Alá é Deus? – Parte 6
Artigos escritos a partir da polêmica iniciada na Wheaton College sobre se muçulmanos e cristãos adoram o mesmo Deus.
A seguir estão os ensaios 20 a 23 de um total de 23 que a EMS – Evangelical Missiological Society [Sociedade Missiológica Evangélica] publicou como uma edição especial do Occasional Bulletin em 2016.
Textos 1 a 3 disponíveis aqui.
Textos 4 a 7 disponíveis aqui.
Textos 8 a 11 disponíveis aqui.
Textos 12 a 15 disponíveis aqui.
Textos 16 a 19 disponíveis aqui.
Uma perspectiva ortodoxa oriental
Edward Rommen
Para elaborar sobre as implicações missiológicas de negar ou aceitar a ideia de que cristãos e muçulmanos adoram o mesmo Deus, precisamos primeiro considerar as condições teológicas sob as quais a afirmação ou negação dessa equação podem ou devem ser feitas.
1. Contexto teológico
A teologia ortodoxa oriental defende que Deus existe, sem dependência de nada ou de ninguém, como uma natureza (essência) em três pessoas, isto é, como Pai, Filho e Espírito Santo. Ainda que a essência de Deus seja incompreensível, ele se revelou criando o mundo e se manifestando no mundo, que é mantido por sua constante provisão. Além disso, esse Deus pessoal se replicou expressamente na criação dos seres humanos à sua própria imagem, soprando-lhes o fôlego divino pelo qual todos eles se tornam pessoas com capacidade de conhecer e de se relacionar pessoalmente com Deus. Desafortunadamente, essa habilidade foi prejudicada pelo pecado, e a humanidade desenvolveu um número enorme de percepções errôneas, distorcidas e até mesmo diabolicamente inspiradas do Deus único. Não obstante, o desejo de Deus de se relacionar pessoalmente com suas criaturas e corrigi-las (salvá-las do pecado e da morte) o fez:
a) estabelecer uma série de alianças (com Adão, Noé, Abraão), sendo que cada uma delas trouxe um crescimento no conhecimento específico de Deus;
b) enviar o Filho (o Verbo) ao mundo na forma de um ser humano para estabelecer pessoalmente uma aliança nova e definitiva.
Ao assim fazer, ele aumentou drasticamente a especificidade do conhecimento disponível de Deus. Ver Cristo é ver o Pai. Logo, Cristo se torna o padrão por meio do qual todas as representações de Deus e sua salvífica são mensuradas. Depois da ascensão de Cristo, o Pai enviou o Espírito Santo ao mundo para validar a verdade da revelação de Cristo, para continuamente mediar sua presença constante entre nós, para convencer os seres humanos de sua pecaminosidade, e para levá-los ao Salvador. Estas afirmações teológicas falam a favor e contra a equação.
1.1 Condições para permitir a equação
1.1.1 Todo ser humano foi criado à imagem de Deus, que nunca é perdida, não importa quão pecador ele seja ou quão distorcido seja seu entendimento de Deus. “A despeito do que as pessoas creiam ou não em diferentes épocas, há um Deus e um Deus somente”.[1] Na medida em que a pessoa está sinceramente buscando a Deus, o objeto dessa busca deve ser, e só pode ser, o único Deus verdadeiro, pois não existem outros deuses.
1.1.2 Todo ser humano foi criado à imagem de Deus, que nunca é perdida, não importa quão pecador ele seja ou quão distorcido seja seu entendimento de Deus. Essa origem comum também dá a todos a capacidade de perceber a Deus e expressar isso na forma de alguma religião. Por essa razão, cremos que o que todo indivíduo mais deseja é um relacionamento com Deus, e que ele tem a capacidade de ter um pouco desse conhecimento, ainda que tênue, por meio da razão.[2] Conquanto as alianças anteriores não contivessem a plenitude do conhecimento de Deus concedido pela aliança em Cristo, se as pessoas agirem em fé ao que de fato conhecem, então elas estarão respondendo ao único Deus verdadeiro.
1.2 Condições para rejeitar a equação
Mesmo que nossa avaliação dos objetos de culto das outras religiões precise ser bastante diferenciada, em uma análise final ela deve ter como base o conhecimento de Deus providenciado por Cristo na encarnação. Suspeito que, no que diz respeito à prática das massas, o objeto do culto muçulmano não é de fato o único Deus verdadeiro do ensino cristão.
1.2.1 Se, como no caso do islã, o Deus de qualquer outra religião não pode ser concebido como existindo em três pessoas, então ele deve ser declarado como sendo fundamentalmente diferente do entendimento cristão. O Alá não tripostático[3] não é o Deus da fé cristã.
1.2.2 Se a teologia de qualquer outra religião, inclusive o islã, nega a divindade do Filho encarnado, então essa religião não está adorando o mesmo Deus. Se Alá não gerou o Filho, e se o Espírito Santo não procede de Alá, então ele não é o Deus da fé cristã.
1.2.3 Se a soteriologia de qualquer outra religião, tal como o islã, não admite a morte sacrificial e expiatória e a ressurreição de Cristo, então essa religião não pode adorar o mesmo Deus que os cristãos ortodoxos.
2. Implicações missiológicas
2.1 Se as condições teológicas nos permitem aceitar alguma forma de equação, então devemos admitir a universalidade da religiosidade humana como uma faculdade concedida por Deus. Isso significa tratar os membros de outro sistema de crenças com respeito e dignidade, e buscar uma base comum para diálogo, se possível. Se assumimos que o indivíduo não está em posse da plenitude do conhecimento de Deus tal como concedido por Cristo, mas adquiriu uma centelha da verdade divina, e está buscando sinceramente com base naquela fagulha, então nossa tarefa primária se torna a de afirmação, apoio e instrução no intuito de preencher pacientemente as informações faltantes do sistema de crenças daquele determinado indivíduo.
2.2 Se as condições teológicas exigem que neguemos a equação, então nossa avaliação do sistemas de crenças unificado e institucionalizado terá de ser crítica. Nesse caso, somos chamados a falar a verdade em amor, a expor as percepções errôneas, a corrigir e a resistir, a desafiar os falsos deuses que existem apenas nos pensamentos, emoções e práticas dos que não adoram o único Deus verdadeiro. Isso pode provocar confrontação, e pode ser que sejamos chamados a sofrer por causa de Cristo.
3. Conclusão
Parece-me que a resposta à pergunta se muçulmanos e cristãos adoram o mesmo Deus é, ao mesmo tempo, sim e não, dependendo das condições teológicas que emolduram a discussão. Em qualquer caso, o ponto final missiológico está no fato de que a origem divina de cada indivíduo “não é perdida, mesmo se suas concepções e crenças religiosas estão erradas, isso porque todo ser humano foi criado ‘à imagem de Deus’, e é, por conseguinte, nosso irmão e nossa irmã”.[4]
Edward Romen é um destacado missiólogo ortodoxo oriental. Entre suas publicações, destaca-se o livro Come and See: An Eastern Orthodox Perspective on Contextualization (Pasadena: William Carey Library, 2013).
Quais são as implicações missiológicas de afirmar ou negar que muçulmanos e cristãos adoram o mesmo Deus?
Lamin Sanneh
Se a questão a respeito de se cristãos e muçulmanos adoram o mesmo Deus parece um pouco confusa, deve ser porque a questão não tem resposta (o que parece duvidoso), ou a resposta é confusa (o que é possível). Se olhamos para como os cristãos e muçulmanos praticam sua fé, está claro que o mais distintivo a respeito deles é que suas respectivas formas de culto são muito diferentes. Considerando isso, seria obstinado ao extremo argumentar que, se admitimos a crença em um Deus, as diferenças entre cristãos e muçulmanos são mal orientadas e ilegítimas. Seria uma conclusão estranha, pois faria da crença em um Deus a justificativa para desconsiderar a diferença na adoração a Deus. A igreja e a mesquita seriam vistas como barreiras para um verdadeiro conhecimento de Deus para o qual a causa da convergência intercredal seria suficiente. Essa maneira de aproximar as relações entre cristãos e muçulmanos tem sido uma visão tipicamente ocidental, mas, instrutivamente, não é uma visão ocidental padrão.
Muitos anos atrás, quando eu era um jovem estudante de graduação na Inglaterra, eu seguia John Hick enquanto ele batia na porta dos imigrantes no bairro muçulmano da cidade de Birmingham em sua campanha da “All Faiths For One Race” (AFFOR) [“Todos os credos para uma raça”], organização que ele fundou e dirigiu. Hick era não apenas meu professor, mas também um amigo a quem eu admirava muito. Os homens muçulmanos o recebiam calorosamente, enquanto as mulheres permaneciam no interior das casas. Hick tinha uma posição acadêmica importante, com reputação internacional, e estava reassegurando para os muçulmanos recém-chegados no país que ele lhes dava apoio público. Isso foi não muito antes da campanha em prol do avanço do entendimento intercredal, cujo intuito era produzir frutos tangíveis: subscrições para [a construção de] uma grande mesquita e um centro educacional, acompanhadas por uma chamado para uma reforma educacional, incluindo a introdução do ensino do islã no currículo escolar. Seria questão de tempo para os muçulmanos requererem assentos nas mesas diretoras das escolas com força para indicar diretores. Em um curto período, os muçulmanos deram grandes passos em sua busca por reconhecimento e influência. Ainda que o número de muçulmanos fosse relativamente pequeno, eles conseguiram muita influência, graças a apoiadores como John Hick, que conseguiu atenção nacional. Políticos locais também começaram a levar a sério a presença muçulmana – os votos deles seriam importantes no fim das contas.
O esforço intercredal em si parece louvável, até mesmo autoevidente, e nele havia pouco que conflitasse com a agenda dos muçulmanos em sua luta por integração na vida britânica. Na verdade, ele acrescentou ímpeto a uma campanha coordenada por muçulmanos na região de Midlands e arredores. Entretanto, impressionou-me o fato de o despojamento que John Hick disse ser necessário para livrar o cristianismo de sua obsessão pelo “mito do Deus encarnado”[5] ser a última coisa que líderes muçulmanos pensavam em fazer em relação ao islã. Para Hick, a questão do culto cristão era uma distração da tarefa elevada da crença em um Deus refinada nos ácidos da abstração teológica. Segundo esse pensamento, a religião é um processo cognitivo, e a vida lhe é incidental, produzindo uma dicotomia que vê Deus como um ser que tem de prestar contas aos humanos, e não os humanos a Deus. Eu me lembro de um líder muçulmano da comissão responsável pelo projeto de construção da mesquita (então em andamento) dizendo a um grupo de oficiais religiosos muçulmanos que o apoio da parte de aliados britânicos não muçulmanos era necessário ao movimento para o desenvolvimento da vida dos muçulmanos na Inglaterra, mas que isso não interferiria no que o islã alega como sendo verdade. O apoio aos muçulmanos não deveria ser ao preço de trair o islã. Como restituição cristã, o esforço intercredal deveria ser distinto da exigência por comprometimento mútuo.
Algo mais me impressionou [incomodou]: a unilateralidade das relações intercredais não parecia incomodar Hick, e eu não sei se isso foi porque ele pensava estar simplesmente lançando as bases para um futuro entendimento no qual, como ele, os muçulmanos abraçariam um despojamento teológico do núcleo do islã análogo ao que ele propusera com o cristianismo, adotando assim um conceito do Alcorão que rejeitasse a ideia de seu status infalível e tratando, dessa forma, suas escrituras como uma construção histórica. Os muçulmanos perceberam que Hick estava se posicionando de maneira leve quanto à noção de religião enquanto revelação divina, e o usaram para conseguir concessões que eles não teriam de, em reciprocidade, fazer.
Dessa maneira, não houve nenhuma debandada muçulmana geral ou local para acolher o chamado ao relativismo teológico, e isso leva-nos a refletir sobre a razão de porque foi assim. Neste ponto, a questão de se todos adoramos ao mesmo Deus deveria ser instrutiva. O senso comum simples nos diz que, para os muçulmanos, o culto tal como constituído no salat[6] é absolutamente exclusivista. Os não muçulmanos enquanto tais não podem ser admitidos no grupo dos adoradores, não porque os muçulmanos não sejam hospitaleiros ou sejam preconceituosos, mas porque isso exigiria que eles abandonassem a base que os define como muçulmanos. Tanto no senso específico de participação na prática litúrgica como no sentido geral de submissão a Deus, a adoração permanece fundamental para a raison d’etre [razão de ser] do islã, definindo sua missão de fazer e manter convertidos como a suprema obrigação da fé. Isso também se aplica, de certa forma, às tradições ortodoxas da Grécia, Rússia e Etiópia, para citar exemplos aleatórios. Muçulmanos reconheceriam algo de sua visão de culto nessas tradições. Mesmo para igrejas com baixa tradição eclesiástica, seria difícil ver como os muçulmanos cumpririam as obrigações do salat simplesmente por participar de um ritual de unidade com boa vontade – uma participação assim seria considerada por muçulmanos de mentalidade liberal como sendo apenas um excesso. Por essas razões, a vida de culto [adoração] de muçulmanos e cristãos não poderia ser mais importante e mais distinta.
Sempre me perguntei se Hick repensaria sua posição teológica se ele se colocasse na posição de um muçulmano, que vê o compromisso de fé a partir de um prisma diferente. A questão, no caso, é se o argumento que a acomodação intercredal exige –
abandono de alegações quanto à verdade religiosa – seria aceito pelos muçulmanos. Os muçulmanos coerentemente têm rejeitado esse argumento porque a verdade [comum] como uma regra de convivência com outros seria dispensável se fosse exigido que permanecessem juntos por outras razões, fato do qual Hick deve estar ciente. Nesse caso, ele alimentou uma condenação indizível da recusa muçulmana de conciliação com sua abertura teológica? É difícil, agora, entender como reconciliar sua missão intercredal com base em sua retratação do ensino cristão ortodoxo enquanto os muçulmanos permanecem com fidelidade à ortodoxia corânica, ou como ele poderia cumprir essa missão se um desrespeito silencioso a acompanha. Os méritos intelectuais do caso para a acomodação intercredal, portanto, parecem, na melhor das hipóteses, ilusórios, é por isso que eu considero esta discussão tão sem sentido. Se o progresso intercredal deve acontecer, não pode ser feito como uma causa unilateral de um lado do relacionamento. O reconhecimento da diferença não é evidência de preconceito ou intransigência; é evidência de honestidade e respeito mútuos. Somente uma solidariedade cruel pode exigir o repúdio da integridade de nossas respectivas tradições e nos deixar à mercê das excentricidades da moda do momento.
Sobre o autor
Lamin Sanneh é o titular da cadeira D. Willis James de Missões e Cristianismo Mundial na Yale Divinity School [Faculdade de Teologia de Yale] e professor de História na Universidade de Yale.
Muçulmanos e cristãos adorando o único Deus verdadeiro: implicações missionais
John Jay Travis
Juntamente com minha família, vivi a maior parte da minha vida adulta com laços próximos com vizinhos muçulmanos na Ásia. Com base em minhas amplas experiências de conversar com centenas de muçulmanos a respeito de Deus, estando envolvido em traduzir a Bíblia para leitores muçulmanos e em orar com muçulmanos por cura, percebo três grandes implicações missiológicas se dizemos aos muçulmanos que eles e nós estamos adorando um Deus diferente.
- Isso imediatamente fecha a porta para a comunicação das boas novas de Jesus, ferindo dessa maneira a causa de Cristo.
- Isso faz com que seja praticamente impossível ler as Escrituras com os muçulmanos, pois um percentual significativo de Bíblias utilizadas em regiões predominantemente muçulmanas em todo o mundo usa a palavra Alá.
- Isso faz com que seja muito difícil orar com muçulmanos pela cura de seus corações e corpos, dois elementos extremamente cruciais de nosso testemunho centrado em Cristo.
1 – Ao dizer aos muçulmanos que eles e nós adoramos a diferentes deuses, uma importante porta de comunicação é imediatamente fechada, e nosso testemunho de Cristo, assim, é prejudicado. Em primeiro lugar, precisamos estar conscientes do que os muçulmanos querem dizer quando usam a palavra Alá. Ainda que muçulmanos e cristãos tenham muitos conceitos diferentes a respeito de Deus, eles estão falando a respeito do mesmo Deus. Considere o seguinte.
Os muçulmanos veem Alá como o único Deus verdadeiro, criador do céu e da terra, aquele que falou na Bíblia e é adorado por judeus e cristãos. Quando leem João 17.3, eles dizem: “Sim, nós adoramos ao ‘único Deus verdadeiro’, aquele que enviou Jesus Cristo”. De acordo com o ensino muçulmano, Alá criou Adão e Eva, e guiou Noé, Abraão, Isaque, Jacó, Ismael, José, Moisés, Jó, Salomão, Davi, Elias, João Batista e Jesus em suas missões terrenas. Os muçulmanos acreditam que foi Alá quem inspirou divinamente as escrituras dos judeus e dos cristãos, com menção específica da Torá (Taurat) de Moisés, dos Salmos (Zabur) de Davi e do Evangelho (Injil) de Jesus. Ainda que nem todos os ensinamentos muçulmanos a respeito desses personagens bíblicos estejam inteiramente alinhados com as compreensões credais[7] cristãs, as similaridades são mais que apenas impressionantes – elas são prova de que quando os muçulmanos falam de Alá estão se referindo ao Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Essa crença comum em Deus, nos profetas e nas Escrituras é uma grande vantagem para nosso testemunho aos muçulmanos, comparado com nosso testemunho a budistas, hinduístas e animistas.
Uma implicação missiológica disso é que não devemos ter foco em rejeitar o nome de Deus que eles usam, antes, devemos afirmar que estamos ambos buscando o mesmo Deus, o criador dos céus e da terra, e depois ter foco em estudarmos as Escrituras juntos, particularmente no que tange ao que dele é revelado na pessoa de Jesus Cristo. Uma muçulmana que conhecemos veio a seguir Jesus depois de anos de estudo da Bíblia. Hoje, como seguidora de Jesus e uma evangelista muito capacitada, nós com frequência a ouvimos dizer: “Meu povo sempre teve Deus (Alá), o problema é que eles estavam sem um Salvador! Agora, Alhamdulilah [Glória a Deus!], por intermédio de Jesus, eu e meu povo temos vida eterna, e agora sabemos a respeito do Deus a quem sempre clamamos”.[8]
2 – Dizer aos muçulmanos que eles e nós adoramos a diferentes deuses faz com que seja quase impossível lançar mão das dezenas de traduções da Bíblia disponíveis que usam a palavra Alá. Tal como o relato acima mencionado indica, ler as Escrituras com os muçulmanos é essencial para nosso testemunho centrado em Cristo. O estudo bíblico indutivo é uma maneira-chave para ajudar muçulmanos a descobrir Jesus. Muitos muçulmanos já ouviram falar do Taurat, do Zabur e do Injil, mas nunca os abriram para ler.
Muitas traduções da Bíblia ao longo dos séculos usaram o nome Alá para Deus. Todas as traduções em árabe de antes do novo século usaram Alá, e esse nome ainda está nos lábios de milhões de cristãos falantes de árabe hoje. De fato, os cristãos de língua árabe já usavam o nome Alá séculos antes do surgimento do islã, e assim o fizeram os judeus falantes de árabe, dizendo que essa é a forma árabe da palavra aramaica para Deus (é interessante observar que, quando judeus traduziram o Antigo Testamento do hebraico para o árabe no décimo século, usaram o nome Alá). Esses fatos indicam que Alá pode ser visto como simplesmente a palavra comum para Deus na língua árabe. De modo semelhante, traduções em indonésio e em malaio, começando com as primeiras porções da Bíblia em malaio no início dos anos de 1600, sempre usaram a palavra Alá.
Muitas línguas menores, mas igualmente importantes, que têm historicamente utilizado a palavra Alá são o javanês (mais de 90 milhões de falantes), sundanês[9] (mais de 30 milhões de falantes), hausa[10], bambara[11], fulfulde[12] e malinke[13] [14]. Nos últimos 25 anos, inúmeras novas traduções da Bíblia usando Alá foram produzidas em todo o mundo muçulmano. Em alguns casos, tais como urdu[15], turco e bengali[16], algumas traduções não usam Alá, outras, usam. Tenho colecionado muitas dessas Bíblias, e, ainda que eu não tenha uma conta exata, calculo que cerca de 30 línguas mundiais, geralmente em áreas com populações majoritariamente muçulmanas, usam o nome Alá. Essas traduções usam o nome Alá porque essa é a palavra comum para Deus nessas línguas, geralmente porque perderam uma palavra para Deus que fosse anterior ao surgimento do islã. Entretanto, há outras línguas faladas por muçulmanos que têm palavras nativas locais para Deus, como a palavra Khoda, usada em partes do Irã e da Ásia Central.
A palavra Alá é usada por cristãos em suas Bíblias em muitas línguas da Indonésia, em árabe, em muitas línguas túrquicas e em muitas partes da África. Isso deveria nos fazer dar uma pausa antes de dizermos aos muçulmanos que aquele a quem chamam de Alá não é realmente o Deus dos judeus e dos cristãos.
3 – Dizer aos muçulmanos que eles e nós adoramos a um Deus diferente faz com que seja muito difícil orar com muçulmanos pela cura de seus corações e corpos, duas partes extremamente cruciais de nosso testemunho centrado em Cristo.
Minha experiência mostra que uma parte-chave de nosso testemunho, assim como aconteceu com Jesus e com a igreja primitiva, é orar com e pelos feridos no corpo, na alma e no espírito. Tenho orado por cura física, cura interior e libertação com muitos muçulmanos em cidades, aldeias e, geralmente, em hospitais. Os muçulmanos automaticamente presumem que estamos orando ao mesmo Deus que eles, pois nós somos cristãos, e há somente um Deus verdadeiro (e seria blasfêmia para um muçulmano orar a qualquer outra divindade). Se eles me perguntarem se eu lhes garanto que eles estão orando para o Deus Todo Poderoso, eu então começo a falar a eles de Jesus como aquele que cura, perguntando se eu posso orar em seu nome (ou com sua autoridade). Tenho tido o privilégio de orar por muçulmanos em numerosas partes do mundo muçulmano – na África, no Oriente Médio e na Ásia –, e apenas uma vez um muçulmano recusou minha oferta de orar a Deus em nome de Jesus. Entretanto, tendo uma porta aberta para orar com os muçulmanos, tudo começa com uma base comum: estamos orando ao mesmo único Deus verdadeiro.
Sobre o autor
John Jay Travis é missionário e professor assistente afiliado de Estudos Interculturais no Fuller Theological Seminary.
Uma resposta missiológica à declaração da professora Larycia A. Hawkins da Wheaton College que muçulmanos e cristãos adoram o mesmo Deus
Darrell Whiteman
O recente frenesi causado pela postagem da professora Larycia Hawkins, da Wheaton College, em seu Facebook, que “muçulmanos e cristãos adoram o mesmo Deus” revelou um imenso abismo nas diferentes maneiras de os cristãos interpretarem a declaração dela.
A reação pública a esse evento revela linhas defeituosas muito profundas em nosso entendimento da percepção de Deus revelada na Bíblia que muçulmanos e cristãos têm, e, de fato, do evangelho em si. Podemos usar esta oportunidade para parar e refletir sobre o que Hawkins, como uma seguidora de Cristo, escreveu a respeito das ações dela para mostrar apoio para muçulmanos perseguidos e marginalizados. Neste artigo, tentarei pontuar alguns princípios missiológicos que poderiam orientar nosso pensamento e moldar nossa resposta a essa situação volátil. A questão diante de nós é: quais são as implicações missiológicas de afirmar ou negar que cristãos e muçulmanos adoram o mesmo Deus?
A primeira implicação missiológica é que, se afirmamos que cristãos e muçulmanos (e judeus) adoram o mesmo Deus, somos coerentes como nossa fé monoteísta que afirma que há apenas um único Deus verdadeiro no universo. Não há um panteão de deuses, existe apenas um, e, por conseguinte, os muçulmanos estão corretos ao afirmar que há apenas um Deus verdadeiro. O nome que eles mais frequentemente[17] usam para esse único Deus verdadeiro é Alá, nome que tem sido usado por judeus e cristãos falantes de árabe séculos antes do surgimento do islã no século sétimo. A palavra árabe Alá é derivada das palavras para Deus em hebraico e em aramaico, dessa forma, etimologicamente a palavra “Alá” tem uma história mais nobre que a palavra “God” em inglês, que é derivada de um termo germânico para divindades pagãs.[18] Todos os muitos nomes para e os conceitos de Deus no mundo são os melhores esforços dos seres humanos para alcançar, para se conectar com e entender o sobrenatural. Sobre isso, os antropólogos seculares que negam a existência de Deus estão corretos quando asseveram que os seres humanos naturalmente têm uma tendência de imaginar deuses à sua própria imagem.
A declaração da professora Hawkins que muçulmanos e cristãos adoram o mesmo Deus afirma três verdades: (1) o monoteísmo, (2) uma visão elevada das Escrituras e (3) a afirmação que a criação à imagem de Deus, a imago dei, está em todas as pessoas criadas por Deus (At 17.22-31) e “o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles” (Rm 1.19, NVI). A implicação missiológica é que agora temos um ponto de partida para nos relacionarmos e construirmos relacionamentos com muçulmanos, a saber, nossa crença comum no Deus único, o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, que criou o universo, inspirou os profetas hebreus, e enviou o Messias.
Como missiólogo, gostaria de sugerir que os muçulmanos são nossos primos espirituais, afinal, nós e eles traçamos nossa linhagem espiritual até Abraão. Essa controvérsia atual é uma “rixa de família” na qual as emoções se exaltam porque cada qual acredita que é o seu lado que defende a verdade. Se pudéssemos entender que somos primos espirituais, teríamos uma chave para reduzir a animosidade e a tensão. Teríamos um ponto de partida para orar juntos, ler as Escrituras juntos, e compartilhar nossas jornadas de fé uns com os outros.
No entanto, afirmar o que temos em comum não significa que temos o mesmo conceito de quem Deus é. Podemos ser capazes de afirmar que adoramos a mesma entidade, o único verdadeiro criador do universo e criador de todos os povos, mas os cristãos se diferem dos muçulmanos e dos judeus em suas concepções de Deus. Para os cristãos, a concepção judaico-muçulmana de Deus é incompleta, porque o caráter de Deus é manifesto primariamente por intermédio de Deus, que é a Palavra encarnada (Jo 1.1-18), e cuja missão é reconciliar e redimir a criação de Deus (Jo 3.16). Essa é uma diferença significativa. Podemos adorar a mesma entidade como Deus, mas como concebemos Deus e sua natureza é algo diferente. Reconhecemos que cristãos, muçulmanos e judeus têm diferentes concepções de seu Deus, mas Deus permanece o mesmo único Deus, a despeito de como as pessoas o concebem. Mais que isso, cristãos adoram e louvam a Deus como revelado por nosso Senhor Jesus, o que muçulmanos e judeus não fazem. Ainda que os muçulmanos tenham uma visão elevada de Jesus, eles não reconhecem sua divindade, nem creem na finalidade do evangelho.
Outra implicação missiológica é que, se discordarmos da afirmação da professora Hawkins que muçulmanos e cristãos adoram o mesmo Deus eterno, que nunca muda, então é mais provável que nos relacionemos com os muçulmanos de maneira negativa, retratando-os como o inimigo de Deus e como nossos inimigos em potencial, acusando-os de adorar a um deus da lua, ou, pior ainda, a um demônio ou enganador. Infelizmente, muitos cristãos mal informados estão fazendo exatamente isso. Missiologicamente, essa concepção equivocada dos muçulmanos destrói qualquer ponte de entendimento mútuo que poderia suportar o peso do encontro do evangelho com os muçulmanos, e isso reduz nossa habilidade de discernir onde Deus já está atuando entre os muçulmanos.
Há muitos muçulmanos hoje no mundo que estão se tornando seguidores de Jesus depois de lerem os evangelhos, encontrando Jesus em um sonho ou uma visão, ou se encontrando com pessoas cujas vidas foram transformadas pelo evangelho e, por intermédio delas, estão experimentando o amor de Deus. Esses seguidores de Jesus não estão orando a um Deus diferente, eles continuam a orar ao mesmo Deus que eles sempre tiveram, mas agora com uma concepção diferente e um entendimento de quem Deus é enquanto eles experimentam o Espírito Santo em suas vidas e descobrem mais a respeito de Jesus nos evangelhos.
Sobre o autor
Darrell Whiteman é diretor executivo interino do Overseas Ministries Study Center [Centro de Estudos Missionários Internacionais] e editor interino do International Bulletin of Missionary Research [Boletim de Pesquisa Missionária Internacional].
[1] Anastasios, Facing the World: Orthodox Christian Essays on Global Concerns (Crestwood, N. Y.: St. Vladimir’s Seminary Press, 2003), p. 139.
[2] Edward Rommen, Christianity and the Religions: A Biblical Theology of World Religions. Evangelical Missiological Society Series (Pasadena: William Carey Library, 1995), p. 246-248.
[3] A palavra “tripostático” é um termo técnico de origem grega usado na teologia ortodoxa oriental para se referir à Trindade (N. do T.).
[4] Anastasos, Facing the World: Orthodox Christian Essays on Global Concerns, p. 141-142.
[5] Lamin Sanneh faz referência a um livro editado por John Hick com o título The Myth of Incarnate God [O mito do Deus encarnado], no qual ele apresenta a encarnação como metáfora. (N. do T.)
[6] Salat: cinco orações públicas que cada muçulmano deve realizar diariamente voltado para Meca (N. do T.).
[7] A diferença mais óbvia é que os muçulmanos, assim como os judeus, não veem a Deus como Pai, Filho e Espírito.
[8] O comentário dela faz lembrar João 17.3: “Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”.
[9] O sundanês é a língua falada na Ilha de Java, Indonésia (N. do T.).
[10] O hausa é uma língua falada em regiões da Nigéria e do Níger, na África Ocidental (N. do T.).
[11] O bambara é a língua falada pelo povo de mesmo nome, no Mali, na África (N. do T.).
[12] O fulfulde, também conhecido como fula ou fulani, é uma língua falada pelo povo fula (ou fulani) em regiões da África Ocidental (Camarões e Senegal) e até em algumas regiões do Leste da África (Sudão) (N. do T.).
[13] O malinke é uma língua falada por povos da África Ocidental em países como Libéria, Mali, Libéria, Senegal, Serra Leoa e Costa do Marfim (N. do T.).
[14] Consultar o artigo “Allah in Translations of the Bible” [“Alá em traduções da Bíblia”], publicado originalmente em The Bible Translator: Technical Papers, Vol.. 52:3 (July 2001), e republicado em International Journal of Frontier Missiology (23:34, Winter 2006), do consultor de traduções da UBS (United Bible Societies), Kenneth Thomas.
[15] O urdu é uma língua baseada no árabe, no turco e no persa falada no Paquistão (N. do T.).
[16] O bengali é uma língua falada no subcontinente indiano, no Bangladesh e em partes da Índia (N. do T.).
[17] A tradição islâmica fala que há 99 nomes de Deus no Alcorão. Mas o mais frequentemente usado é de fato Alá (N. do T.).
[18] O mesmo ocorre com a palavra “Deus” em português, derivada de uma palavra latina usada pelos antigos romanos para se referir às suas divindades (N. do T.).