Como se difunde e se mede a glória de Deus?

Uma missiologia de renúncia e de proclamação (até aos que rejeitam o evangelho), não de dólares/almas salvas

Carlos Madrigal Mir

O profeta Habacuque anunciou que “assim como as águas enchem o mar, a terra se encherá no conhecimento da glória do Senhor” (Hc 2.14, Is 11.9). Essa profecia descreve o efeito mais amplo que a obra restauradora de Deus terá sobre a humanidade. Diante da envergadura de tal perspectiva, a petição de Moisés – “Peço que me mostres tua presença gloriosa” (Ex 33.18) – deveria ser a nossa, bem como o lema de todos os esforços para cumprir a tarefa recomendada. Mas como se difunde e como se mede a glória de Deus?

O evangelho em nossos dias está se estendendo como nunca antes. As estatísticas mostram que:

  • Atualmente, os evangélicos, por exemplo, estão presentes em quase 60% da superfície habitada do globo. Há apenas dois séculos, ocupavam 16%.
  • A “cristandade” em geral (crentes comprometidos e nominais juntos) constitui 32% da população da terra. Contudo, nos dias de hoje, 58% dos habitantes do planeta não ouviram nada ou quase nada sobre a mensagem do evangelho.
  • Apenas 10% da população mundial confessa ser seguidor ativo de Jesus.[1] Dentre esses, apenas 1% dos esforços e recursos gerais é destinado a alcançar os inalcançados[2].

Diante desses dados, a promessa dada por meio do profeta soa assustadoramente distante. Pelo menos no presente.

Medindo a propagação de sua glória

Que significa um mundo cheio do conhecimento da glória do Senhor, e quando e como ocorrerá isso? As respostas podem variar: há os que relegam o fato aos dias do reino milenar e os que sentem em si mesmos o peso urgente de completar a tarefa. Assim, no umbral da mudança do milênio, houve um recrudescimento na expectativa por alcançar a meta, o que pôde ser observado em iniciativas como o AD2000 & Beyond Movement, cujo objetivo era “uma igreja para cada povo e o evangelho para cada pessoa até o ano 2000”.

Qualquer desafio lançado ao povo de Deus para acabar a tarefa é merecedor de todo o respeito e gratidão. E todo esforço para alcançar o mundo assumindo os desafios consequentes é bom e necessário. Mas colocar data limite na tarefa porque assim nós determinamos não beira a negligência? Estabelecer de antemão as cifras a serem alcançadas não nos leva a reduzir a glória de Deus a macro dados? E talvez a deixar escapar o que mais o glorifica? Se os projetos não são “grandes”, não pegam. Ilustrando com uma analogia: não estaríamos perdendo de vista a moeda da viúva porque, em termos absolutos, é uma soma insignificante, quando na verdade ela estava glorificando a Deus mais que todos, dando tudo o que tinha? (Mt 12.41-44) Creio que Deus é glorificado com aquilo que renunciamos mais do que com conquistas que obtemos. Mais do que isso, o progresso espiritual não se mede pelo que obtemos ou recebemos, mas por aquilo que estamos dispostos a sacrificar e por aquilo de que nos desprendemos com alegria e generosidade de espírito. “Há bênção maior em dar que em receber.” (At 20.35) Por aquilo que glorifica ao Senhor, apesar do preço…! É isso que deveria pegar!

O que realmente deve nos preocupar e inquietar é saber de forma explícita o que significa um mundo cheio de sua glória. Dessa forma, nossas preocupações e inquietações coincidiriam com o objetivo final do Senhor para a tarefa global. Para não errar o alvo nem desperdiçar esforços, desferindo golpes no ar (1Co 9.26). É sobre isso que vamos refletir em seguida e buscar pistas na Palavra.

Estamos medindo em nossas contagens o que realmente conta? Como se mede a extensão do “conhecimento da glória do Senhor”? Por almas ganhas? Por vidas transformadas, pela igreja estabelecida, por eventos realizados, por multidões impactadas, pela ressonância nos meios, pela mudança no índice de criminalidade, pelos avanços nos direitos e liberdades, por um novo equilíbrio na divisão das riquezas, pela erradicação da fome e da pobreza, pela recuperação do ecossistema…? Evidentemente, tudo isso deve contar e conta. Mas, se permanecemos apenas com esses dados, não corremos o risco de mutilar a ênfase do evangelho? Não se deveria medir também a projeção da glória do Senhor pela perseverança daqueles que, frente à escassez de resultados, permanecem fiéis a seu chamado em seu lugar de serviço (os Jeremias), por aqueles que continuam adorando apesar de experimentarem reveses difíceis de assimilar (os Habacuques), por aqueles que estão dispostos a perder tudo antes de negar o nome de Cristo (os Sadraques, Mesaques e Abednegos), por aqueles que sofrem os flagelos da justiça injusta por causa do testemunho (os João Batistas e João Apóstolos), e pelo número de crentes que continuam sendo martirizados no mundo (os Estevãos e os Tiagos)?

  • Quando clamavam “Hosana ao filho de Davi!” na entrada triunfal na cidade, Jerusalém resplandecia com sua glória. Mas quando gritavam “Crucificai-o!”, toda Jerusalém era testemunha da glória do Senhor.
  • Quando no Cairo encontramos uma igreja evangélica de 7 mil membros que se reúne no centro da cidade por um milagre do Senhor, desse mesmo centro da cidade se irradia o conhecimento de sua glória. Mas quando a igreja sofre um atentado a bomba no Egito e os cristãos falam em não abrir mão de seu direito de continuar adorando, em todo o país, inclusive no mundo inteiro, resplandece sua glória.
  • Quando o prefeito de um distrito de Istambul permite que haja uma celebração de Natal em uma importante praça com 3 mil espectadores, sua glória é proclamada. Mas quando nossos irmãos turcos aparecem nos meios de comunicação de seu país e, apesar das difamações e impropérios que recebem, não perdem a compostura, as telas dos lares se enchem da glória do Senhor.
  • Quando no país com a taxa de crentes mais baixa do mundo o parlamento envia um rascunho da nova constituição a uma pequena igreja que ganhou um status oficial pedindo possíveis sugestões da comunidade cristã, outro raio de sua glória encontra uma fenda por onde entrar.
  • Quando em um país com 99% de muçulmanos cristãos são convidados a debater junto a clérigos muçulmanos, judeus e ateus sobre a vida além da morte em um programa de audiência nacional, o conhecimento de sua glória encontra mais resquícios por onde se infiltrar.
  • Quando oferecem dinheiro depois de pedirem oração por alguma prisão espiritual e não se aceitar porque “Deem de graça, pois também de graça vocês receberam” (Mt 10.8), sua glória brilha como um dom caído do céu.
  • Quando as viúvas de crentes assassinados por causa da fé dizem nos meios de comunicação que perdoam os assassinos de seus maridos…

Em um relatório a uma organização que me pedia o número de convertidos, de batizados, de discipulados, de líderes treinados em um ano, ofereci outros números: conspiraram contra dois de nossos pastores, recebemos x ameaças em cada mês e x ligações anônimas comprometedoras; em um par de artigos da imprensa nos caluniaram, tivemos de desmascarar um par de informantes infiltrados, nos enviaram mensagens difamatórias acusando um pastor de organizar orgias; temos várias equipes de polícia em todas as nossas igrejas vigiando a cada domingo para prevenir ataques… Se querem números, esses também são números![3]

Quais são as cifras que interessam ao Senhor e o que realmente o glorifica? Ele está tão ou mais interessado em ver do que somos capazes de nos desprender, o que estamos dispostos a sacrificar, quanto pensamos em perseverar… e cada vez menos isso é valorizado e promovido. Tão gloriosa é a vitória de quem abre uma via de escape pelo Mar Vermelho e salva vários homens e mulheres quanto do que clama “suplico que lhes perdoes o pecado; do contrário, apaga meu nome do registro que escreveste!”(Ex 32.32), oferecendo, assim, sua vida em lugar de vários homens e mulheres. Tão heroico foi o esforço da fé daqueles que “escaparam de morrer pela espada” (Hb 11.32-35b) quanto daqueles que foram “mortos à espada” (Hb 11.35b-38). Parece que hoje apenas contam os que “conquistaram reinos” (Hb 11.33) e não mais os “acorrentados em prisões” (Hb 11.36). O mundo foi, é e deverá ser impactado igualmente por aqueles que “fecharam bocas de leões” (Hb 11.33) assim como por aqueles que foram “moídos pelos dentes das feras e convertidos em pão puro de Cristo” (Ignácio Mártir, Carta aos Romanos 4:01), dos quais “este mundo não era digno” (Hb 11.38).

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Deveríamos nos fazer mais algumas perguntas. Por exemplo: o conhecimento da glória de Deus em todo o mundo implica o reconhecimento de tal glória por parte de todos? Entendo que isso ganhará proeminência em seu retorno à terra. No entanto, podemos trabalhar no sentido de que haja um conhecimento mundial de Jesus, daquele Jesus do evangelho, mesmo que nem todo mundo comungue com esse Jesus. A meta marcada por Habacuque nos permite pensar em um cenário assim? Talvez seja essa uma abordagem mais realista e mais bíblica e, portanto, mais saudável. Nada na Bíblia indica que todo mundo se converterá. Na busca de cifras e resultados de ressonância mundial, tão contraproducente pode ser se embriagar com os vinhos do triunfalismo quanto se amargar com o fel do derrotismo, ou, ainda pior, se dissipar nas névoas do conformismo. Portanto, devemos ser realistas, e avaliar se “a torre” que queremos construir é viável. Mais ainda, se a construímos no nome do Senhor, pois: “Quem começa a construir uma torre sem antes calcular o custo e ver se possui dinheiro suficiente para terminá-la? Pois, se completar apenas os alicerces e ficar sem dinheiro, todos rirão dele (…)” (Lc 14.28-30). Isso glorificará ao Senhor?

Quando nos apropriamos da promessa de Habacuque como o expoente da obra de Deus sobre a humanidade, isso implica que todo mundo se entregará à sua autoridade? Poderíamos dizer que o conhecimento da glória a que Deus se refere por meio do profeta inclui tanto os que aderem quanto os que a rejeitam. Nesse caso, a glória é dada tanto pelo que crê quanto pelo que renega a Deus. Parece que algo assim foi o que descobriu Paulo em Trôade (2Co 2.14-16). Isso nos daria uma perspectiva diferente na hora de abordar a tarefa. Trata-se tanto de ver uma resposta positiva ao chamado do evangelho quanto de proclamar seu nome, ainda que caia em ouvidos surdos. Não apenas conta a reação favorável, mas também igualmente a desfavorável. Seu nome deve ressoar em todas as partes, gostem ou não, e assim sua glória há de impregnar o mundo.

Com isso, a tarefa não é diminuída, nem a necessidade de grandes projetos, reduzida. Pelo contrário! Tal tarefa incorpora a totalidade da humanidade! Porque a rejeição beligerante de Jesus em si é mais uma manifestação de sua glória. É prova de que ele continua sendo essa “pedra de tropeço, rocha que os faz cair” (Is 8.14). Se hoje em dia falar de Jesus continua incomodando em tantos lugares do mundo enquanto falar de Buda, Zoroastro, da Nova Era ou de bruxaria já não incomoda quase ninguém, é porque ele não deixa ninguém indiferente. E não deixa indiferente porque sua glória é exigente. Exige a adesão ou a rejeição, o compromisso ou a oposição, o aclamá-lo ou o crucificá-lo…

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Neste ponto, deveríamos considerar o que pôde significar para o próprio Habacuque sua profecia. Acima de tudo, significava a restauração de Israel depois da devastação babilônica. E, com isso, que o mundo inteiro saberia que Deus havia salvado seu povo. A partir de Isaías 11.9 (leia também os versículos 1 a 8), estão descritas as glórias do reino messiânico. Habacuque diz que os ecos da grande salvação realizada pelo Senhor retumbariam em todas as nações circundantes. O resplendor da vitória dessa pequena nação ofuscaria a glória dos ídolos dos grandes pagãos.

Levando em conta a perspectiva que se completa com o Novo Testamento, a profecia nos fala também do regresso de Cristo em glória (Mt 24.30). E então “as rochas afiadas da justiça e as algas marinhas lamacentas da maldade serão cobertas pela suave superfície da justiça de Deus”.[4] Com isso, Deus quer levar a humanidade a um ponto no qual as guerras acabem (Is 2.4; Sl 46.9; Os 2.18; Mq 4.3; Zc 9.10). A glória de Deus propõe erradicar a maldade aderida à raça humana. Maldade que, sem entrar em detalhes, teve sua mais cruel expressão em genocídios massivos e intermináveis conflitos bélicos[5]. Deus propõe encher a terra com sua glória (Nm 14.21; Sl 57.5, 11; 72.19; Is 6.3),e trazer paz e justiça duradoura sobre o globo (Is 9.7; Dn 2.44; 7.14, 27). Sua glória promete efeitos terapêuticos sobre todas as tristezas da humanidade!

No caso, deveríamos medir também os progressos da humanidade independentemente do fato de serem ou não crentes aqueles que os promovem. Afinal, tais progressos são os apontados pelos profetas e pelos evangelhos, tais como:

  • Atenção aos inválidos,
  • Saúde e educação para todos,
  • Justiça social e igualdade de oportunidades,
  • Reconciliação dos povos,
  • Compensações por danos causados,
  • Promoção da tolerância e da aceitação mútua,
  • Garantia das liberdades próprias e respeito pelas alheias,
  • Defesa da dignidade da vida,
  • Igualdade de direitos sem distinção de raça, sexo, idade ou classe…

Ajudar uma comunidade em uma seca severa a cavar poços de água, mulheres maltratadas e mutiladas a descobrir seu próprio valor e dignidade (a imagem), crianças-soldado a recuperar a candura da infância perdida; acabar com a escravidão e a exploração infantil ou sexual, isto é, com o tráfico de pessoas; ou lutar para que as mesmas liberdades que reclamamos para nós sejam garantidas para todos os coletivos e todas as confissões religiosas… Tudo isso também acrescenta uma joia a mais e mais brilho à radiante coroa de sua glória.

A meta é a difusão de sua glória e, por extensão, de sua benção e da imagem. Essa glória se manifestou em Cristo e em seu projeto para a humanidade. Mas essa glória se mede tanto pelas conquistas conseguidas quanto pelos sacrifícios realizados. Mede-se tanto por aqueles que o louvam quanto por aqueles que o rejeitam. Engloba tanto as vidas transformadas pelo evangelho quanto as abordagens para avançar em direção a uma humanidade em paz, justiça e igualdade.[6]

Se o evangelho é “a mensagem a respeito da glória de Cristo” (2Co 4.4), os que “foram enviados pelas igrejas e trazem honra a Cristo” (2Co 8.23) são os que refletem e difundem tal glória. Sendo assim, como devem colaborar seus mensageiros na extensão de sua glória? A que devem prestar maior atenção?

Sucesso ou vitória

Desde as heroicas vidas de Willian Carey, passando por Hudson Taylor e chegando a David Livingstone, o movimento missionário protestante e/ou evangélico foi ganhando força e ímpeto ( e ainda assim continua tão esquálido!).

Grandes histórias e relatos cativaram milhões que viram a tarefa global como um esforço de fé. Paralelamente aos relatos épicos, existem multidões de vidas anônimas que fizeram conquistas também relevantes que passaram despercebidas [não por Deus, é claro!], ou que simplesmente colocaram seu grão de areia sem grandes façanhas. Sem eles e sua abordagem, contudo, a tarefa nunca teria avançado. O que acontece é que ninguém soube quem eram e o que fizeram. Como “o irmão que é elogiado por todas as igrejas como pregador das boas-novas”, mas de quem não se mencionou o nome (2Co 8.18)! E o que dizer daqueles esforços que não deram os resultados esperados? Em um tempo, como hoje em dia, em que contar a própria história e ser escutado tem tanta importância, vale a pena se dedicar a uma tarefa que talvez acabe no anonimato, sem ter nenhuma ressonância?

Não poucos foram arrastados ao desânimo e à frustração por situações desse tipo, quando não à amargura ou, inclusive, ao ressentimento. De quem é “a culpa”? Será que as expectativas criadas não eram realistas? Será que seus sonhos partiam de metas mal planejadas? Será que a motivação era humana? “Se não haverá ressurreição dos mortos, de que me adiantou ter lutado contra feras, isto é, aquela gente de Éfeso? (1Co 15.32)”

O movimento da Reforma, com sua ênfase na iniciativa privada e no desenvolvimento pessoal, marcou a evolução das sociedades protestantes do norte da Europa. Posteriormente, as repressões ou penúrias na Europa dos séculos 17 ao 19 forçaram a marcha de muitos puritanos e peregrinos à América do Norte. O chamado novo mundo se encheu de buscadores de fortuna e/ou buscadores de uma nova terra prometida. Tudo isso, até certo ponto, marcado por essa busca de realização pessoal, que evoluiu até a competitividade e a exaltação de sucesso dominantes hoje em todo o mundo ocidental. E aqui necessito esclarecer: com essa análise superficial, não procuro passar pelo escrutínio dos historiadores, mas, sim, traçar algumas implicações importantes que, creio, afetaram a visão para os confins da terra.

O mundo anglo-saxão, uma vez finalizada a hegemonia germânica na Reforma, constituiu-se no baluarte da fé promotora da Bíblia e, portanto, na plataforma que sustentou a visão para os extremos do mundo. Essa visão, querendo ou não, está impregnada por uma cultura de “sucesso ou fracasso” (winner or loser). Mais ainda, quando essa cultura foi exportada com o evangelho para o Sul global, criou e está criando híbridos de sucesso e caciquismo, baseados não tanto nas conquistas individuais mas na exploração das massas. Se os saxões buscavam a terra prometida, os hispanos (meus antepassados) buscavam Eldorado. Se uns queriam converter o deserto em mananciais, outros buscavam converter o paraíso em seu feudo pessoal. Evidentemente, esse retrato é forçado e, portanto, grotesco. Mas temo que há muito de válido em tudo isso. No entanto, enquanto uns erigiram sobre o espírito do colono, buscador de novas terras e explorador dos limites do mundo conhecido, nós, os outros, nos alimentamos do espírito do conquistador, buscando varrer para casa e reunir o maior tesouro possível. Uns quiseram ser os exploradores e outros, os vice-reis. Dito em termos evangélicos, uns buscaram alcançar o inalcançado (ou inalcançável) e outros, ter a igreja maior e mais próspera.

Nada disso é mau se o propósito primeiro e último for dar glória a Deus. E cada qual que faça seu próprio exame de consciência: “Cada um preste muita atenção em seu trabalho, pois então terá a satisfação de havê-lo feito bem e não precisará se comparar com os outros. Quanto a mim, que eu jamais me glorie em qualquer coisa, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6.4, 14a). Em muitos casos (os de cima, caricaturados), no entanto, o aumento dos riscos teve como denominadores comuns a busca de sucesso e a realização pessoal. Digo tudo isso a partir de uma humilde e saudável crítica, que reconhece os efeitos tão importantes que alguns tiveram no estabelecimento dos direitos e liberdades individuais, e outros, na democratização da fé frente a uma herança religiosa imposta. No entanto, na hora de encarar contextos completamente diferentes – que não têm razão para serem forçosamente nem hostis nem cordiais, mas simplesmente diferentes –, isso criou e cria expectativas desproporcionadas, para não dizer enganosas. O resultado são não poucos casos de decepção e frustração, e, o que é ainda mais dramático, perde-se de vista a verdadeira origem e fim da tarefa: a glória de Cristo!

Antes de sermos recomendados à obra por algumas poucas e pequenas igrejas da região catalã na Espanha, o pastor reuniu “os varões” da congregação para que nos dissessem uma palavra de sabedoria, um último conselho. Falaram poucos, se falaram dois ou três, e todos muito ao estilo da península. Para destacar uma das intervenções, um irmão, com toda a solenidade, disse: “Carlos, se você fracassar, não tenha vergonha de voltar”. O irmão falou isso imbuído de nossa cultura “Spain is different!”no sentido de que todo tipo de  calamidade nos aflige. Não é que ele não vislumbrasse o sucesso, mas que já previa [a possibilidade] do fracasso antes do início. Na realidade, suas palavras – que em outro contexto talvez fossem consideradas de má fé ou desdenhosas – queriam dizer: “Aconteça o que acontecer, aqui te receberemos de braços abertos”. Ninguém esperava nada extraordinário de nós. Em vez de desânimo, isso nos proporcionou um refrigério. Tirou de nossos ombros falsas expectativas em num contexto em que outros viveram buscando o elixir do avivamento automático e não o encontraram. No entanto, Deus nos permitiu ver muito mais do que jamais sonhamos ou imaginamos. (E, dissesse o que dissesse o irmão, tínhamos colocado nossos olhos em Deus que “é capaz de realizar infinitamente mais do que poderíamos pedir ou imaginar” – Ef 3.20).

A Bíblia, mais do que de sucesso, fala de vitória. Na versão RVG[7], a palavra “sucesso” (êxito) aparece uma só uma vez (Hb 13.17)[8] e, na versão LBLA[9], 18 vezes, sendo todas no Antigo Testamento. Seu sentido mais próximo é “prosperar”.[10] Vitória ou vencer, triunfo ou triunfar, por sua vez, aparecem 91 vezes na RVG e 97 vezes na LBLA, com um significado igual ao na língua espanhola.[11] O sucesso é uma conquista pessoal, um mérito. A origem e a meta do sucesso são quem o faz, é em benefício próprio. A vitória, pelo contrário, fala de dominar e subjugar algo ou alguém que se opõe a nós. De se sobrepor ao pecado, à injustiça, à morte, a doenças e a todo o reino espiritual. O sucesso só pode ser nosso. No caso de uma vitória, mesmo que alguém tire benefício do fato de superar o inimigo, a meta não é quem o faz, mas sim acabar com a ameaça e os danos que provoca. Não busca forçosamente a exaltação pessoal. Não podemos – ou não devemos – agenciar sucessos alheios (seria plágio, usurpação ou roubo), mas, sim, podemos participar da vitória conseguida por outro ou outros: “Somos mais que vencedores por meio daquele que nos amou” (Rm 8.37).

Na maioria dos casos, tanto as vitórias como as conquistas (sucessos) se consolidam por meio de reveses e fracassos: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2Co 12.10). Em termos bíblicos, não se alcança o sucesso ou a vitória sem experimentar certos infortúnios! Melhor dizendo, a verdadeira vitória espiritual se fundamenta no desacerto pessoal remediado pelo acerto do Senhor: “Se devo meu orgulhar, prefiro que seja das coisas que mostram como sou fraco (…) para que o poder de Deus opere por meu intermédio

(2Co 11.30; 12.9). Deve-se “tocar o fundo” – bem seja por adversidades, por falhas ou pela exigência de negar-se a si mesmo – para estar na condição de poder experimentar a vitória do Senhor, de modo que o mérito seja apenas dele! “Tenho motivo, portanto, para me entusiasmar com o que Cristo Jesus tem feito por meio de meu serviço a Deus. E, no entanto, não ouso me vangloriar de nada, exceto do que Cristo fez por meu intermédio a fim de conduzir os gentios a Deus, por minha mensagem e pelo meu trabalho” (Rm 15.17-18).

No início dos nos 90, Deus nos deu a visão de edificar e “registrar” uma igreja em Istambul. Parecia – e era – impossível. As autoridades locais estavam expropriando as igrejas ortodoxa e católica, apesar dos tremendos apoios internacionais que recebiam. Depois de oito anos, uma vez reunida a quantidade mínima para comprar uma propriedade, buscamos por seis meses, dia sim e no outro também, um edifício que reunisse as condições. Uns eram muito caros; outros, mal localizados; uns eram impossíveis de ser adaptados às necessidades de uma igreja; outros, muito pequenos ou devassados… Após seis meses de intensa busca, enfim encontramos algo como imaginávamos! Na tarde em que fomos realizar a compra, no entanto, o dono deu para atrás, e eu desmoronei. Não consegui dormir naquela noite e, desesperado, disse ao Senhor algo como: “Perdão, esse é teu projeto, mas tomei como se fosse meu… Eu o entrego no teu altar. Seja feita tua vontade”. No dia seguinte, não queria fazer nada. Minha mulher (de novo!) me indicou dois imóveis que haviam sido anunciados para eu ir visitar. Não queria ir, mas, a contragosto, visitei o primeiro. Inútil! Em seguida, fui ao próximo endereço e, diante de meus olhos, apareceu uma casinha em forma de capela com entrada pela avenida principal e de tamanho e preço ideais.[12] Como não havíamos visto antes? E em um lugar tão central! Deus conseguiu em apenas poucas horas muito mais do que nós em seis meses de árdua busca!

Aprender, a partir de nossas derrotas, a experimentar a vitória do Senhor não é um tema menor, mas não podemos nos estender mais aqui. O que gostaria de destacar é que a maior oportunidade e a maior debilidade de poder glorificar a Cristo ao ir aos lugares não alcançados é: “Não nos orgulhamos do trabalho realizado por outros nem assumimos o crédito por ele (…). Poderemos anunciar as boas-novas em outros lugares, (…) onde ninguém esteja trabalhando. Assim, ninguém pensará que estamos nos orgulhando do trabalho feito em território de outros” (2Co 10.15-16).

O propósito no serviço cristão não pode ser outro senão exaltar só a Deus. Se as metas que estabelecemos não correspondem às de Deus, se nossos sonhos não coincidem com o que realmente o glorifica, se a frustração frente às adversidades nos arrasta ao abandono, não estamos buscando a vitória [de Deus], mas o êxito pessoal. Todos caímos nessa armadilha, mas é mister aprender a fazer os ajustes necessários. Isso é o que nos ensina a experiência do próprio Paulo. Ele aprendeu a experimentar que “em Cristo”, somos conduzidos “triunfantemente (…) por toda parte (2Co 2.14) quando negamos a nós mesmos e substituímos nossos sonhos pelos do Senhor. O ponto de inflexão apareceu em Trôade. Que ocorreu ali?

Das debilidades emana a verdadeira vitória

As lições espirituais aprendidas por Paulo em Trôade, em princípio, parecem não ter muita relação com nosso tema. Acredito, contudo, que elas são imprescindíveis para que descubramos a glória de Deus que devemos promover. Pelos menos é onde eu encontrei minhas respostas.

A primeira experiência de Paulo em Trôade marcou um antes e um depois em sua vida. Ali é onde ele teve de, em primeiro lugar, substituir seu sonho pelo do Senhor. Paulo, até então, havia centrado todos seus esforços na Ásia Menor. Talvez algo parecido com: “Antes de pensar em outras latitudes, primeiro devemos ganhar nossa nação para Cristo”. Parece-nos familiar? Das regiões de Frígia e Galácia (no centro de Anatólia), quis descer com seus companheiros de ministério em direção a Éfeso, mas “o Espírito Santo os impediu de pregar a palavra na própria Ásia” (At 16.6). Frente a tal contratempo, propuseram-se a ir de Mísia a Bitínia, na parte noroeste da península de Anatólia, “mas o Espírito de Jesus não permitiu” (At 16.7). Paulo e sua equipe se empenhavam em permanecer no continente asiático, mas o Senhor desbaratou os planos por mais de uma vez.

Como proibiu e como impediu, não sabemos. O que, sim, sabemos é que Jesus teve de insistir várias vezes por meio de seu Espírito (as ênfases no “Espírito de Jesus” são do texto bíblico). Quantas vezes ficamos obstinados com nossas metas, e o Senhor tem de “nos derrubar do cavalo”? É quando devemos, então, perguntar: “Que devo fazer, Senhor?” (At 22.10), e ele nos mostrará. O que também está claro é que todos falhamos em discernir a vontade de Deus, e, não fossem certas frustrações, não aprenderíamos a afinar o ouvido e a vista espirituais: deixar de nos centrarmos no que nós queremos e descobrir o que Deus realmente quer de nós.

Dessa forma, Paulo e sua equipe, “seguiram viagem pela Mísia até o porto de Trôade”(At 16.8), alguns quilômetros a oeste de Mísia na costa do mar Egeu. Trata-se da Trôade que se encontra nos limites da aldeia de Dalyan na Turquia atual, 18 km ao sul da Troia homérica na região sul dos Dardanelos. Anos atrás, Deus nos guiou ali para redescobrirmos o impacto que teve esse lugar na história do avanço do evangelho. Apesar de haver apenas quatro breves menções no Novo Testamento sobre esse lugar (At 16.8, 11; 20.5, 6; 2Co 2.12; 2Tm 4.13), é ali que se deu o passo definitivo para a tarefa transcontinental, onde Paulo teve a visão do varão macedônico dizendo “Venha…” da Ásia para a Europa (At 16.9). É ali onde o sonho de Paulo por sua nação cedeu lugar ao sonho do Senhor pelas nações. Esse breve episódio em Trôade mudou, portanto, o curso da evangelização mundial.

Ali, em Trôade, Paulo não apenas descobriu novos horizontes para sua tarefa como também conheceu Lucas (o relato de Atos a partir daqui muda de “eles” para “nós”; 16.10), irmão que catapultaria seu ministério ainda mais, fazendo-o ecoar até hoje e por todos os continentes por meio de seus relatos. Para que ampliasse seu ministério além-mar, era necessário alguém que o faria ressoar nas nações: Lucas. Um colaborador sem o qual Paulo não seria Paulo.[13]

Ali em Trôade é onde Paulo teve também de aprender a se centrar nos triunfos do Senhor a partir ou apesar de suas debilidades. Cronologicamente falando, a segunda menção a Trôade aparece na  2ª carta aos Coríntios. Paulo compartilha ali detalhes de sua experiência pessoal, e nos revela intimidades importantes sobre suas lutas, seu ministério e, consequentemente, sobre seu conceito de triunfo. Diz assim a passagem: “Quando cheguei à cidade de Trôade para anunciar as boas-novas de Cristo, o Senhor me abriu uma porta de oportunidade. Contudo, não tive paz em meu espírito, pois meu querido irmão Tito ainda não havia chegado com notícias de vocês. Assim, despedi-me dos irmãos dali e fui à Macedônia para procurá-lo” (2Co 2.12-13).

Gostaria de ressaltar a importância da cidade de Trôade, e relatar algo sobre as fascinantes ruínas que ainda hoje se podem visitar, mas este não é nem o lugar nem o momento. O importante neste ponto é ver como Paulo não aproveitou uma imensa oportunidade, e como, por conta disso, experimentou sua própria “insuficiência” ao mesmo tempo que descobriu em que reside o triunfo “permanente” para o ministério (seguindo nos versículos 14 a 16). E mais importante ainda é ver em tudo isso o que é que realmente glorifica ao Senhor.

Em Trôade, “o Senhor abriu uma porta” a Paulo. Essa expressão não carrega o mesmo significado (ou qualquer significado) para culturas não familiarizadas com o NT. No máximo, alguém poderia entender que Paulo encontrou um lugar onde se abrigar. No entanto, na linguagem bíblica, significa “uma grande oportunidade” (At 14.27; 1Co 16.9; Cl 4.3; Ap 3.8). A palavra “oportunidade”, na verdade, deriva da mesma raiz de porta ou porto: “o-porto” (frente ao porto). É sabido que nessa época o mar acabava se transformando em sepultura para muitos navegantes. Então, “frente ao porto” expressa o sentimento dos marinheiros que gritavam “o-porto” (nosso “Terra à vista!”) quando chegavam a bom porto depois de uma travessia atribulada e tinham a oportunidade de seguir vivendo.

A porta foi aberta pelo Senhor e era “para pregar o evangelho”. Valendo-se de nossos termos evangélicos, é como um estádio transbordando de uma multidão ávida por escutar as boas-novas. Não como os de Éfeso, que, enchendo o teatro da cidade, clamavam: “Grande é Artemis dos efésios!” (At 19.28, 34), vaiando Paulo (que teve de sair da cidade sem falar uma palavra). Dessa vez, as multidões estavam “em ponto de bala”. No entanto, por uma estranha circunstância, Paulo, o apóstolo das nações, não aproveitou tal oportunidade! Simplesmente foi embora, deixando os irmãos em apuros.[14] Que impróprio da parte de Paulo, o gigante da proclamação do evangelho! Mas aqui descobrimos seu lado mais humano: “…não tive paz em meu espírito, pois meu querido irmão Tito ainda não havia chegado com notícias de vocês” (2Co 2.13). Paulo não estava com ânimo devido à ausência de Tito.[15] O homem de ferro, a rocha da evangelização, o sempre impertérrito herói da fé frente às adversidades… sem Tito não é o Paulo que pensávamos conhecer. Em contraste, lemos: “Quando chegamos à Macedônia, não tivemos nenhum descanso. Enfrentamos conflitos de todos os lados, com batalhas externas e temores internos. Mas Deus, que conforta os desanimados, nos encorajou com a chegada de Tito”(2Co 7.5-6). Ou seja, graças à chegada de Tito, Paulo saiu de seu estado “depressivo”! Sem Tito, uma oportunidade era como uma porta fechada; com Tito – e as notícias que trazia –, as maiores tribulações eram uma oportunidade! (E aqui poderíamos nos estender falando dos benefícios dos colaboradores como requisito para o sucesso.)

Não apenas aqui, mas também em outros lugares onde implora aos crentes (1Co 2.3; 2Co 2.4; 12.21; Gl 4.19; Fl 1.8; 3.18; 1Ts 2.7, 11), descobrimos um Paulo emotivo e vulnerável. Ele necessita dos crentes, de Tito e de todos: “Agora, revivemos por saber que estão firmes no Senhor” (1Ts 3.8).

Podemos resumir dizendo que em Trôade, apesar das circunstâncias favoráveis (a porta aberta), a ausência de Tito fez com que Paulo se decepcionasse consigo mesmo. Apesar das circunstâncias tão desfavoráveis que enfrentou na Macedônia, ali a presença de Tito proporcionou a audácia necessária para que se sobrepusesse a tudo. Repito: Paulo não era o Paulo que conhecemos sem Tito e sem as boas notícias que ele trazia de Corinto (2Co 7.7).

Paulo perdeu uma grande ocasião (“uma porta aberta pelo Senhor”) para salvar várias almas, e abandonou a cidade. Como isso se encaixa no evangelho dos “heróis” irredutíveis? Como se encaixa no evangelho dos “adails”[16] solitários? E como isso se encaixa no evangelho dos “números” sempre pujantes? Em breve teremos de seguir com o raciocínio de Paulo ao não aproveitar sua oportunidade em Trôade (2Co 2.14-16) e dar algumas respostas. Mas, antes de continuar, do que foi dito até aqui e do que que ainda resta por dizer, são três as lições que quero destacar:

(1) Sem experimentar certas derrotas, não podemos alcançar à verdadeira vitória.

(2) Sem o trabalho em equipe, não somos ninguém.

(3) Nem tudo no evangelho são multidões – quando são, haverá que se especificar quais multidões.

O triunfalismo legítimo

O triunfalismo é uma atitude de otimismo infundado que celebra conquistas de antemão e que supervaloriza os recursos ou o potencial de si mesmo, ignorando deliberadamente as dificuldades que há pela frente. É uma atitude que evade a realidade e que põe toda a motivação no sucesso e exaltação pessoais. Ou, às vezes, é uma forma artificial de se dar um ânimo ou de querer dar a outros. Paulo nos fala sobre compartilhar certo triunfo com o Senhor e de que tal triunfo ocorre “conosco”, “sempre” e “em todo lugar”. É isso o triunfalismo? Leiamos:

Mas graças a Deus, que, em Cristo, sempre nos conduz triunfantemente. Agora, por nosso intermédio, ele espalha o conhecimento de Cristo por toda parte, como um doce perfume. Somos o aroma de Cristo que se eleva até Deus. Mas esse aroma é percebido de forma diferente por aqueles que estão sendo salvos e por aqueles que estão perecendo. Para os que estão perecendo, somos cheiro terrível de morte e condenação. Mas, para os que estão sendo salvos, somos perfume que dá vida. E quem está à altura de uma tarefa como essa? (2Co 2.14-16)

Interessa-nos em especial essa passagem porque fala de espalhar “o conhecimento de Cristo por toda parte, como um doce perfume “, ou seja, de a terra estar cheia do conhecimento da glória do Senhor. Em que consiste o conhecimento de sua glória senão no estupor ou no assombro – como o de uma fragrância – que causa o divino no homem? O ser humano pode reagir com admiração ou com animosidade a esse resplendor ou aroma, mas não permanece indiferente.

No versículo 14, a fragrância é a glória se manifestando aos homens. Como? Pela difusão de “seu conhecimento”. No versículo 15, a fragrância é o aroma que se eleva a Deus pelo trabalho dos mensageiros (que “foram enviados pelas igrejas e trazem honra a Cristo” – 2Co 8.23), mesmo que o aroma em si seja o próprio Jesus. E, no versículo 16, o aroma é percebido pelas multidões segundo duas reações: para uns é cheiro de vida, para outros, de morte. Mas todas as reações, positivas ou negativas, o glorificam! Porque “somos o aroma de Cristo que se eleva até Deus [tanto entre] aqueles que estão sendo salvos [quanto entre] aqueles que estão perecendo (v 15). Dito de outra maneira: apenas o fato de anunciar a Cristo, seja qual seja a resposta (ou a falta dela), constitui o triunfo glorioso do que diz Paulo.[17]

Para não fazer rodeios, vou dizer de forma grotesca, mas numa linguagem que entendamos. O que aconteceria se alguém em seu diário de oração dissesse:  “Este mês compartilhei o evangelho com mil pessoas. Uma me ouviu, outras 999, não; mandei-as ao inferno”? Isso glorifica a Cristo? Algo dessa natureza é do que fala Paulo. Evidentemente, é impróprio dizê-lo assim, e hoje em dia ultrapassa tudo que é politicamente correto. Deus, como ensinam o Antigo e o Novo Testamentos, se compadece com a perdição do incrédulo, e certamente argumenta com o rebelde para que se arrependa e creia (veja Ez 18.32; 33.11; 2Pe 3.9).

Coloquemos, então, de outra forma. O que aconteceria se alguém em seu diário de oração dissesse: “Este mês compartilhei o evangelho com mil pessoas. 999 aceitaram a Cristo e apenas uma o recusou ”? Isso glorifica mais ao Senhor que o exemplo anterior? É um triunfo maior? A resposta que nos sugere a passagem é um estrondo. Não! Ligar o triunfo ao fato de que os 999 responderam positivamente é triunfalismo pueril. Ligar o triunfo ao fato de que aos mil foi proclamado Cristo é triunfalismo celestial e, portanto, legítimo. É ser consciente de que a glória (que é Jesus!) brilhou frente aos olhos da multidão, mesmo que para uns tenha iluminado e para outros, cegado. Evidentemente, o gozo é maior se os 999 se salvam, muito maior, imensamente maior! Mas a glória que Cristo recebe, não é, nem o triunfo que se celebra no céu! Não há dúvida de que todos preferimos ver o triunfo e o gozo juntos, mas o que deve nos incentivar, acima de tudo, é a busca de sua glória. A resposta positiva não está em nossa mão, mas a difusão de sua glória, sim. Mesmo nas circunstâncias que são desfavoráveis.

Que importante é isso para não descuidarmos daqueles campos que são mais inóspitos! De outra maneira, só deveríamos semear nos pomares, e a vontade de Deus de converter os desertos em mananciais ficaria desestimada. Uma mentalidade de produtividade busca semear nos lugares onde há mais garantia de colheita. Uma mentalidade de glória busca a terra que ainda não produz vida. Uma mentalidade triunfalista apenas busca “o avivamento”. Uma mentalidade de glória busca espalhar o aroma, ainda que haja risco de que para muitos isso tenha cheiro de morte. Mas não a todos… E por um só fruto vale a pena!

Permitam-me explicar com uma analogia. Encontrar uma margarida no jardim botânico de um país tropical, a quem surpreende? Mas encontrá-la em meio ao deserto do Saara não tem explicação! De onde procede a semente, como encontra água, onde colocou raízes se apenas há areia, como resiste aos raios abrasadores do sol? Isso sim que é um milagre! Só pode ser obra de Deus! O que o glorifica mais: milhões de margaridas nos parques botânicos ou aquela margarida aguentando sozinha no deserto? Aguentando, mas bem erguida! A mentalidade triunfalista busca os jardins botânicos. A mentalidade de glória, os desertos.

Voltemos ao texto. Paulo, iniciando a passagem com um “Mas…”, está ligando a doxologia (“graças a Deus”) à sua experiência em Trôade. Com essa reflexão, de alguma forma acha consolo ao pesar que sente por não ter aproveitado a grande oportunidade com que o Senhor o havia brindado. É como dizer: “Mesmo saindo de Trôade frustrados por termos de deixar uma porta tão larga aberta, a Deus graças, nada mancha a glória do Senhor”. Incluindo as circunstâncias que, não importa a razão, fazem a mensagem não aderir às multidões, ele pode nos usar, seja como instrumentos para fazer chegar a sua salvação a muitos, seja como revulsivos que certificam a perdição dos que não se apegam ao evangelho. Mas Paulo se refere aos que não têm a oportunidade de escutar o evangelho (como no caso de Trôade) ou aos que o escutam e o rejeitam? Dito de outra maneira, disse acaso Paulo: “Tudo bem se não vamos pregar aos perdidos, Deus é igualmente glorificado”? De jeito nenhum! Paulo tomava muito cuidado em comunicar tudo o que deveria a todos aqueles a quem deveria. Por isso, em sua despedida em Mileto, lembra aos anciãos da igreja – “Jamais deixei de dizer a vocês o que precisavam ouvir, seja publicamente, seja em seus lares. Anunciei uma única mensagem tanto para judeus como para gregos: é necessário que se arrependam, se voltem para Deus e tenham fé em nosso Senhor Jesus [Cristo] (At 20.20-21). E, na sequência: “Por isso, declaro hoje que, se alguém se perder, não será por minha culpa, pois não deixei de anunciar tudo que Deus quer que vocês saibam” (At 20.26-27). Ele está fazendo referência indireta aos versos de Ezequiel que dizem: “… e tu não o avisares e nada disseres para o advertir do seu mau caminho, para lhe salvar a vida, esse perverso morrerá na sua iniquidade, mas o seu sangue da tua mão o requererei” (Ez 3.18, 20). Paulo se declara inocente do sangue de todos porque não fugiu da responsabilidade de declarar a todos todo o conselho de Deus. Contudo, não era esse o caso vivido em Trôade.

Por isso, é difícil pensar que, em sua 2ª carta aos Coríntios, Paulo se refira ao fato de que Deus é glorificado por não terem pregado aos habitantes de Trôade. Paulo tem uma forte carga de consciência por anunciar o evangelho a todos: “…porque ai de mim se não pregar o evangelho!” (1Co 9.16). Assim, com a expressão “aroma de Cristo que se eleva até Deus… percebido por aqueles que estão perecendo”, ele não se refere àqueles que, por negligência dos mensageiros, não escutaram as boas-novas, mas sim àqueles que perceberam o aroma e o rejeitaram. Esses glorificam a Deus igualmente!

O aroma é uma forma de se referir às glórias da vitória divina. Tal aroma não emana da salvação ou condenação dos ouvintes, mas do testemunho dos mensageiros. Paulo não diz “eles são” fragrância, diz nós “somos…”; o aroma é Cristo nos que proclamam a mensagem. E esse aroma, em alguns casos, leva a que alguns se salvem e, em outros, que se condenem. “Assim como a luz, mesmo que cegue na obscuridade aos fracos, é para todos aquela luz tranquila; e o mel, mesmo que tenha gosto amargo para os doentes, é em si mesmo doce; assim, o evangelho é ainda o bom perfume, mesmo que muitos pereçam por incredulidade” (Crisóstomo, Homilías, 5:467). O coala digere a folha de eucalipto com sumo prazer, enquanto as toxinas da mesma folha podem causar a morte a outras espécies. No entanto, fazemos balas de eucalipto!

Se os resultados que buscamos são apenas de sucesso em número de convertidos, em contextos inóspitos onde é escassa a resposta, somos conscientes de que estamos negando a glória a Cristo? Porque o “aroma de Cristo que se eleva até Deus (…) é percebido [tanto] por aqueles que estão sendo salvos [como] por aqueles que estão perecendo”. Entendo que essa é uma palavra dura e, por isso, Paulo pergunta: “E quem está à altura de uma tarefa como essa?” Paulo se sentia abatido depois do abandono de Trôade, mas descobre a chave do triunfo no Senhor! Os apuros de Paulo em Trôade magnificam o triunfo do Senhor. Apesar de tudo, a igreja chegou a se formar, e nem Paulo nem ninguém pode reclamar os louros dessa obra. Foi Deus que os fez suficientes para uma obra que eles não alcançaram: “…não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus (2Co 3.5).

As terras mais inóspitas ressaltam mais sua obra milagrosa. Não pelos números, senão pelos nomes. Pelas “isoladas margaridas no deserto” que podemos nomear uma a uma. O evangelho não é uma mensagem de números, mas de nomes. O evangelho se espalha com os Titos e com os Paulos. E esses, às vezes, dão a medida e às vezes, não. Mas Deus sempre dá a medida exata. Assim, necessitamos dos Titos e dos Paulos com suas fortalezas e suas debilidades, com seus acertos e seus erros. O evangelho também é uma mensagem de nomes e não de números porque Deus não nos chama com um número (como nos campos de concentração), mas pelo nome. E, mesmo que ele busque abraçar as multidões, nos chama um a um. Deus está interessado na pessoa, e esta é a maneira de estender a mensagem: interessando-se pessoalmente. Isso requer tempo, horas, dias, meses… Porque se trata de chegar a ver a transformação dos novos seguidores em verdadeiros discípulos de Jesus. E isso é assim tanto onde são muitos os que respondem à mensagem quanto onde são poucos os que o fazem.

O evangelho não é um produto de mercado. Quando buscamos os resultados numéricos acima de tudo, corremos o risco de rebaixar a mensagem, ou de inflar as cifras. Tristemente, não poucas vezes se vive isso no campo. Por isso, Paulo acrescenta: “Porque nós não estamos, como tantos outros, mercadejando a palavra de Deus; antes, em Cristo é que falamos na presença de Deus, com sinceridade e da parte do próprio Deus (2Co 2.17). Paulo não rebaixa os requisitos da Palavra para obter mais números. Sua obra está “diante de Deus…”. O resultado que ele busca é fazer o que agrada ao seu Senhor, independentemente dos resultados. As cifras não impressionam a Deus. Deus não calcula o número de convertidos por dólar investido. Ai daqueles que sempre estão centrados nas cifras! Estão sempre se expondo à tentação de adulterar os números. Se não fosse assim, não dariam sempre cifras “subindo”. Quando se faz uma estimativa, sempre se toma por referência a cifra maior. É como o garçom que sempre se confunde dando o troco, mas nunca se equivoca a favor do cliente. É honesto?

Queremos de verdade ver, irradiar e exaltar sua glória? Devemos, então, estar dispostos a morrer em nós mesmos como Moisés (Ex 33.20). Então, poderemos clamar como ele – “Peço que me mostres tua presença gloriosa” (Ex 33.18) –

e dedicar todos os nossos esforços aos lugares menos favoráveis! Estaremos dispostos a ir ou a apoiar os que vão para lá, acima de qualquer outro ministério ou lugar que os impeça em cifras? Façamos uma breve revisão:

  • O objetivo da tarefa global é a difusão do conhecimento da glória do Senhor por toda a face da terra.
  • Engloba tanto os avanços do evangelho quanto os avanços em direção a uma humanidade em paz, justiça e igualdade.
  • Essa glória inclui tanto aqueles que se salvam e o louvam quanto aqueles que o rejeitam e se perdem.
  • Ninguém chega a apreciar a verdadeira vitória do Senhor sem experimentar certas decepções com respeito a si mesmo.
  • Se as metas que nós marcamos não buscam sua glória, as dificuldades no campo nos conduzirão ao abandono.
  • O “triunfalismo” do qual Paulo no fala consiste no fato de anunciar a Cristo, seja qual for a resposta.
  • Uma mentalidade triunfalista busca semear somente ali onde há garantias de colheita abundante [em termos numéricos].
  • Uma mentalidade de glória busca espalhar a fragrância onde mais há falta: onde há menos flores aromáticas.

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O texto é o capítulo 3 do livro Recomponiendo La Missión Con Jesús – Reflexiones sobre la misión, sobre la tarea global y sus implicaciones para el mundo [Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo], publicado na Espanha por Impresiones em 2018. O Martureo recebeu autorização do autor para traduzi-lo e publicá-lo. Tradução: Lucas F. R. Juknevicius. Edição: Fernanda Schimenes.

 

Sobre o autor
Carlos Madrigal Mir nasceu em 1960 em Barcelona e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.

 

[1] Status da evangelização mundial em 2018 segundo o Joshua Project:

% da população População Categoria
10% 0,75 bilhão Seguidores de Cristo
22% 1,65 bilhão Cristãos nominais
39% 2.92 bilhões Ouviram, mas não aceitaram
29% 2.16 bilhões Não expostos ao evangelho

 

[2] “De cada dólar dos recursos doados por cristãos, menos de um centavo é direcionado a alcançar os não alcançados.”. Em https://joshuaproject.net/resources/articles/has_everyone_heard, acesso em 30/8/2018.

[3] Deus nos permitiu ver muito mais do que sequer imaginávamos, desde conseguir o reconhecimento oficial de não poucas igrejas [na Turquia], até dar testemunho a milhões em canais nacionais de TV. Assim, não faço uso dessas reflexões para desculpar nenhuma falta de resultado, mas sim para reivindicar única e exclusivamente a glória de Deus no avanço da obra.

[4] Walvoord, J. F., Zuck, R. B., El conocimiento bíblico, un comentario expositivo: Antiguo Testamento, Tomo 6: Dn-Ml., Ed Las Américas, 2001, p. 244.

[5] Max Roser, em https://ourworldindata.org, com base nos estudos de Peter Brecke (Battle Deaths v.3.0) publicados pelo PRIO Institute and Conflict Catalog, mostra que não houve um só ano sem conflito bélico no mundo desde que se tem dados globais, ou seja, desde o ano 1400.

[6] É dito que uma paz a qualquer preço é/será a aposta do anticristo. Mas essa será uma paz para preparar a guerra e a destruição, como as promessas de paz de Hitler. Não estou falando aqui sobre isso, mas sobre esforços genuínos de todos aqueles que esperam por uma paz mundial real e duradoura, sejam crentes ou não, com uma motivação que poderíamos chamar de corte cristã, mesmo que eles ou elas não vejam assim.

[7] Versão Reina Valera Gomez, em espanhol. (N. do E.)

[8] Tradução de ekbasis (G1545), que na realidade significa “saída” no sentido de “resultado”.

[9] Versão La Biblia de las Américas, em espanhol. (N. do E.)

[10] Tradução de tsâlach  (H6743) ou, às vezes, de śâkal (H7919). Em ambos os casos, significa fazer “próspera” uma iniciativa.

[11] O significado dos homônimos hebreus e gregos é basicamente o mesmo que em espanhol: vitória, vencer, triunfo, triunfar.

[12] http://www.fipestambul.org/nuestras-igrejas-1/altintepe-estambul/

[13] “Paulo, desde o início, recebeu o chamado às nações, assim como os doze. Mas isso não implica que o entenderam claramente desde o início da tarefa: os doze não o entenderam, ficando em Jerusalém e contrariando diretamente as instruções de seu Mestre… (At 1.8). Foi necessário sobrevir a perseguição que desembocaria no encontro com o eunuco para que a igreja se colocasse em movimento em direção aos gentios (At 8.1-5). Também Pedro não entendeu o chamado, e precisou ser escandalizado com uma visão de Deus para poder compreender que tinha de entrar na casa de um gentil e lhe expor o evangelho de Jesus (At 10 e 11)… Inclusive Paulo, o mensageiro por excelência do evangelho às nações, não via necessidade de traspassar as fronteiras de sua terra natal (Ásia Menor) até que o Espírito o proíbe e o impede por duas vezes de continuar nas províncias da Ásia e Bitínia, e, por meio de uma visão, impele Paulo a passar para um novo continente: Europa (At 16.6-10).” (Carlos Madrigal, Releyendo las Escrituras con Jesús, Impresiones, Barcelona 2016, p. 97).

[14] Havia estado em Trôade antes, mas a visão do macedônio que o convidava para passar para Europa impediu que permanecesse ali (At 16.8-12). Em contrapartida, quando diz aqui que se despediu, pressupõe-se que foi dos irmãos. Mesmo que não saibamos exatamente quando e como se formou, no capítulo 20 de Atos encontramos uma igreja já assentada na cidade.

[15] Segundo o fio de pensamento da carta, ao não encontrar Tito, de quem esperava ouvir notícias de Corinto, não teve ânimo para permanecer ali.

[16] O adail (do árabe ad-dalil, condutor) era o capitão do campo nas guerras africanas, aquele que guiava a hoste ao combate, que atuava como batedor de campo. (N. do E.)

[17] Não descreverei aqui as entradas triunfais dos generais romanos que estão no fundo da ilustração de Paulo, elas apenas alargariam a descrição sem acrescentar nada de substancial ao argumento.

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