A tarefa global: vale deixar 99 ovelhas para ir atrás de uma?

Hoje, há eunucos ignorados pela igreja como em Atos 8

Carlos Madrigal Mir

Na tarefa global, o importante geralmente passa despercebido. Em Atos dos Apóstolos, há uma história que revela os elementos básicos da evangelização das nações, e, de forma geral, ela parece apenas um relato anedótico para o leitor. Trata-se de Felipe e do eunuco. A passagem de Atos 8.26-35, muito conhecida, é, ao mesmo tempo, desconhecida.

De início, é o primeiro lugar em que o Espírito Santo se comunica de forma audível – “Então o Espírito Santo disse a Filipe: ‘Aproxime-se e acompanhe a carruagem’” (8.29)[1]. Por oito capítulos, no livro que, de acordo com vários estudiosos, bem poderia se chamar “Atos do Espírito Santo”, o protagonista principal – o Espírito Santo – guarda um sepulcral silêncio. Sendo assim, o que o moveu aqui a romper com seu mutismo? Desde que Jesus deu suas instruções aos seus, por meio do Espírito (1.2), não há nenhuma outra palavra pronunciada. Pouco antes, ele enviou um de seus emissários habituais – “Um anjo do Senhor disse a Filipe: ‘Vá para o sul, para a estrada no deserto que liga Jerusalém a Gaza’” (8.26). Mas, quando avista um viajante, o Espírito toma a palavra e pontua… Parece dizer: “Veja, não deixe escapar” (8.29). É como se aqui fosse aplicada a máxima de Napoleão: “Se quer que algo seja bem-feito, faça você mesmo”. O que é tão importante que o Espírito não relega a seus subalternos?

Nessa passagem, encontramos de imediato:

  • A primeira vez que o Espírito fala!
  • A primeira vez que se converte um gentil!
  • A primeira vez que o evangelho chega a outro continente!

Mas ainda há mais…

O Espírito não sentiu a necessidade de falar no avivamento que ocorreu pouco antes entre os samaritanos, conhecedores e seguidores da Torá, mas considerados “no meio do caminho” entre judeus e gentios. Não viu necessidade em fazer ouvir sua voz a Filipe frente a milhares, mas mostra um especial interesse por esse único viajante de regresso a seu país. Para ele, uma só ovelha buscando seu caminho de volta ao lar celestial é mais importante que as 99 ou as 999, ou que uma megaigreja (e veremos como a Bíblia corrobora isso). O eunuco era uma pessoa que buscava ao Senhor. Mesmo sendo um alto dignatário, sua razão para vir por 2 mil quilômetros ao sul e chegar até Jerusalém era que “tinha ido a Jerusalém para participar da adoração” (8.27). Desse modo, sabia do Deus único, e amava esse Deus único. Mais do que isso, havia adquirido um exemplar das Escrituras. Em particular, do livro de Isaías.

Onde o eunuco havia ouvido falar do templo, e de onde veio tal afeição pelas Escrituras? Acaso os ecos dos tempos da rainha de Sabá, que visitou Salomão em seu esplendor, ainda ressoavam por essas latitudes? Ou talvez tenha sido em uma das muitas sinagogas espalhadas por todo o mundo, quem sabe na Etiópia? O caso é que, em sendo assim, teria se decepcionado. Imagine o panorama: o eunuco chamando à porta, e o encarregado judeu abrindo e se vendo cara a cara com um eunuco. O que lhe diria? Pois, se era um fiel observador da Lei, o mandaria às favas já que o Pentateuco, de forma explícita, diz: “Se um homem tiver os testículos esmagados ou o membro amputado, não terá permissão para entrar nas reuniões sagradas do Senhor” (Dt 23.1). O que é um eunuco senão “alguém castrado”? Como ousava esse imundo profanar o lugar do Senhor? Ainda assim, o eunuco não desistiu! Os desertos espirituais estão cheios desse tipo de buscadores esperando que você ou eu falemos do evangelho a eles. Não nos indicou o Espírito Santo ainda? Então, é que talvez ainda não saibamos escutar sua voz.

Alguns anos atrás, chegou um jovem à nossa igreja de Istambul cujo nome traduzido significa “Celestial”. Muito respeitoso e educado, disse que não quis chegar “de mãos vazias”, e que, por isso, antes de vir, tinha lido a Bíblia três vezes de capa a capa! E tinha três perguntas. Sem abrir as Escrituras, indagou – “No Salmo 15, lemos: ‘Quem pode ter acesso a teu santuário’, e o verso 5 diz: ‘Quem empresta dinheiro sem visar lucro e não aceita suborno para mentir sobre o inocente’. No entanto, na parábola dos talentos, o Senhor recrimina aquele que não deu seu capital aos banqueiros para obter juros. Por que é assim?”. Realmente havia lido as Escrituras! Há muitas outras histórias que contar sobre Celestial, mas este não é o momento. Basta dizer que, se tivesse vivido na Etiópia naquela época, é do tipo de pessoa que a rainha teria posto como administrador de seus tesouros, como ao eunuco (8.27).

No entanto, o caso é que o eunuco deve ter chegado até o chamado Átrio dos Gentios porque lá era o único lugar onde os gentios poderiam indagar sobre a verdade de Deus. E possivelmente o lugar estava tão abarrotado de vendedores e cambistas que ninguém lhe deu atenção. Que irritante! De fato, por isso, em outra ocasião, o Senhor agarrou umas cordas, formou um chicote, e expulsou dali os comerciantes. Porque “Meu templo será chamado casa de oração, mas vocês o transformaram num esconderijo de ladrões!” (Mt 21.13; Mc 11.17). O problema principal não era que fizeram negócio, mas que fizeram no Átrio dos Gentios. E o negócio não era outro que prover os elementos necessários para a adoração no templo: pombas, cordeiros para o sacrifício, moedas para a oferenda… Podemos dizer que o povo de Deus estava tão extasiado com o louvor, as luzes, os cantos, a melodia, as orações, a atmosfera espiritual… que havia esquecido das nações! Quantas igrejas estão hoje tapando igualmente seu “Átrio dos gentios”? Se estão adorando, mas ignorando o chamado para as nações, não distam muito dos mercadores e cambistas do templo.

Agora, a pergunta de um milhão é a seguinte: por que o Espírito não guiou Filipe até o templo dois dias antes, em vez de enviá-lo dois dias depois ao deserto de Gaza? A Faixa de Gaza continua sendo hoje notícia por seus distúrbios. Nos tempos de Jesus, era também um desses lugares como o que se relata na Parábola do Bom Samaritano, cheio de assaltantes e perigos. Será que o Espírito está nos dizendo aqui que quer que sigamos para os desertos espirituais e lugares perigosos?

A estratégia de Deus no Antigo Testamento (AT) para levar as boas novas aos gentios era que eles chegassem ao templo. Sua estratégia no Novo Testamento (NT) é que o templo chegue aos gentios. Com o templo de pedra, eram eles que tinham que se deslocar, mas agora Deus mudou para um templo de “pedras vivas” (1Pe 2.5) para que sejamos nós que nos desloquemos até os confins do mundo. No AT, a estratégia era centrípeta; no NT, é centrífuga. Ele quer que todos os crentes saiam espalhados em direção aos quatro pontos cardeais. Por isso, o Espírito esperou dois dias, não quis correr o risco de que suas indicações fossem interpretadas de forma errada, e rompeu seu silêncio! Ele exemplifica com Filipe a igreja que sai aos extremos da terra: a marca distintiva que ele quer para seu povo hoje. E, por isso, essa passagem nos mostra os elementos principais da evangelização às nações. Mas ainda há mais…

O tema é que o Espírito Santo não faz nada por sorte ou azar. Vejamos: o eunuco ia lendo um exemplar de Isaías, e estava no já conhecido capítulo 53. Filipe esclarece a passagem, o eunuco se converte, é batizado e segue seu caminho. Avançando a leitura, chegamos ao capítulo 56. E ali, de repente, há um choque ao ler…

3 “Não permitam que o estrangeiro comprometido com o Senhor diga: ‘O Senhor jamais me deixará fazer parte de seu povo’. E não permitam que o eunuco diga: ‘Sou uma árvore seca, sem filhos e sem futuro’.

4 Pois assim diz o Senhor: Eu abençoarei os eunucos que guardarem meus sábados e fizerem o que me agrada e se apegarem à minha aliança.

5 Eu lhes darei, dentro dos muros de minha casa, um memorial e um nome muito maior que filhos e filhas. Pois o nome que lhes darei é permanente; nunca desaparecerá!

6 “Abençoarei também os estrangeiros comprometidos com o Senhor, que o servem e amam seu nome, que o adoram e não profanam o sábado e que se apegam firmemente à minha aliança.

7 Eu os levarei ao meu santo monte e os encherei de alegria em minha casa de oração. Aceitarei seus holocaustos e sacrifícios, pois meu templo será chamado casa de oração para todas as nações.

Aquele mutilado que não tinha valor em uma sociedade em que a descendência é tudo, de repente, lê que já não é uma árvore seca! Poderá ter filhos e filhas espirituais. Aquele eunuco que havia sido constrangido na sinagoga, de repente lê que Deus lhe deu um lugar na casa e na obra do Senhor! Poderá servi-lo alcançando uma nação para sua glória. Aquele buscador isolado, que não goza nem de avivamentos nem das multidões, de repente descobre que tem mais dignidade e melhor nome que aqueles que, como você e eu, foram recebidos como filhos e filhas! (Is 56.5) Para Deus, essa ovelha conta mais que as 99 ou as 99 mil. Realmente os eunucos que nos esperam nos desertos espirituais valem mais que qualquer megaigreja!

Por que o Espírito Santo está tão interessado no eunuco? Por que o aborda no deserto e não no templo? Por que o guia a adquirir um exemplar de Isaías? Pelo mesmo motivo que Jesus declarou quando retirou os cambistas (e pelo mesmo motivo que ele quer mostrar agora): que a igreja é somente sua casa quando é “casa de oração para todos os povos”. Casa que vai a todos os povos! Como Filipe, que abraça a todos os povos! Como o eunuco, que chega aos desertos! Como nós? Mas ainda há mais…

Os eruditos da Palavra nos dizem que, com Pedro pregando a Cornélio, o evangelho se abriu oficialmente aos gentios. Por alguma razão, a ele foram entregues as chaves do reino dos céus. Com ele, abre-se a porta do evangelho para as nações. No entanto, isso não é de todo correto. E o eunuco? O grande esquecido! Como as almas nos desertos espirituais, que são as grandes esquecidas. Mas há mais…

Deus faz essa obra, um marco no céu e na terra, com Filipe, alguém que não tem nem autoridade rabínica nem apostólica para assumir tal responsabilidade; ele é um servidor de mesas… É, como muitos de nós, latinos, o que os gringos chamam de um practitioner, alguém que não acumula títulos acadêmicos, somente tem prática. Mas glória a Deus por essa prática! Mas ainda há mais…

No avivamento de Samaria, o Espírito Santo não se manifestou até que chegaram Pedro e João para impor as mãos, e assim ratificar a obra feita, com sua autoridade apostólica (At 8.14-15). Para dizer do nosso jeito, vieram pôr a bandeira da igreja de Jerusalém e da denominação apostólica. No entanto, no caso no eunuco, eles não aparecem. Ninguém pôde colocar sua bandeira. Assim quer o Senhor que façamos nos desertos espirituais! Mas ainda há mais…

Filipe foi arrebatado da cena de forma tão brusca que não houve tempo de ele tirar uma foto com o eunuco. Não pôde colocá-la na sua carta de oração, não deu tempo nem de perguntar seu nome. Ocorreu de tal forma que a glória só foi para o Senhor, não foi para os Filipes, nem para os apóstolos, nem para os anjos! Os Filipes, os eunucos e os desertos são os grandes ignorados hoje em dia por parte do povo de Deus e dos homens, mas são os grandes heróis e protagonistas para Deus! Porque, no coração de Deus, os menos valorizados são os mais importantes, são seus prediletos. Em nossas prioridades, estamos alinhados com o coração de Deus?

Perguntas com as quais ficamos

  • Qual lição devemos tirar do fato de o Senhor levantar suas restrições e proibições sobre os eunucos em Isaías? O que quer nos ensinar ao entrelaçar essas passagens?
  • Na prática, como deve ser impactado o movimento evangélico pelo fato de que a estratégia do NT para a igreja é centrífuga, móvel, peregrina, sem arraigo terrenal, sem buscar riquezas, nem comodidades?
  • A igreja de hoje incorre no mesmo erro que os cambistas ou vendedores de pombas no Átrio dos Gentios? Como, quando…? Quanto deveria mudar a ordem de prioridades na agenda do programa das igrejas?

 

Que tal ler outro texto do mesmo autor?
Uma palavra aos que temem dizer: “Aqui estou; envia-me”

 

Sobre o autor
Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.

 

[1] As citações bíblicas foram extraídas da Nova Versão Transformadora, salvo quando especificado.

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