio da oração de guerra espiritual… Eu, tendo como base as experiências adquiridas no campo, e sem começar a valorizar nenhuma das anteriores a priori, diria: dando à comunidade um claro sentido de direção. E direção significa:
- saber aonde vamos – visão e metas;
- saber quem nos guia – liderança claramente definida;
- e saber onde estamos – endereço postal, i.e., encaixe na sociedade.
Em contextos “cristianizados” (ou pelo menos onde a fé cristã não é vista como forasteira), a necessidade de se ter uma visão e metas geralmente vem à mente. Em sociedades onde a fé é vista como intrusa, a questão de achar um lugar na sociedade, um arraigo, necessita de elucidação antes de qualquer outra questão. Poderíamos dizer que para definir um modelo de igreja fazem falta os sete pontos a seguir (ainda que possamos acrescentar mais ou mudar alguns). Mas o que quero destacar é que a ordem de prioridades no Ocidente e no Oriente Médio é inversa.
Para definir um modelo de igreja:
Ordem de prioridades no Ocidente:
- Posição teológica e metas
- Modelo de governo
- Finanças e prestação de contas
- Treinamento e ministérios
- Vínculos entre os membros
- Relação com outras igrejas
- Seu encaixe na sociedade
Ordem de prioridades no Oriente Médio:
- Seu encaixe na sociedade
- Relação com outras igrejas
- Vínculos entre os membros
- Treinamento e ministérios
- Finanças e prestação de contas
- Modelo de governo
- Posição teológica e metas
Pelo menos isso é o que observei entre nossos irmãos turcos na hora de estabelecer a igreja. Talvez deva esclarecer que tudo isso ocorre sob uma forte liderança (o que não devemos confundir com “modelo de governo”. Em outras palavras, quando entramos em um acordo entre três famílias estrangeiras para formar uma igreja no final dos anos 80, investimos muito tempo em definir nossa posição teológica e as metas, e assim sucessivamente… De outro lado, vi como a maioria dos líderes nativos na Turquia facilmente transitam de uma posição teológica a outra, no entanto, todos eles buscam seu próprio lugar na sociedade e entre as demais igrejas. Ou seja, querem poder se explicar com a cabeça bem erguida e sem ter nada de esconder ou do que se envergonhar.
Ainda sobre isso, se alguém dá uma olhada no website de uma igreja no Ocidente, além de suas atividades, as primeiras coisas que aparecem são a confissão de fé e a visão, depois o corpo pastoral (estrutura de governo) e o compromisso de transparência financeira. No Oriente Médio, não que esses temas não sejam importantes, mas no website, primeiro apresentamos a fé e expomos como nos encaixamos dentro da sociedade. Tenho ciência de que em outros contextos similares não se pode ter um rosto público como na Turquia, mas, trocando com irmãos de outros países do Mediterrâneo de igual contexto religioso, notei a mesma preocupação por parte deles, e alguns hoje já estão buscando a maneira de serem aceitos pelas autoridades.
Onde quero chegar com tudo isso? A questão é que uma clara direção – metas, liderança, encaixe na sociedade – proporciona ao novo seguidor de Jesus um entorno seguro e propício. Uma sensação de “estou no lugar correto, com as pessoas corretas, e vamos na direção correta”, o ingrediente básico para um entorno que fomente o crescimento na fé, ainda mais se sua “família” cultural o despreza e discrimina. Em suma, não se trata deste ou daquele modelo eclesial, mas de oferecer uma alternativa, um refúgio, um lar onde o crente possa se sentir resguardado e encaminhado. Como isso funciona na prática? Melhor explicar com um exemplo.
Ao formar nossa primeira igreja em Istambul, era muito difícil os novos crentes se comprometerem com as metas da pequena comunidade e delas se apropriarem para levar a comunidade diante. E mais, depois de um tempo, costumavam desaparecer, absorvidos pelo mundo ou vencidos por diversas debilidades. Entendo que nosso “projeto” não lhes oferecia uma perspectiva de futuro. Éramos três famílias estrangeiras nos reunindo em nossas casas e os visitantes se sentiam, de fato, como visitantes, mesmo aqueles que se convertiam! Buscando as causas, o Senhor foi nos guiando a tomar medidas muito concretas. Primeiro, por meio de Provérbios, destacou a necessidade de comunicarmos a visão ao povo de forma efetiva: “Onde não há revelação divina [visão], o povo se desvia…” (Pv 29.18, NVI). Nós já tínhamos a visão, mas como fazer as pessoas se engajarem posto? Explicá-la não bastava.
Então, por meio de Neemias, mostrou-nos como o povo ao regressar do exílio sentiu a necessidade não apenas de reedificar a cidade, mas também de reconstruir um novo sentido de identidade e arraigo nos caminhos do Senhor. Por que a comunidade de então havia perdido esses distintivos. No nosso caso, sequer os tínhamos. Então, seguindo o exemplo de Neemias, decidimos redigir estatutos simples explicando o que é a igreja e suas metas.
- Destacamos quais os distintivos de um crente em termos de vida devocional, familiar, eclesial e social.
- Mostramos a forma como os nacionais deviam se equipar até tomar as rédeas da comunidade.
- Fizemos com que assinassem o documento, por meio do qual reconheciam a autoridade da liderança da igreja em assuntos de fé, culto e disciplina, ou seja, aceitando as “regras do jogo”.
Entendemos que era melhor ter uma estrutura simples a não ter nenhuma, e evidentemente buscamos, até onde pudemos, que não fosse medíocre, mas bíblica e apropriada ao contexto. Dessa forma, os crentes começaram a se enraizar na comunidade!
É o que também nos diz o Senhor em Mateus, onde pontua que os “odres novos” (uma estrutura renovada) e o “vinho novo” (a vida do renascer espiritual) “se conservam mutuamente” (Mt 9.17). O “vinho” (o fruto espiritual) se derramava porque não tínhamos um “odre” adequado (alguns limites definidos) onde resguardá-lo.
Ou seja, rebobinando, podemos dizer que o desejo do Senhor para sua igreja, não importa o modelo, é uma comunidade cristocêntrica (i.e., que confessa a Cristo), cuja vocação é resgatar almas do Hades, fortalecer os laços de irmandade praticando o perdão e fazer discípulos em todas as nações. Para isso foi equipada com sua autoridade, que em seu nível mais básico se exerce provendo uma direção clara (metas, liderança, encaixe na sociedade), oferecendo como guias o amparo e o calor de uma família. A partir desse fundamento, pode-se matizar todos os seus outros aspectos: sua teologia e confissão de fé, sua estrutura e modelo organizacional, sua visão e metas, a adoração e atividades, grupos de comunhão e de coesão fraternal, ensino bíblico e equipamento para o ministério, os serviços que oferece à sociedade, seu exemplo de amor e reconciliação, seu chamado às nações… e qualquer outro aspecto que achemos conveniente (detalhes nos quais não vou entrar aqui). Não é essa uma das necessidades básicas para que as crianças desenvolvam uma identidade saldável? Um lar estável que lhes proporcione segurança e os prepare para o futuro?
Um modelo de honra
Para proporcionar esse ambiente de segurança, a igreja necessita ser um entorno estável. Para ser estável, necessita encontrar seu lugar na sociedade. E para encontrar seu lugar na sociedade do Médio Oriente, necessita ser honorável. Se no Ocidente impera a cultura da culpa e no hemisfério sul, a do medo, no Oriente a cultura da ofensa (prefiro chamar assim e não de cultura da “honra” para destacar, como nos dois casos anteriores, aquilo que se tenta corrigir ou superar) prevalece. Atentando a isso, em cada contexto os juízos de valor se determinam segundo:
- o que alivia da culpa ou não – Ocidente;
- o que libera do medo ou não – hemisfério sul;
- o que é bem visto ou não – Oriente.
A chave para um modelo de igreja no Oriente é que seja honorável, digna, respeitável, exemplar, louvável etc. Se para nós tudo isso faz referência à integridade e coerência internas, em um contexto oriental faz referência a isso e à aparência externa também. Nós começamos em Istambul nos reunindo nas casas, nos sentando sobre o tapete e tocando melodias orientais. Já mencionei que os visitantes se sentiam como visitantes. O primeiro elemento para solucionar isso foi dar a eles uma visão (direção-orientação) para que vislumbrassem um futuro no projeto. Mas, claro, uma atividade nas casas não tinha status para que pudessem se apresentar com a cabeça bem erguida frente à sociedade, tampouco impactá-la.
A segunda coisa, então, foi buscar um lugar mais “digno” que uma moradia para realizar nossa adoração: alugamos um escritório (direção-localização). Colocamos tapetes, mas os visitantes, ao idealizar que iam a uma “igreja”, esperavam encontrar bancos onde se sentar, ainda mais se estavam com a família e com senhoras com saias pelos joelhos (não íamos fazê-las sentar no chão). Colocamos cadeiras de plástico, mas continuavam perguntando: “Onde está a igreja? Viemos a um piquenique? Não há bancos, não há cruz, não há velas…”. Por fim, alugamos uns bancos, colocamos cadeiras metálicas acolchoadas de encher os olhos, um púlpito… Resistíamos em colocar uma cruz, só que, na medida em que o lugar de adoração ganhava certa dignidade a seus olhos, mais confortáveis se sentiam os presentes, e participavam com maior entusiasmo.
A terceira coisa foi guiá-los nos caminhos da fé, alimentá-los com a Palavra, estimular o crescimento espiritual, discipulá-los. E, com isso, fazer com que se sentissem seguros (direção-liderança), ou seja, que estavam indo na direção correta. Não seguros porque iríamos eliminar as pressões e/ou a perseguição do entorno, mas porque sentiram que “essas pessoas sabem o que fazem”. No entanto, no princípio pensamos que o melhor era perguntar a eles tudo. Como querem que isso ou aquilo seja feito? Atitude muito ocidental e democrática! Só que, no caso de opiniões díspares, o que havia proposto a opção descartada sentia-se ofendido. É como pedir às crianças, depois de voltar de viagem e trazer um presente para cada uma, que escolham o brinquedo que mais querem: a briga é certa. Além disso, ficava a sensação de não sabermos como fazer as coisas.
Isso é o que eu chamo de transição de uma igreja “em casas” para uma igreja “de honra”, ou, no mínimo, “respeitável”. Uma igreja-comunidade com três direções claras:
- Metas claras que animem a participação.
- Lugar digno claramente destinado à adoração.
- Liderança clara, que dê segurança e confiança.
Sem nos darmos conta, fomos migrando de um modelo que nós pensávamos ser o Oriental para um modelo que eles sentiam se encaixar com sua ideia de igreja. É isso contextualização? Talvez não de acordo com os parâmetros no Ocidente, mas, no fundo, sim. Porque se adaptar ao contexto consiste não tanto em como se vê algo, mas em como se percebe. Nossa primeira tentativa era percebida como uma má imitação da mesquita, e, por isso, como uma falsificação. Como se sentiriam confortáveis os visitantes com uma falsificação? E como iam convidar outros com confiança se havia dúvidas se estavam levando as pessoas a um lugar suspeito? Claro, à luz do chamado house church movement (movimento de igrejas nas casas), tudo isso gerou uma boa controvérsia sobre qual é o modelo adequado: se um modelo de igrejas nas casas ou um modelo de igrejas nos templos. Evidentemente, o que faz a igreja ser igreja não é o templo, tampouco a casa.
O assunto não é tanto substituir casas por templos, mas tornar a comunidade invisível visível. Não se trata deste ou daquele lugar específico, mas de como dar honorabilidade à comunidade de crentes. E não é possível dar honorabilidade sem dar visibilidade. Trata-se de conferir um carácter acessível e respeitável frente ao público e às autoridades, e isso se dá [também] por meio de lugares respeitáveis e acessíveis ao público. Em turco, há um ditado para falar de alguém em quem não se pode confiar: “Yeri yurdu belli değil” [“Sua localização não é clara”]. É alguém que não compartilha abertamente seu endereço. Assim são vistas as reuniões ocultas nas casas: como algo clandestino. O que a imprensa batizou com o nome de “igrejas-pirata”.
No ano 2010, pela ocasião do décimo aniversário de fundação de nossa igreja, participamos de uma entrevista com o ministro de assuntos religiosos da Turquia em companhia do diretor de assuntos religiosos do governo da Espanha. Falando da situação dos grupos minoritários, o ministro mencionou a necessidade de solucionar o problema das “igrejas-pirata” ocultas nas casas. O diretor espanhol mencionou uma situação parecida no contexto muçulmano com as “mesquitas-garagem” na Espanha –eles trabalhavam para que pudessem ter acesso a lugares mais dignos para suas rezas. Pequena diferença entre um enfoque e o outro!
O caso é que uma igreja nas casas não pode ter um rosto público frente à sociedade. Uma igreja pública, contudo, além de seu lugar aberto a todos, pode ter também seus grupos de comunhão mais estreita nas casas sem provocar a suspeita de que estão se escondendo. O dilema entre casas e lugar público assemelha-se a dois submarinos aproximando-se da costa, um com a bandeira do país e o outro sem bandeira. A qual dos dois a guarda costeira dará permissão? Mas levar a bandeira não impede o submarino de submergir (para ter mais intimidade). Assim, a comunidade que consegue uma clara identidade pública não fica privada de ter atividades de acolhimento e comunhão estreita nas casas.
Aproximando-nos das leis do país e do direito internacional, a igreja foi ganhando legitimidade. Claro, não sem um processo que envolveu lutas legais, fé e perseverança. Mas insistimos em dar “a César o que é de César” assim como devemos dar “a Deus o que é de Deus” (Mt 22.21). As igrejas nas casas são vistas como conspirando contra “César”. As experiências em países comunistas influenciaram de forma equivocada. Ali, as igrejas “oficiais” eram manipuladas pelo Estado. Mas trasladar esses medos à Ásia Menor provocou uma má contextualização. As autoridades precisamente vigiam os grupos que “se escondem”. As “igrejas em casas” são vistas como grupos clandestinos que atuam nas sombras, inclusive como células terroristas. Aqueles que expõem tudo à luz (quer dizer, se estabelecem de forma legal), por sua vez, lançam por terra a acusação de atividade oculta. O Estado exige que se alinhem às leis, evidentemente, mas não interfere, em absoluto, na gestão espiritual das igrejas.
Assim, o dilema não é entre igrejas-casa ou igrejas-templo, mas entre igrejas ocultas ou igrejas visíveis que não forçosamente necessitam de um “templo”. O espaço pode variar: escritórios, centros culturais, salas de conferências, cinemas, teatros e obviamente também edifícios de igreja. O importante é ter um endereço postal. Na hora de buscar um modelo de acordo com a cultura, quem deve decidir o que é “adequado”? Os autóctones ou os forasteiros? Ora, tanto crentes como não crentes na Turquia têm uma ideia já clara do que deve ser uma igreja “digna”: uma igreja que “não se esconde”. Vale lembrar que conviveram desde sempre com as igrejas orientais: ortodoxa, armênia, siríaca etc. De fato, o equivalente cultural da igreja é a mesquita, que, na realidade, surge como uma alternativa à sinagoga e à igreja. E o culturalmente aceitável é que os cristãos tenham igrejas que se vejam como o que dizem ser, ou seja, como igrejas; não comunidades que imitam a mesquita ou que se escondem nas casas.
Como queremos que se perceba a família de Deus, isto é, a igreja? Como uma seita, como um elemento espia e infiltrado, ou, ainda pior, como um perigo sabotador? Se a razão de ser da igreja é refletir Jesus e dar a conhecê-lo, necessitamos expressá-lo de forma que seja percebido/entendido corretamente. O modelo contextualizado de igreja é o da igreja oriental, dando maior “simplicidade” e “luminosidade”. Como comunicar que o evangelho é parte da cultura deles e não um intruso do Ocidente? Ora, partindo dos esquemas que eles já conhecem já faz 2 mil anos.
Segundo os comentários populares (e não nas leis em si), a propaganda cristã está proibida. Com isso se referem sobretudo àquelas atividades feitas por grupos que vêm de não se sabe onde e que atuam com o que eu chamo de “evangelismo de guerrilha”. Por exemplo: chegam a um lugar, deixam Novos Testamentos “esquecidos” por aqui e por ali e desaparecem. Resultado? Montes de Novos Testamentos nas lixeiras públicas. De outra forma, o cidadão a pé, às vezes só por curiosidade, vai em busca dos templos para visitá-los, e ali se distribuem tantos ou mais Novos Testamentos que no caso anterior, e nenhum acaba no lixo!
Também no raciocínio popular escutamos o ditado: “Toda pessoa é livre em sua forma de adorar” (adorar: em turco “ibadet”, em árabe “ibadah”). Mas “ibadet” (adoração) é entendida como rito, cerimônia”, liturgia, além de como algo que desperta sentimentos de respeito, devoção e consagração, sobretudo em sua expressão pública. Portanto, é importante dar à “adoração pública” esse halo de dignidade, o que não exige necessariamente um ritual antigo, mas certo grau de solenidade e, ao mesmo tempo, de espontaneidade e de relação de proximidade com Deus – ambientes que evoquem “honorabilidade”.
Vale ressaltar que o exposto aqui é uma reflexão para um contexto concreto, de características concretas. Não tento dizer que essa seja a fórmula para outros. Fazendo assim, estaria caindo no mesmo erro que em tantas ocasiões outros já caíram. Ou seja, propor esquemas que “funcionaram” em um determinado contexto para outras situações sem levar em conta as peculiaridades culturais. O exposto é o testemunho de um processo de discernimento em prol de encontrar alternativas que eliminem impedimentos ao conhecimento de Jesus e, assim, apresentá-lo dentro do possível nos termos mais aceitáveis segundo a percepção de uma dada sociedade. Isso para que a obra possa arraigar-se na cultura, não ser apenas como uma brisa de verão. É tentar deixar uma pegada não efêmera (como a que se deixa na areia), mas permanente (como na rocha). Isso requer tempo, paciência e perseverança, além de sabedoria e disposição para aprender com os naturais do lugar. Sigamos quebrando moldes.
O texto foi extraído do livro Recomponiendo La Missión Con Jesús – Reflexiones sobre la misión, sobre la tarea global y sus implicaciones para el mundo [Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo], publicado na Espanha por Impresiones em 2018. O Martureo recebeu autorização do autor para traduzi-lo e publicá-lo. Tradução: Lucas F. R. Juknevicius. Edição: Fernanda Schimenes.
Sobre o autor
Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona, e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.
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