Entrevista: experiência transcultural em contexto muçulmano na Jordânia

A Cru busca cristãos que desejam ser luz para as pessoas que vivem em lugares onde a esperança que há em Jesus é desconhecida

Fernanda Schimenes

Eliane e Murilo (os nomes foram alterados em função da situação sensível dos cristãos no Oriente Médio) trabalham na Cru (antiga Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo). Pais de duas meninas (8 e 6 anos), eles estão no Brasil após 7 anos na Jordânia, onde viveram de 2014 a 2021. Atuam com recrutamento, cuidado de obreiros e universitários. Na entrevista a seguir, eles falam de sua experiência em testemunhar do Senhor Jesus em um contexto muçulmano e desafiam cristãos a uma experiência transcultural para proclamar o evangelho.

Martureo – O que os levou à Jordânia?

Eliane – Nasci e cresci em um contexto cristão evangélico. Apesar de ter me batizado aos 9 anos, foi aos 17, ao evangelizar uma senhora em uma viagem missionária pelo Brasil, que de fato entendi o evangelho.

Murilo – Eu tive contato com o evangelho aos 18 anos por meio de uma família vizinha que me convidou para participar dos cultos em sua igreja e tomei uma decisão por Cristo.

Eliane – Quando estava na universidade, comecei a ficar bastante inquieta, orei e li muito a Bíblia nesse período. Em um congresso cristão em 2004, no Rio, senti a direção de Deus para que eu fosse para o Oriente Médio. No final desse mesmo ano, conheci o Murilo.

Murilo – A decisão de ir para a Jordânia tem muito a ver com minha relação e atuação na Cru. Antes disso, por conta dos atentados de 2001, comecei a me interessar bastante pelo mundo muçulmano. Assisti a um filme que, em português, chama-se WTC – Por Trás do 11 de Setembro. Fala da trajetória de um rapaz que estava na universidade, um muçulmano não praticante na ocasião, e de como ele acabou em um campo de treinamento afegão e se preparou para sequestrar um dos aviões envolvidos na tragédia. Fiquei muito quebrantado com a história. Como eu, ele era um estudante, e dedicou sua vida ao que acreditava. Eu, então, como cristão, o que teria de fazer? Outra experiência que me impactou e me fez decidir querer servir em um contexto muçulmano foi participar de uma viagem missionária de curto prazo para o Norte da África com a Cru.

Eliane – Quando nos casamos, em 2007, tínhamos esse plano comum. Murilo se tornou obreiro da Cru em 2007 e eu, em 2008. Nós nos mudamos para São Paulo, onde cursamos o Seminário Teológico Servo de Cristo. Eu fiz os cursos que oferecem em parceria com o Martureo [Postgraduate em Missões e em Postgraduate em Estudos do Oriente] e o Murilo, o M.Div em Estudos Bíblicos e Pastorais. Concomitantemente, atuávamos junto aos estudantes da USP. Em 2014, quando nossa primeira filha tinha 5 meses, fomos para a Jordânia enviados pela Cru com o apoio da Igreja Batista Memorial de São Paulo.

Martureo – Como atuavam na Jordânia?

Eliane – Nosso foco prioritário eram os universitários. Murilo estudava na Universidade da Jordânia, em Amã, e eu estava sempre com ele no campus. Os jordanianos são muitos abertos aos estrangeiros, e, quando tínhamos oportunidade de compartilhar nossa fé com quem tínhamos relacionamento, assim fazíamos. Não dentro da universidade, mas em cafés ou em outros ambientes. Promovíamos um clube de espanhol, e, por meio dele, conhecemos muitas pessoas. Também fazíamos evangelismo “ao acaso” valendo-nos de uma pesquisa por meio da qual discerníamos quem estava interessado em saber mais sobre Jesus. O fluxo da conversa podia ou não culminar em uma oportunidade para falar do evangelho.

Martureo – A Jordânia é um país fechado para o evangelho?

Eliane – Há uma igreja cristã estabelecida e que se reúne livremente. Contudo, não é permitido pregar o evangelho abertamente, especialmente aos muçulmanos. Quando um muçulmano se torna um seguidor de Jesus na Jordânia, muitas vezes ele permanece vivendo sua fé de forma secreta ou discreta; as mulheres, muitas vezes, seguem usando o véu. Outros, por sua vez, declaram a fé em Cristo apesar de isso acarretar represálias em diferentes níveis por parte da comunidade muçulmana à qual pertencem. Sei que se trata de um assunto não consensual. Na minha opinião, deve-se analisar caso a caso. Se a pessoa tem uma independência, inclusive financeira, encorajaria a se expor. Quando se trata de uma mulher que depende do marido, não é tão simples, muitas permanecem com a identidade muçulmana.

Martureo – Há necessidade de mais testemunho cristão entre os jordanianos?

Eliane – Sem dúvida alguma! Não de obreiros para apoiar a igreja cristã local estabelecida, até porque ela não tem, infelizmente, a visão de alcançar o entorno. Também não falo de obreiros para atuar com ações sociais. Há um bom número de cristãos trabalhando com pessoas em situação de vulnerabilidade na Jordânia, principalmente entre os refugiados sírios, sudaneses etc. Nós mesmos colaborávamos eventualmente com um obreiro da PMI em seu trabalho com a igreja de sudaneses e íamos à cidade de Mafraq onde moram muitos refugiados em situação precária (predominantemente de sírios). Mas, junto à população jordaniana propriamente dita, o testemunho cristão é praticamente inexistente. Há falta de cristãos que vivam entre os jordanianos, que desenvolvam relacionamentos genuínos e possam, assim, compartilhar a fé. A abertura vem por meio dos relacionamentos. Há uma região no centro do país formada por diversos vilarejos na qual não soubemos da presença de qualquer testemunho cristão.

Martureo – O jordaniano comum tem algum conhecimento do evangelho?

Eliane – Há uma igreja cristã local estabelecida, então alguns têm certa noção. No entanto, a maior parte nem sabe o que é a comemoração da Páscoa. Usávamos muito as datas festivas, Natal e Páscoa, para falar de Deus abertamente. É comum ouvirmos deles: “Vocês têm quatro Bíblias”, que seriam os quatro evangelhos. De forma geral, pensam que a Bíblia foi corrompida, e que Maomé foi quem chegou e apresentou a verdade. Um dos colegas com quem pude compartilhar o evangelho conheci em um grupo de corrida – interessante que eles correm mesmo jejuando durante o Ramadã. Quando terminamos a conversa, questionei se ele já tinha ouvido algo a respeito do que eu havia falado. “Não, nunca”, ele respondeu. E veja só, ele é um enfermeiro, tem celular, acessa a Internet… Alguns amigos mais humildes que fizemos que moravam no centro de Amã queixaram-se que os cristãos estrangeiros só focavam os refugiados. “Ninguém quer saber da gente”, eles disseram. Tem uma estatística que afirma que uma pessoa precisa ouvir sete vezes o evangelho até tomar uma decisão. Fico pensando no tamanho da tarefa a ser cumprida lá na Jordânia.

Martureo – O que vocês têm a dizer a quem está se preparando para atuar em um contexto muçulmano?

Eliane – Cada país muçulmano é um país, não dá para colocar tudo em um bloco. Eu mesma tinha ideias gerais tais como “não se pode falar com homens em países árabes” que não valiam para o contexto específico da parte da Jordânia em que vivíamos, ou seja, mesmo dentro da Jordânia há várias jordânias. É preciso saber da realidade específica e tomar cuidado com as generalizações em relação ao “mundo muçulmano” ou “mundo árabe”. Diria que há menos necessidade de um conhecimento prévio profundo da teologia muçulmana do que se preconiza, até porque foi precioso aprender muitos conteúdos do islã pelas palavras dos próprios jordanianos e na língua árabe. Falando em língua, é imprescindível dominar o inglês em qualquer campo transcultural, serve como língua ponte em muitas situações: no contato com outros missionários, no início do aprendizado da língua e da cultura locais etc. Também é necessário ter um plano claro, e muita dedicação, para o aprendizado da língua local o mais rápido possível. Só assim é possível, de fato, entrar e viver na cultura, desenvolver relacionamentos significativos. Compartilhar o evangelho sem ser na língua do coração não é efetivo. Diria ainda para se ter cuidado com as informações que há sobre o campo, até mesmo as divulgadas por algumas agências missionárias. Confesso que me senti enganada por dados que não correspondiam à realidade, eram distorcidos. Por exemplo, há postagens dizendo: “Centenas de árabes são batizados na Jordânia em um dia”, mas ocultam que se trata de refugiados iraquianos oriundos de um contexto cristão. A maior parte deles veio da cidade de Mossul [antiga Nínive bíblica], tomada pelo Estado Islâmico em 2014. Como muitos pensam que todo árabe é muçulmano, a informação confunde. Também recebemos orientações de missionários brasileiros que eram específicas para um trabalho com refugiados, não serviam para o lugar em que atuaríamos. Por fim, prepare a mente para viver em uma outra cultura. O livro Global Himility: Attitudes to Mission, de Andy McCullough, traz ensinamentos valiosíssimos nesse sentido.

Martureo – Por que retornaram para o Brasil?

Murilo – Nosso plano era, em princípio, de pelo menos 10 anos na Jordânia. A pandemia do coronavírus alterou o cenário. Além de a questão do sustento ter ficado comprometida pela alta do dólar, no início de 2021 soubemos que, também naquele ano, as aulas presenciais na Universidade da Jordânia estariam suspensas. Após uma conversa com um missionário jordaniano local, entendemos que era tempo de voltar. Temos a intenção de retornar para o campo e atuar novamente em um contexto muçulmano, mas ainda não há uma direção específica.

Martureo – No momento vocês atuam com recrutamento de obreiros para a Cru. Quais seriam as campos com maior necessidade?

Murilo –  Onde há lacunas missionais dentro e fora do Brasil: indígenas, países islâmicos, budistas e hinduístas. Não há países em que não haja missionários, mas há lugares em que o testemunho cristão ainda é fraco ou inexistente. Geograficamente falando, desde o norte da África até o Oriente Médio, passando pela Ásia Central. Afeganistão, Turquia, Quirguistão seriam alguns dos países. Há possibilidade de atuar com suporte a igrejas, esportes, famílias, desenvolvimento social…

Martureo – Há pré-requisitos para ser um obreiro da Cru?

Murilo – Penso que existe muita romantização em relação ao chamado missionário. Buscamos cristãos que desejam viver uma experiência transcultural e ser luz para as pessoas que vivem em lugares onde a esperança que há em Jesus é desconhecida. A Cru exige um treinamento de pelo menos dois anos que inclui orientação sobre como obter sustento, pois é responsabilidade do missionário ou da família missionária levantar os recursos financeiros que necessitam para se estabelecer no campo. Nesse sentido, a Cru é bem criteriosa, não envia quem não tem o respaldo necessário. A Cru também estabelece um acordo com a igreja enviadora quanto ao cuidado, ao pastoreio da pessoa no campo, o tempo que devem permanecer e assim por diante.

Martureo – Como algum interessado entra em contato com a Cru?

Murilo – (11) 94055-3654 ou rh@cru.org.br.

 

Quer saber mais sobre a Jordânia?
Jordânia, campo missionário

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