As qualidades que deve reunir o pioneiro
Diretrizes para obreiros transculturais a partir da vida de João Batista segundo Mateus 11.2-19
Carlos Madrigal Mir
João Batista é o protótipo do pioneiro, se entendemos como pioneiro aquele que prepara o caminho do Senhor para que Jesus se encontre com sua desposada (i.e., uma nova comunidade nascente) em um contexto em que antes não havia presença cristã. Por isso Paulo, o pioneiro por excelência, define assim seu ministério: “…pois o cuidado que tenho com vocês vem do próprio Deus. Eu os prometi como noiva pura a um marido único, Cristo” (2Co 11.2[1]). João aborda o mesmo tema da seguinte maneira: “É o noivo que se casa com a noiva; o amigo do noivo simplesmente se alegra de estar ao lado dele e ouvir seus votos. Portanto, muito me alegro com o destaque dele. Ele deve esta cada vez maior, e eu, cada vez menor” (Jo 3.29-30).
A partir desse enfoque, Mateus 11.2-19 – a passagem em que João, da prisão, manda perguntar a Jesus “O senhor é aquele que haveria de vir, ou devemos esperar algum outro?” – elenca quais são, em geral, as qualidades que deve reunir o pioneiro.
“…João estava na prisão”. Quando falamos da tarefa global, isso implica, muitas vezes, servir em um contexto de hostilidade. E o maior desafio não é o que coloca em perigo a nossa integridade física, mas sim o que desafia nossas convicções: devemos ser conscientes de que os obreiros (os que formos e os que enviamos) enfrentarão uma resistência que colocará a fé à prova. E não falo de nossa “confissão de fé”, mas da certeza de estar no lugar correto, no tempo correto, fazendo as coisas da forma correta.
Em outras palavras, aqueles que vão devem “saber duvidar”. É relativamente fácil ir e retornar em pouco tempo. Mas permanecer até ver o fruto requer a capacidade de lidar com muitas dúvidas, tais como:
- Eu não seria mais produtivo no meu país?
- Não estou gastando meus dons em vão?
- Com o sustento que necessito, poderiam apoiar 2 ou 3 pastores na minha terra.
- Não seria de maior proveito usar a experiência adquirida para preparar outros?
Por outro lado, a pressão por ver o fruto pode nos empurrar para a busca de “fórmulas alternativas”. Hoje em dia, muitas das abordagens que se fazem sob o nome de “contextualização” temo não serem nada além de uma tentativa para baixar os padrões do evangelho e, assim, engrossar os números nos informativos e nas estatísticas. Mas o Senhor não nos chamou para fazer números, mas para fazer discípulos.
Jesus pergunta reiteradamente sobre João Batista. “Que tipo de homem vocês foram ver…? (…) Afinal, o que esperavam ver? (…) Acaso procuravam um profeta?” (Mt 11.7-9). A insistência do Senhor não é retórica. O povo saía para ver João por curiosidade, em busca da novidade, atraídos por sua personalidade magnética. Vivemos em um contexto em que o que não é novidade, espetacular ou notícia de última hora perde seu interesse. O ministério de muitas igrejas e de muitas agências está viciado por esse ídolo da nossa época, e são elas que, eventualmente, enviarão os obreiros e exercerão sobre eles uma pressão às vezes insuportável por resultados imediatos.
Que resultados teve João Batista? Não fez nenhum milagre, perdeu seus discípulos (se foram com o pregador em voga: Jesus), e, em vez de conquistar títulos acadêmicos, acabou perdendo a cabeça. Mas é de se notar que Jesus não repreende João em nada. Sua reação está voltada aos que o escutavam, aos que possivelmente censuravam João em seus corações. Jesus se identifica com o que paga o preço!
Vamos nos atentar a segui para as 3 perguntas de Jesus.
1.“Que tipo de homem vocês foram ver no deserto?” (Mt 11.7)
A tarefa transcultural tem lugar em desertos espirituais. O deserto esquenta, apresenta condições climatológicas extremas de calor e frio, mas, acima de tudo, carece de água. É necessário sobreviver em condições desumanas. Além disso, é necessário afrontar solidão, falta de referências para orientação, o engano dos espelhismos (resultados que parecem fruto, mas não são), o esgotamento… Necessitamos de obreiros que tenham desenvolvido “técnicas de sobrevivência”.
Os latinos que saem para a obra em contextos transculturais apresentam uma alta taxa de retorno precoce do campo. Alguns saem para projetos de curto prazo mesmo, outros voltam por questões financeiras, de saúde ou de visto, mas não poucos são os desiludidos e frustrados. Olhando para João Batista, qual era o seu esteio emocional?
“…o amigo do noivo simplesmente se regozija de estar ao lado dele e ouvir seus votos. Portanto, me alegro muito com o destaque dele.” (Jo 3.29)
Na verdade, a questão que João propõe a Jesus era para se certificar de que não havia posto seu regozijo em uma base errada. O obreiro transcultural deve fundamentar sua realização pessoal não nas “conquistas”, mas em “estar ao lado dele [Jesus] e ouvir seus votos”.
Jesus define João como “um caniço que qualquer brisa agita” (Mt 11.7). Combinando essas palavras com Mateus 12.20 e 21 – “Não esmagará a cana quebrada, nem apagará a chama que já está fraca. Por fim, ele fará que a justiça seja vitoriosa. E seu nome será a esperança de todo o mundo” –, podemos destacar o seguinte: a cana cresce onde há águas subterrâneas das quais se nutre. Sua condição tubular e oca ajuda a reter a água. No entanto, em um clima árido e de ventos ásperos, facilmente pode secar e descascar. O Senhor é consciente da situação difícil de João e, ao invés de recriminá-lo, quer levá-lo a um entendimento e experiência mais profundos de comunhão. Assim é com o pioneiro: Jesus oferece sua graça para que suas raízes se aprofundem e ele alcance um nível de comunhão com ele que não teria experimentado em seu país de origem!
Nos momentos de desânimo ou incertezas, João faz o certo – não permite que a dúvida o corroa, voltando-se ao Senhor para poder ouvir de novo seus votos, sua voz! Em tais circunstâncias, a voz do Senhor afirma que “fará que a justiça seja vitoriosa”, e culmina com uma declaração sobre as nações: “E seu nome será a esperança de todo o mundo” (Mt 12.21). Além de não quebrar a cana descascada, o Senhor a utiliza para difundir sua glória até os confins da terra!
2. “Afinal, o que esperavam ver?…”
“…Um homem vestido de roupas caras? Não, quem veste roupas caras mora em palácios” (Mt 11.8). É evidente que roupas finas não são apropriadas para o deserto, assim como não se permanece em um palácio com roupas de safari. Se vamos ministrar no deserto (como era o caso de João), necessitamos nos equipar adequadamente para poder ser “uma voz que clama no deserto” (Mt 3.3).
Na prática, isso significa, entre outras coisas:
- Buscar um nível de vida modesto (nesse ponto nós, latinos, em geral não enfrentamos muita dificuldade);
- Aprender a não fazer queixas do “deserto”, mas encontrar “poços”, isto é, motivos de gratidão;
- Alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram (sentem-se ultrajados por medidas do Ocidente “cristão”, por exemplo);
- Não esperar aplausos, faça o que fizer.
Quanto ao último ponto, vele lembrar que tanto a austeridade de João – “Quando João apareceu, não costumava comer nem beber em público, e vocês disseram: ‘Está possuído por demônio’” (Mt 11.18) – como a prodigalidade de Jesus – “O Filho do Homem, por sua vez, come e bebe, e vocês dizem: ‘É comilão e beberrão, amigo de cobradores de impostos e pecadores’” (Mt 11.19) – foram reprovadas. E Jesus abandonou as glórias do céu para se aproximar do povo, ser alguém acessível. Quanto mais nós! Nunca teremos a aprovação de todos, por mais que queiramos nos adaptar. Menos ainda se esse mundo nos vir como um intruso que “ameaça” seu status quo. O deserto, de fato, não é para os de ânimo fraco.
As roupas finas, de todo modo, deterioram-se facilmente no deserto. Por isso, são necessárias roupas grossas, como pelo de camelo, e alimentos como gafanhoto e mel. Tais características e hábitos de João Batista descritos nas Escrituras remetiam para os que caracterizavam a vida dos nazireus (pessoas com voto especial de consagração a Deus), a saber:
- Não comer do fruto da videira – símbolo de uma transitoriedade não sedentária;
- Não cortar o cabelo – símbolo da dependência de Deus para a unção;
- Não tocar um morto, nem mesmo se aproximar, mesmo que seja um familiar – símbolo do discípulo que antepõe seu Senhor a qualquer outro vínculo.
Para um obreiro transcultural, a verdadeira adaptação ao novo contexto implica não sentir falta do país de origem, das formas de sua igreja, das características de sua denominação… Isso é possível não por métodos humanos, estratégias da carne ou circunstâncias do momento, depende de uma convicção clara do chamado do Senhor. É necessário encontrar um equilíbrio entre as exigências da obra e as da família, e não se render diante dos desafios ou provas que os seus posam enfrentar.
Existe um ditado entre nossos irmãos turcos que tristemente define o que vivenciaram com muitos obreiros estrangeiros: “A torrente passa, mas as pedras ficam no leito”. Ou seja, muitos obreiros passam como torrente sem deixar rastro, mas os nativos são os que permanecem e, inclusive, arcam às vezes com as consequências dos erros cometidos pelos estrangeiros. Onde estão os obreiros dispostos a permanecer e não ser torrente? Essa é contextualização necessária!
Há algo mais que devemos extrair desse ensino do Senhor: não podemos promover o que se conhece por teologia da prosperidade. Por quê? Os novos convertidos enfrentarão adversidade, perseguição, provas, desânimo… Como sugeriremos roupas grossas se nós mesmos não as vestimos? Tudo que, em princípio, pode soar como desvantagem pode se converter em vantagem: dificuldades econômicas, necessidade de um segundo trabalho como complemento do sustento para se obter residência, problemas com vistos, falta de uma equipe consolidada… Não que tenhamos de nos conformar frente às carências, mas devemos ter consciência de que tudo isso torna nossa mensagem mais “crível”, deixa-nos mais próximos de nossos interlocutores interessados nas boas-novas. Se eles estão em situação financeira difícil, também não somos ricos; se buscam visto para países desenvolvidos, o nosso está tão ou mais difícil de ser obtido; se choram porque não têm trabalho, nossas palavras de ânimo são genuínas e nossas orações por provisão, temperadas pela experiência. Porque estes são alguns dos maiores obstáculos que enfrenta o evangelho nestes países: (1) expectativas, (2) mimetismo e (3) visceralidade. O novo convertido, em geral:
- Espera uma vida mais fácil, mas Cristo nos prova e exige contentamento;
- Busca simplesmente repetir ou recitar de cabeça (como nas rezas de criança), mas Jesus exige verdadeira piedade: negação do eu, disciplina devocional e serviço altruísta;
- Vive à mercê do vaivém de suas emoções e temperamento, mas o Senhor demanda temperança, domínio próprio e firmeza em meio às adversidades.
De quem aprenderão tudo isso se não veem reproduzido em nós? Temos de ajudá-los não a desejar a vida de palácio, mas a saber sobreviver no deserto!
3. “Acaso procuravam um profeta? Sim, ele é mais que profeta” (Mt 11.9)
Caminhando para uma conclusão, a partir dessa terceira pergunta de Jesus a respeito de João Batista, vemos que o importante não é o que pensamos que somos, mas sim quem o Senhor diz que somos. O povo não via um profeta desde os tempos de Malaquias, 400 anos antes. Mas o que haviam encontrado em João Batista? Apesar de João ter tido uma grande repercussão popular no início, quando Jesus procuniou tais palavras, sua fama e futuro já não eram muito prósperos, por assim dizer. Mas Jesus declara que “ele é mais que profeta”.
Para nós latinos, hispanos ou ibero-americanos, em geral a autoestima não é o que temos de mais alto, – ainda que, cada vez mais, entre nós vemos os que se autoproclamam profetas, apóstolos, patriarcas, para não dizer quase papas. Mas não costumam ser esses os que saem aos campos. Também termos como palavra profética, profeta ou profetizar, de tanto serem mastigados como chiclete, perderam muito de seu sabor, significado e força. Mas esse é o título que o Senhor dá a João Batista, que é o protótipo do pioneiro.
Qual é o espírito da profecia? “… o testemunho a respeito de Jesus é a essência da mensagem revelada aos profetas” (Ap 19.10). Dar testemunho de Jesus! Alguns – no AT –, antecipando sua vinda; outros – no NT –, anunciando sua presença entre nós. De novo: trata-se de dar testemunho de Jesus, não da cristandade. Não representamos nenhuma potência mundial (ou as que assim se proclamam). Nem sequer representamos, como latinos, a religião majoritária de nossos países (ainda que se fale de um avivamento na América Latina). Tudo isso contribui para sermos mais profetas de Cristo e “mais que profetas” para Cristo! Contudo, é necessário entender de forma correta o que isso significa.
Prophetés (grego) é o que proclama (pheme = palavra) adiante (pro). É o pioneiro, alguém que abre o caminho por onde passarão aqueles que o seguem. O latino que sai às nações é pioneiro porque é praticamente a primeira geração. É pioneiro porque costuma ir a países onde quase não há testemunho. É pioneiro porque sai, apesar da falta de um apoio sustentado. Mas, acima de tudo, é pioneiro porque assume o papel que o Senhor quer dar a ele ou ela e a todos os que escutam este seu chamado: de preparar a visitação de Jesus aos povos do mundo!
(Evidentemente, o fato de a obra feita pelos latinos, de forma geral, ser incipiente ou desprovida de muitos recursos não é desculpa para improvisar. Não devemos primeiro saltar na piscina para depois ver se se está cheia. Mas esse seria tema para outro artigo…)
Todos os profetas do AT anunciaram a vinda do Senhor, mas um só a presenciou: João Batista. Se sabemos assumir a tarefa que o Senhor nos dá, teremos o privilégio de ser testemunhas de sua irrupção nos povos que ministramos! Qual é, pois, a tarefa? Ser “mensageiros diante” de Jesus.
Devemos ser aqueles que preparam o palco, não os atores principais – “Ele deve se tornar cada vez maior, e eu, cada vez menor” (Jo 3.30). Temos de evitar os erros que tanto criticamos, atentando para não acabarmos sendo mais papistas que o papa. Preste atenção se você:
- Quer controlar tudo;
- Considera-se o dono da obra;
- Ignora diretrizes de sua equipe, agência, igreja enviadora, denominação…;
- Não confia nos nativos;
- Busca para os filhos melhores condições que as do país de acolhida (saúde, escola etc.)
- Ostenta ar de superioridade;
- Despreza a cultura local;
- Demoniza o que é diferente.
O que o mundo necessita é conhecer a Jesus, não nossa cultura ou nossa denominação. Assim, ser profeta é aprender a refletir Jesus em nossas vidas, e refletir apenas Cristo! Como? Saindo das trincheiras teológicas, metodológicas ou etnológicas para nos introduzirmos em todos os círculos. Só que não com a finalidade de imitá-los, mas para trazer conosco a luz de Jesus: de seu amor, de sua proximidade para com todos, de sua mensagem de salvação.
Podemos e devemos proclamar a verdade de Jesus sem ofender, mas também sem fazer concessões. Aproximarmo-nos das pessoas não as vendo como simples “contatos” (i.e., “presas”), mas como o próximo. E, definitivamente, trazê-las aos pés de Cristo para, em seguida, prepará-las e equipá-las para que sejam, elas próprias, as que alcançarão a sua própria nação.
Esse tipo de pioneiro é o que “preparará teu caminho à tua frente!” (Mt 11.10). A visitação do Senhor ocorrerá na medida em que o representemos e não a nós mesmos. Talvez aconteça nos tempos desta geração, talvez nos tempos da próxima, mas ocorrerá! E o profeta é o que não desiste e continua empenhado.
Finalizo com o seguinte ditado popular turco. Perguntaram a uma formiga que perambulava longe de seu formigueiro: “Aonde vai assim tão decidida?”. “Vou à Meca”, respondeu ela. “Mas se Meca é tão longe e você, tão pequenina, nunca chegará”, responderam. “Não importa”, disse ela, “se for necessário, morrerei empenhada”.
O texto foi extraído do livro Recomponiendo La Missión Con Jesús – Reflexiones sobre la misión, sobre la tarea global y sus implicaciones para el mundo [Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo], publicado na Espanha por Impresiones em 2018. Ele foi escrito com base na palestra apresentada na instituição de ensino SETECA, na Guatemala, em abril de 2010. O Martureo recebeu autorização do autor para traduzi-lo e publicá-lo. Tradução: Lucas F. R. Juknevicius. Edição: Fernanda Schimenes.
Sobre o autor
Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona, e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.
[1] As citações bíblicas foram extraídas da Nova Versão Transformadora, salvo quando especificado.