Desmistificando o chamado missionário

Que lugar ocupa ou deveria ocupar o “chamado às nações” na experiência da igreja?

Carlos Madrigal Mir

Desde o momento em que “o Senhor Deus chamou o homem e perguntou: ‘Onde você está?’” (Gn 3.9), a aventura do regresso da humanidade ao lar do Pai celestial se reinicia e se perpetua sempre com um chamamento, ou seja, com o pedido: “Reconciliem-se com Deus!” (2Co 5.20). Mas Deus, uma vez expulsos nossos primeiros pais do jardim do Éden, faz esse chamado não mais diretamente, mas pela “loucura de nossa pregação” (1Co 1.21), ou seja, por meio de seus servos e servas que chama para tal tarefa.

Nesse sentido, todo crente recebeu o mesmo chamado para aceitar, viver e pregar as boas-novas. É o que Paulo expressa como: “Suplico-lhes que vivam de modo digno do chamado que receberam” (Ef 4.1). Mas, quando falamos do chamado à tarefa global, quase automaticamente evocamos esses grandes servos da época dourada das missões protestantes, como William Carey ou Hudson Taylor, os quais nos parecem semelhantes aos profetas das Sagradas Escrituras e certamente superiores a nós. E nos sentimos distantes de sua experiência.

Qual é a realidade do chamado para o dia de hoje e nosso contexto?

Em uma época em que no Norte global a falta de vocações gera um clamor cada vez maior dos que evocam com saudades épocas gloriosas do passado, que lugar ocupa ou deveria ocupar o “chamado às nações” na experiência da igreja? É comum escutar a ladainha: “Nosso país ainda é campo de missões…”. E é verdade, afinal, “o campo é o mundo” (Mt 13.38). Enquanto continue existindo uma porção do mundo ainda por alcançar, esse lugar é e será campo de labor. Mas é tão campo o país que menos crentes têm quanto aquele que mais obreiros envia. Dito de outra forma, o chamado às nações é tão válido para um quanto para outro. Acaso quando, depois da ressurreição, o Senhor disse aos discípulos “…e serão minhas testemunhas em toda parte: em Jerusalém, em toda a Judeia, em Samaria e nos lugares mais distantes da terra” (At 1.8), Jerusalém ou Judeia haviam sido já alcançadas? Acaso, para que os primeiros crentes saíssem a novas terras, não teve o Espírito de constranger, aproveitando a perseguição, mesmo quando a Judeia não havia sido ainda evangelizada?[1] Assim, dessa mesma forma, qualquer que seja nossa “Judeia” e por mais urgente que seja a situação de necessidade dela, toda igreja deve estar implicada hoje e agora com os confins da terra. Do contrário, está descuidando de seu chamado mais genuíno: a grande comissão!

Não estou falando – nem havia pensado – que toda igreja tem de trabalhar freneticamente e que, sem ter ainda afiançadas suas próprias amarras, se jogue temerariamente às ondas encrespadas de uma aventura transcultural sem ter sentado e calculado o custo. Isso seria contrário ao que o Senhor nos aconselha na parábola da torre e da batalha. Mas, no relato de nosso Senhor, a moral não é sentar-se e desistir, ou fugir frente a batalha; mas, sim, afrontá-la com dignidade, conscientes de nossos recursos e limitações. Até no caso de “inferioridade”, o Senhor diz que o rei “enviará…” (Lc 14.28-32). E a moral final não é “não se arriscar se não temos recursos suficientes”, más é: “… ninguém pode se tornar meu discípulo sem abrir mão de tudo que possui (Lc 14.33). Os recursos estão aí desde o momento em que renunciamos a tudo o que possuímos como patrimônio próprio, reconhecendo como sendo patrimônio do Senhor. Uma vez assentados tais princípios…

O que é o chamado?

Idealizou-se ou mitificou-se muito o tema devido, às vezes, à nossa literatura grandiloquente e ao fato de converter a experiência dos citados grandes heróis em sagrada tradição evangélica. Uns acreditam que, obrigatoriamente, deve consistir em algo assim como uma revelação celestial, tipo a que teve Paulo. Outros, hoje em dia, reduzem-na a uma espécie de estudo de mercado – buscam os lugares mais necessitados ou aqueles em que há maior possibilidades de “sucesso”. Outros simplesmente nem consideram. Nem um nem outro! Deus já chamou a todos nós com uma clara revelação na grande comissão[2] e, ao mesmo tempo, usa as circunstâncias para despertar em todos nós sua misericórdia para com os perdidos. A todos! Porque a empresa é de todos. Como William Carey, que, na recém-formada Baptist Missionary Society [Sociedade Missionária Batista], em sua célebre resposta ao desafio “A Índia é uma mina, tão profunda como o centro da terra. Quem se aventurará…?”, disse de forma magistral: “Eu estou disposto a baixar se vocês sustentarem a corda”.

Mesmo nos chamados mais dramáticos da Escritura, como são os de Isaías ou de Ezequiel, Deus se expressa de acordo com as circunstâncias. A um Isaías que está entre um povo que caiu na superficialidade, aparece em um trono majestoso que enche o templo, custodiado pelos guardiães de sua pureza, os serafins. A um Ezequiel, que perdeu suas raízes (já não havia templo nem Jerusalém a que apelar para proclamar ao povo), se apresenta em seu trono móvel, capaz de se deslocar de onde uma vez se fixou o templo até o exílio às margens do rio Quebar, no atual Iraque. Aos doze, leva de campanha evangelística por povos e aldeias, e “quando [Jesus] viu as multidões, teve compaixão delas” (Mt 9.36). Ele, que era misericordioso a ponto de deixar seu trono celestial para vir nos salvar, ao entrar em contato direto com a necessidade, se comoveu ainda mais. Mais do que isso, foi ocasião para que fizesse um chamado aos que o acompanhavam (Mt 9.37)! Ou seja, à medida que os discípulos entraram em contato com as necessidades – extrapolando a nossos dias: à medida que faziam viagens exploratórias, iam a conferências, conseguiam informações sobre os países mais necessitados na internet, perguntavam às agências quais são as estratégias melhores etc. –, tiveram condições de captar o chamado do Senhor. “Orem ao Senhor da colheita; peçam que ele envie mais trabalhadores para seus campos” (Mt 9.38). Após orarem dessa forma, um versículo depois, “Jesus reuniu seus doze discípulos…” e “enviou os Doze com as seguintes instruções…”. (Mt 10.1, 5). Podemos dizer, a partir do texto, que nossos ouvidos estarão em condições de ouvir seu chamado à medida que:

  • (1) nos envolvemos com a grande comissão;
  • (2) entramos em contato com as necessidades;
  • (3) oramos (como consequência);
  • (4) recebemos de Jesus a instrução necessária.

O que nos deixou sensíveis ao chamado?

No nosso caso – meu e de minha esposa –, a igreja orava por outros países, a igreja evangelizava de forma sistemática, a igreja ensinava sobre os confins da terra, a igreja organizava campanhas de verão em outros lugares, a igreja ofertava pelas nações… E nós com ela! Orávamos dizendo: “Senhor, que quer que façamos?”. Evangelizávamos, íamos a campanhas, ofertávamos, líamos sobre países necessitados, devorávamos biografias… Por fim, em uma visita de um dos barcos da OM em 1982, com a informação que deram sobre as necessidades dos cristãos na Turquia e o convite geral para escutar o chamado, ambos sentimos em nossos corações, individual e separadamente: “Você tem de ir”.

O caso é que Deus está chamando, mas nós podemos não estar escutando – como as ondas de rádio, que estão presentes em todo lugar, mas não as captamos porque precisamos do receptor necessário.

O chamado pode ser tanto direto quanto indireto: Paulo e Timóteo

Deus usa uma série de circunstâncias e pessoas para despertar em nós inquietudes e, segundo a vocação que deu a cada um, sensibiliza assim nosso coração para escutar sua voz. Mais do que isso, em alguns casos pode e deve ser suficiente sua forma indireta de nos chamar. Paulo recebeu um chamado direto, claro e dramático. Mas até onde sabemos, atentando aos indícios que nos dão as Escrituras, Timóteo respondeu afirmativamente ao que o Senhor mostrou por meio de outros. De um lado, Paulo propõe recrutá-lo (At 16.1-3); de outro, os anciões de sua igreja ratificam esse convite em declaração profética (1Tm 4.14). A iniciativa não partiu de uma revelação que Timóteo tivesse recebido, mas de que “Paulo pediu que ele os acompanhasse em sua viagem” (At 16.3). No entanto, tudo isso ocorre em um ambiente onde a grande comissão não é entendida como algo extraordinário ou extravagante, mas como o DNA da fé.

Também não se trata de tais irmãos terem sido um pouco crédulos ou até ingênuos – eles, na verdade, não colocavam limites ao que o Senhor queria e podia fazer com suas vidas, e estavam dispostos a obedecer.

O preparo de Paulo rumo ao campo

No tão dramático chamado e processo de envio de Paulo, vemos claramente como se deram passos bem sensatos e consequentes. Sempre foram passos para frente e nunca titubeantes. Paulo teve de passar por um processo de primeiro amor (ou primeiro ardor). Foram cerca de onze anos de meditações, serviço e maturação, seguidos de um ano de prática intensiva das coisas aprendidas e aquisição de experiência em Antioquia. Após essas etapas, seus colaboradores na responsabilidade da igreja – os mestres e profetas de Antioquia, com os quais certamente Paulo havia compartilhado seu chamado e inquietudes –, do mesmo modo que procederam em reação a Barnabé, discernem: ouvem na atmosfera espiritual e em seus corações a mesma voz do Espírito, confirmando o chamado (At 13.1-3). Paulo, então, é enviado. Ou seja, um processo claro de:

  • sensibilização;
  • preparação;
  • confirmação;

Nesse processo, a chave é que “todos estão ministrando ao Senhor”, ou seja, serviam-no nos termos que ele instrui, não colocando travas, alegando falta de recursos ou de vocações. Criam que Deus dirigia suas vidas, assumiam em sua pobreza que possuíam todo o necessário, e cultivavam um ambiente de serviço sem duvidar. Ao mesmo tempo, faziam as coisas bem e com responsabilidade.

É hora de chegar aos confins da terra

Em um mundo cada vez mais globalizado, menor e com menos fronteiras técnicas, hoje, mais do que nunca, é possível levar adiante a grande comissão. Estamos equipados e capacitados para chegar aos confins da terra. Podemos começar investindo nossas férias em visitar os lugares mais necessitados a partir do ponto de vista do evangelho; para abrir os olhos, orar, ajudar no que apareça, cultivar um espírito pelas nações. A pergunta é: o Senhor achará fé em nosso coração quando vier nos chamar? A fé é pelo ouvir, e o ouvir da Palavra (Rm 10.17). Mais do que nunca, temos de falar sobre as necessidades do mundo, ensinar sobre o tema, escrever sobre isso; desafiar o povo, orar pelas necessidades, convidar nossos jovens (ou não tão jovens) a desenvolver nosso melhor potencial, a não perder o trem do Espírito Santo, mas deixar que “o vento” sopre sobre nós na direção que ele quer. Por isso, o chamado é um chamado corporativo. Ou seja, envolve todo o corpo. Não se podem despertar vocações se não as cultivamos. Não se pode ir se não há quem envie. Não se pode enviar se as nações não estão em nossos orçamentos familiares e no da igreja, em nosso calendário, em nossos programas de treinamento, e se não são um projeto da igreja local.

Mas, além disso, o chamado é corporativo porque é tarefa não apenas desta ou daquela igreja. Porque as igrejas são membros de um corpo maior de igrejas, devem unir esforços para não enfatizar apenas orelhas, narizes ou bocas, acrescentando assim o que cada um melhor tem e sabe fazer para que o Senhor e o Espírito digam: “Separem Barnabé e Saulo para realizarem o trabalho para o qual os chamei” (At 13.2). E, claro, para que cada vez muitos outros digam: “Aqui estou; envia-me” (At 6.8).

 

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Esse texto foi publicado pela primeira vez em outubro de 2007 na revista Edificación Cristiana com o título “El llamamiento”. Posteriormente, foi publicado no livro Recomponiendo La Missión Con Jesús – Reflexiones sobre la misión, sobre la tarea global y sus implicaciones para el mundo [Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo], publicado na Espanha por Impresiones em 2018. O Martureo recebeu autorização do autor para traduzi-lo e publicá-lo. Tradução: Lucas F. R. Juknevicius. Edição: Fernanda Schimenes.

 

Sobre o autor
Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.

 

[1] Alguém já disse que, se não cumprimos At 1.8, acabamos em At 8.1.

[2] Alguém já disse que não faz falta um chamado para “ir”, dado que o Senhor, em Mateus 28, nos deu esse mandamento a todos. Faria falta um chamado para ficar; que o Senhor dissesse a alguém de forma específica: “Você está isento de participar na grande comissão”.

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