A missão do “bem comum”

Uma reflexão sobre o livro Uma fé pública, de Miroslav Volf, e sua proposta de um pluralismo político religioso

Timóteo Carriker

Pessoalmente gosto de fazer as minhas reflexões como cristão a partir do estudo mais expositivo das Escrituras. Isso me faz sentir mais seguro. E, sem dúvida, se a nossa fé tem base e orientação nas Escrituras, são elas que devemos buscar para nos nutrir e motivar. O único problema disso é que é extremamente difícil chegar nas Escrituras sem supor de antemão o que elas estão dizendo. Dificilmente as lemos com uma cabeça realmente aberta, dispostos a leituras que desafiem as nossas interpretações já assumidas. O velho problema da interpretação…

Muitas vezes é necessário ouvir uma voz diferente daquela com a qual estamos acostumados, de uma formação diferente da nossa, que nos faz perguntas e indagações também diferentes, de uma perspectiva diferente daquela com que estamos acostumados. Essa foi a minha reação ao ler o livro de Miroslav Volf Uma fé pública: Como o cristão pode contribuir para o bem comum.[1] A sua reflexão é teológica, mas não aquela teologia acadêmica altaneira. A leitura não é difícil de acompanhar. Vai passo a passo de modo bem explicado e desafiador, não o que se imagina de um teólogo da Universidade de Yale, onde atua como Diretor do Centro para a Fé e a Cultura. Ao dizer isso, penso que alguns leitores já podem não querer saber mais imaginando que esse teólogo de Yale é mais um liberal querendo estragar a nossa fé. Mas não. Ele é um croata, filho de pastor pentecostal perseguido durante a Guerra Fria, discípulo de Peter Kuzmič (Professor de Missões no Seminário Gordon-Conwell), e Volf fez a sua própria formação em dois seminários conservadores – Seminário Teológico Evangélico em Zagreb (na antiga Iugoslávia) e Seminário Teológico Fuller nos Estados Unidos – antes do seu doutorado na renomada Universidade de Tübingen na Alemanha sob a tutela de Jürgen Moltmann.

Qual é a importância desse livro, então, e a sua relevância é para qual audiência? Simples, é importante para todos aqueles que querem dar expressão à sua fé, o que no caso da fé cristã seria nada menos que todos! Ele esclarece, por exemplo, qual é a extensão de nossa fé, em que áreas da vida pessoal e social ela deve achar expressão. Esclarece também qual seriam maneiras apropriadas de como expressar a nossa fé e quando a nossa expressão se torna uma imposição aos outros, o que acaba traindo a própria constituição da fé bíblica.

Mas o livro também é de especial importância para alguns grupos específicos da igreja:

  • aqueles engajados com evangelismo e trabalho missionário,
  • aqueles que exercem a fé dentro do contexto de outras expressões religiosas,
  • aqueles que procuram articular a vocação missionária a partir das Escrituras todas como uma missão integral,
  • aqueles cujos ministérios se relacionam com algum(ns) órgão(s) público(s).

Enfim, o livro tudo tem a ver com a missiologia, o nosso conceito da missão e nosso engajamento nela.

Vamos, então, resumir os principais argumentos do autor e depois fazer um rápido exame do que as Escrituras nos dizem sobre o testemunho cristão por meio da procura do bem comum.

Principais argumentos

Vivemos em um período de cada vez mais polarização ideológica. O surgimento e proliferação das redes sociais nos últimos 10 a 15 anos facilitaram em muito esse fenômeno, oferecendo plataformas de opinião para todas as pessoas. Ao mesmo tempo, diminuíram a dependência das fontes tradicionais de conhecimento e autoridade tais como livros, jornais com reputação, bibliotecas e cursos acadêmicos para a formação de líderes de opinião. Hoje os líderes de opinião são cada vez mais os influencers das diversas redes sociais acrescentados aos atores que já tinham esse papel antes. Some-se a isso a influência mundial dos valores ocidentais, que priorizam a luta da ordem sobre a desordem mais do que a luta do bem contra o mal – as opiniões sobre o que constitui a ordem acabam sendo cada vez mais polarizadas e as opiniões divergentes, cada vez menos toleradas.

Essa polarização de posturas e intolerância de divergências caracteriza não somente o campo político de governo como também e mais profundamente o campo da religião e da fé. E isso enquanto a população mundial se torna cada vez mais religiosa e não menos, como eram as previsões “científicas” de poucas décadas atrás. Nesse contexto, Volf observa que os adeptos das religiões – o budismo, o judaísmo, o cristianismo, o islamismo etc. – “estão cada vez menos dispostos a limitar suas convicções e práticas à esfera privada da família ou da comunidade religiosa”. Entendem, especialmente essas últimas três religiões monoteístas, que suas convicções devem influenciar a vida pública. E assim surgem as diversas compreensões de como e até onde influenciar.

A globalização exacerba mais a situação, pois hoje as religiões são cada vez menos isoladas em áreas geográficas definidas. Defensores de diversas orientações religiosas ocupam o mesmo espaço ao discutir qual seria a influência adequada na vida pública, o que aumenta as possibilidades de conflito. Nesse contexto, a principal preocupação é o medo da imposição, uma fé que imponha um estilo de vida a pessoas que não aderem a essa fé. Esse medo muitas vezes provoca a ideia de que é necessário suprimir as vozes religiosas da esfera pública: a separação entre estado e religião, o conceito do estado laico, a crença (sim, uma crença) de que somente a razão humana ilumina as esferas públicas e não a luz da revelação. Essa opção, que é adotada especialmente no ocidente há séculos, é uma das possíveis.

Outra dentre as opções é o totalitarismo religioso. Volf nos apresenta Sayyid Qutb[2], no período da sua prisão (2954-64), como o mais convincente e influente representante do totalitarismo religioso e “o padrinho do islamismo radical”. Também esclarece ao longo do seu livro que a posição de Qutb é rejeitada pela maioria dos líderes e alas islâmicas do mundo.

A posição que Volf defende em seu livro é “uma alternativa tanto para a total exclusão de todas as religiões da esfera pública como para a total saturação da vida pública”. Ele propõe o “pluralismo político religioso”, e afirma que essa postura surgiu no seio do cristianismo, mesmo que não seja a posição cristã. Nem todos os cristãos a adotam, e pessoas de outras fés religiosas também adotam. Vamos, então, esboçar a posição clássica do totalitarismo religioso via Qutb e logo em seguida a alternativa do pluralismo político religioso via Volf.

O totalitarismo religioso (via Qutb)

  1. Uma vez que não existe “nenhum deus exceto Deus” – A convicção muçulmana básica – Deus tem soberania absoluta sobre a terra. Para os cristãos e judeus tradicionais, tanto quanto para os muçulmanos, essa é uma reivindicação indiscutível. Mas muitos seguidores de religiões abraâmicas consideram profundamente problemáticas as implicações derivadas por Qutb dessa reivindicação.
  2. Que somente Deus é Deus significa para Qutb que toda autoridade dos seres humanos, sejam eles sacerdotes, políticos ou gente comum, sobre outros é ilícita. Toda autoridade humana (exceto a do profeta Maomé como porta voz de Deus) é um ídolo, e compromete a unicidade e soberania de Deus.
  3. A orientação sobre como levar uma vida pessoal e como organizar a vida social vem somente de Deus (conforme foi revelada por meio do profeta Maomé). Exatamente como o Deus único “não perdoa nenhuma associação [de outra divindade] com a sua pessoa”, assim Deus “não aceita nenhuma associação com seu revelado estilo de vida”. Obedecer às ordens de alguma outra fonte que não seja Deus é idolatria, assim como é idolatria adorar outra divindade.
  4. O islamismo não é um conjunto de crenças, mas um estilo de vida em total submissão aos preceitos do Deus único. A comunidade muçulmana é “o nome de um grupo de pessoas cujas maneiras, ideias e conceitos, preceitos e regras, valores e critérios são todos derivados da fonte islâmica”.

O pluralismo político religioso (via Volf)

A alternativa de Volf parte primeiro de uma observação de Richard Niebuhr (Cristo e cultura) de cinco possíveis pontos de vista cristãos em relação à cultura: Cristo contra a cultura; o Cristo da cultura; Cristo acima da cultura; Cristo e cultura em paradoxo; e Cristo transformando a cultura. Volf acredita que não existe uma única forma de correlacionar Cristo e a cultura. Às vezes a fé cristã se opõe a alguns aspectos da cultura, às vezes se mantém afastada, às vezes se identifica e há também características da cultura que a fé procura transformar. Enfim, Volf propõe seis pontos:

  1. Cristo é a Palavra de Deus e o Cordeiro de Deus que veio ao mundo para o bem de todas as pessoas, que são todas criaturas de Deus e amadas por ele. A fé cristã é, portanto, uma fé “profética” que visa corrigir o mundo. Uma fé ociosa ou redundante – uma fé que não busca corrigir o mundo – é uma fé que apresenta falhas graves (ver capítulos 1 e 2). A fé deve ser atuante em todas as esferas da vida: educação e artes, comércio e política, comunicação e entretenimento etc.
  2. Cristo veio para redimir o mundo pela pregação, ajudando concretamente as pessoas e morrendo como um criminoso em favor dos ímpios. Em todos os aspectos de sua obra, ele foi um portador de graça. Uma fé coercitiva – uma fé que visa se impor e impor seus métodos a outros por meio de qualquer forma de coerção – é também uma fé com falhas graves (ver capítulos 1 e 3).
  3. Quando se trata da vida no mundo, seguir a Cristo significa cuidar dos outros (bem como de si mesmo) e trabalhar visando a prosperidade deles, de modo que a vida seja boa para todos e assim todos aprendam a viver bem (ver capítulo 4). Uma visão da prosperidade humana e do bem comum é o ponto principal que a fé cristã traz para o debate público.
  4. Uma vez que o mundo é criação de Deus e a Palavra veio para o que era seu, apesar de os seus não a receberem (Jo 1.11), a visão adequada dos cristãos em relação à cultura mais ampla não pode ser a de oposição sem tréguas ou a da transformação total. Requer-se uma atitude muito mais complexa: a de tomar os vários elementos de uma cultura internamente diferenciada e em constante mutação, aceitá-los, transformá-los, subvertê-los ou utilizá-los de um modo melhor e aprender com eles (ver capítulo 5).
  5. Jesus Cristo é descrito no Novo Testamento como “a testemunha fiel” (Ap 1.5), e seus seguidores viam a si mesmos como testemunhas (por exemplo, At 5.32). O modo como os cristãos trabalham visando a prosperidade humana não é impondo aos outros a sua visão de prosperidade humana e bem comum, mas sendo testemunhas de Cristo, que personifica a vida boa (ver capítulo 6).
  6. Cristo não veio com um projeto acabado para organizações políticas; muitos tipos de organizações políticas são compatíveis com a fé cristã, da monarquia à democracia. Mas num contexto pluralista, a ordem de Cristo “em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam” (Mt 7.12) impõe que os cristãos dispensem a outras comunidades religiosas as mesmas liberdades políticas e religiosas que eles reivindicam para si mesmos. Em outras palavras, os cristãos, mesmo aqueles que em suas visões religiosas são exclusivistas, devem abraçar o pluralismo como projeto político (ver capítulo 7).

Este é um resumo da exposição de Volf desenvolvida a partir de três perguntas simples:

  1. De que maneiras a fé cristã mostra suas falhas no mundo contemporâneo, e como devemos agir contra elas (capítulos 1-3)?
  2. Qual deve ser a principal preocupação dos seguidores de Cristo quando se trata do viver bem no mundo de hoje (capítulo 4)?
  3. Como devem se comportar os seguidores de Cristo para pôr em prática sua visão do viver bem no mundo de hoje em relação a outras fés e na companhia de pessoas diferentes com quem convivem sob o teto de um único estado (capítulos 5-7)?

No fim, Volf conclui voltando às teses de Qutb e propondo oito pontos alternativos:[3]

  1. Todos os monoteístas concordam que não existe “nenhum deus exceto Deus”. Esse não é apenas o princípio básico do islamismo, é a convicção monoteísta mais elementar. Qutb deriva dela uma filosofia política cuja melhor descrição é o totalitarismo religioso. Eu acredito que a fé num único Deus que ordena amar o próximo – que nos manda tratar os outros como gostaríamos que eles nos tratassem – implica a nossa aceitação do pluralismo como projeto político.
  2. Que somente Deus é Deus significa para Qutb que toda autoridade dos seres humanos – sacerdotes, políticos ou pessoas comuns – sobre outros é uma forma de idolatria. Eu acredito que a autoridade política — ou qualquer outra autoridade – não precisa necessariamente se opor a Deus. Crucial para os monoteístas não é rejeitar toda autoridade que não seja divina, mas dedicar lealdade suprema ao único Deus e não obedecer a nada que seja contrário aos mandamentos de Deus. Em termos bíblicos, é possível alguém aceitar ao mesmo tempo a alegação de que “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens!” (At 5.29) e a de que “Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais” (Rm 13.1).
  3. Segundo Qutb, a orientação a respeito de como conduzir a própria vida pessoal e como organizar a vida social provém somente de Deus. Eu acredito que, embora a revelação divina tenha decisiva importância, o entendimento humano das revelações de Deus é sempre limitado no sentido de que os seres humanos, incluindo todos os intérpretes da revelação, são falíveis e finitos. Além disso, ainda que a revelação divina afete todas as esferas da vida, ela deixa que muitos detalhes vitais fiquem desregulados. Uma vez que Deus é o Criador e, portanto, o Senhor de toda a realidade, há verdade, beleza e bondade em todas as culturas, e o conhecimento do que os seres humanos devem fazer pode provir de muitas fontes diferentes – incluindo da ciência, da filosofia e de outras religiões.
  4. Qutb argumenta que a comunidade muçulmana é “o nome de um grupo de pessoas cujas maneiras, ideias e conceitos, preceitos e regras, valores e critérios são todos derivados da fonte islâmica”. Embora seja importante que a fé molde todas as esferas da vida, eu acredito que “maneiras, ideias e conceitos, preceitos e regras, valores e critérios” que moldam uma comunidade devem apenas ser compatíveis com a revelação divina em vez de serem todos derivados da revelação divina.
  5. Na visão de Qutb, os verdadeiros seguidores de Deus são chamados a se separar completamente de comunidades que mostram ignorância sobre a orientação divina. A meu ver, os verdadeiros seguidores de Deus são chamados a viverem no mundo e a não serem do mundo (cf. Mc 16.15; Jo 17.14-16). Eles devem amar a Deus sobre todas as coisas e seguir Jesus Cristo como seu Senhor; esse é o seu diferencial em relação ao resto do mundo, quer pensem e ajam da mesma maneira, quer de uma maneira semelhante, quer de uma maneira completamente diferente em relação a outros. O cristianismo não é uma “cultura” ou uma “civilização”, é um estilo de vida centrado em Cristo em muitas civilizações e culturas diferentes.
  6. Uma vez que Deus é único e Criador, argumenta Qutb, a lei de Deus que regula a vida humana pessoal e social se aplica sempre em toda parte. Embora eu concorde que as leis morais de Deus têm validade universal, acredito que elas podem ser impostas como as leis do país apenas por meio de processos democráticos, sem se oporem à vontade do povo.
  7. Qutb escreve: “O principal dever do islamismo neste mundo é destituir a Jahiliyyah [ignorância da orientação divina] do comando dos homens, e tomar o comando nas próprias mãos e fazer vigorar o estilo particular de vida que é sua característica permanente”. Eu acredito que os cristãos não têm esse dever, e que de fato algo parecido com uma violenta “revolução cristã” seria algo injusto, desamoroso e contraproducente e, de qualquer maneira, profundamente não cristão.
  8. Segundo Qutb, os verdadeiros crentes são chamados a testemunhar a fé segundo a qual não existe “nenhum deus exceto Deus” – uma fé que deve ser abraçada livremente pois não cabe compulsão na religião. Eu concordo que a fé deve ser abraçada livremente e, portanto, deve ser oferecida às pessoas como uma dádiva, não imposta como uma lei. Exatamente por essa razão, qualquer forma de imposição de um sistema social ou de uma legislação supostamente baseada na revelação divina deve ser rejeitada. Afirmar a liberdade de religião é rejeitar toda forma de totalitarismo religioso e abraçar o pluralismo como projeto político.

As posições de Volf são bem explicadas e resumidas acima pelo próprio autor e, em geral, convincentes. Ao invés de entrar no mérito de uma por uma, prefiro apenas complementá-las por uma reflexão bíblica a respeito da procura pelo bem comum de todos, algo que faltou no livro de Volf e que poderia tanto esclarecer quanto promover boa parte de sua exposição.

O bem comum nas Escrituras

Especialmente o Antigo Testamento é uma fonte rica para explorar e desenvolver fundamentos para uma ética pública do povo de Deus em relação à cultura.[4] Já o Novo Testamento acaba contribuindo mais para discutir especificamente o papel da igreja na ética pública. Aqui vamos considerar uma das passagens neotestamentárias mais claras, Romanos 13.1-7, dentro do seu contexto literário maior de Romanos 12-14 e dentro do seu contexto histórico-cultural da cultura romana.

Romanos 12-14. Nesses três capítulos, Paulo aplica pastoralmente na vida das congregações romanas o seu propósito missionário maior de alcançar gentios e judeus e de uni-los em uma nova humanidade em Cristo. O tema da salvação primeiro do judeu e também do gentio (Rm 1.16) deverá resultar na unidade dos dois dentro da igreja. A metáfora do corpo fornece o ponto de partida para toda a sua exortação a favor de uma unidade que abraça a diversidade. O conhecimento pessoal que Paulo tem no capítulo 16 dos membros das igrejas romanas demonstra que as exortações nos capítulos 12-14 são relevantes para a situação específica dessas igrejas. A visão missionária de Paulo não é simplesmente uma questão de geografia, como se a proclamação do evangelho na Espanha cumprisse a sua missão. Ao invés disso, o alvo para Paulo é a realização das promessas de Deus a respeito da unidade de judeus e gentios na formação de um novo povo de Deus sem divisão étnica, um povo que vive “uns aos outros” entre si e dentro da sociedade maior. Suas exortações pastorais refletem uma aplicação dessa realização dentro dos problemas específicos das igrejas romanas. A função pastoral da passagem não só flui do propósito missionário maior de unidade como também contribui para ela. Isso porque uma comunidade cristã unida e estável seria` uma base bem melhor para alcançar a Espanha do que uma igreja cheia de conflitos internos.

Romanos 13.1-7. Apelo para a passividade ou para a transformação? É dentro desse contexto maior do propósito missionário de Paulo nessa carta e da função específica dos capítulos 12-14 que consideramos o trecho de 13.1-7. É um parágrafo curto dentro desses capítulos. Trata do comportamento da igreja em duas direções: interno e externo, o comportamento entre outros membros da igreja e o comportamento entre os não-crentes. Ambas as direções fluem do plano de salvação do mundo, o projeto de novos céus e nova terra. Romanos 13.1-7 pertence principalmente à categoria da ética pública. A ética pública da igreja não é um tema que domina os capítulos 12-14 como um todo, mas ela já aparece em 12.14 e 12.17-21, onde a instrução geral para os membros da igreja em relação aos que não são membros é “fazer o bem perante todos os homens”, “tende paz com todos os homens”, “vencer o mal com o bem” e “abençoar os que vos perseguem”.

O pano de fundo cultural: engajamento com o mundo. É importante ressaltar que o tema da Carta aos Romanos exposto em 1.16, o “evangelho” como o poder de Deus, era facilmente entendido como uma afronta para o império romano, que anunciava literalmente um “evangelho” de paz e segurança mundial debaixo da supremacia do César, sem dúvida um totalitarismo religioso-cultural do tipo exposto acima por Qutb. Por isso, 13.1-7 dificilmente pode ser entendido como uma teologia universal do estado, é um parênese[5] direcionado para circunstâncias específicas. É provável, por exemplo, que Paulo quisesse evitar um novo édito como aquele de Cláudio oito anos atrás, em 49 d.C., que resultou na expulsão dos judeus de Roma. Paulo temia que um novo édito poderia atingir não só os judeus cristãos como a igreja toda. Além disso, ele estava ciente de que o pagamento de impostos era potencialmente uma questão sensível. Entretanto, não é a situação específica ou até mesmo a aplicação do ensino à situação que explica a natureza fundamental da passagem. Romanos 13.1-7 é uma exortação que faz parte de um estrato maior de ensino ético cuja função era exortar os cristãos a participar no mundo. Se isso for verdade, então essa passagem é parte de uma tradição que guia a igreja no processo de transformação social do mundo e que depende de envolvimento missionário, entusiasmado e circunspecto nas estruturas da sociedade. Para Paulo, esse envolvimento era o corolário ético e missiológico do plano de Deus para a salvação universal.

Os códigos domésticos. Romanos 13.1-7 faz parte de um corpo maior de ensino no Novo Testamento estruturado e enraizado semelhantemente em um elemento dominante e muito básico da cosmovisão mediterrânea antiga, isto é, a casa. Os relacionamentos mais fundamentais da cultura mediterrânea antiga eram relacionamentos de parentesco, e a instituição casa (gr. oikos) era onde a maioria desses relacionamentos ocorria. Mais ainda, as expectativas sociais da casa excediam a esfera privada. A casa antiga era considerada a pedra fundamental da sociedade. Sua estabilidade garantia a estabilidade da cidade-estado. Desde o período de Augusto, o imperador era considerado o pater patriae (lat.): ele era um pai, e o estado era a sua casa. No mundo greco-romano antigo, a casa e a sociedade eram separadas apenas por uma barreira muito permeável. Para aqueles que atribuíram a um Deus criador a estrutura básica da natureza, era natural expandir a ideia do oikos humano a uma oikonomia theou, que, por sua vez, abrangeria toda a estrutura do universo. Essa é a ideia clara de 1Pedro 2.13, e o pensamento de Paulo em Romanos 13.1-7 é semelhante. A mesma permeabilidade existia em Romanos entre a igreja como “casa” e a sociedade. Nas crenças judaica e cristã, Deus abraça o mundo inteiro para os seus propósitos. A oikonomia de Deus desenvolve a vida toda, e, por isso, a vida cristã terá de ser vivida dentro da cultura.

Romanos 13.1-7 deve ser visto dentro de um programa social-ético e missiológico semelhante. Seu contexto literário está dedicado à mensagem de que o povo de Deus deve viver consciente de ser uma nova humanidade de Deus no mundo. As circunstâncias específicas em Roma, que ocasionaram a escolha parenética de Paulo, determinaram a forma da aplicação específica (vv. 1,5,6,7), mas o alvo mais fundamental era direcionar as congregações para participar proativamente na vida pública, e, veja bem, não por oposição (totalitarismo religioso, via Qubt) e sim por submissão (pluralismo político religioso, via Volf).

A intenção transformadora de 13.1-7 transparece mais na maneira como a passagem convoca a igreja à ação. Estudos recentes da estrutura retórica da passagem sugerem que o v.3 expressa a ação central na parênese por meio da frase “fazer o bem”. É no imperativo de “fazer o bem” que Paulo “coopta” a convenção cultural conhecida como “benfeitoria” para equipar a igreja para a transformação da sociedade. A prática de “benfeitoria” existia para garantir o bem-estar da sociedade por meio das contribuições dos cidadãos de maior recurso, semelhante ao padrinho ou ao coronel na sociedade brasileira colonial (sem ser pejorativo). O termo “a boa obra” (o agathos; vv.3-4) e a ordem “fazer a boa obra” (to agathov poiei; v.3) aparecem frequentemente nas descrições de benfeitoria; e o termo “louvor” (epainos) como galardão de governantes para bons cidadãos e benfeitores pertence ao domínio semântico dessa convenção cultural. Dentro de tal discussão de responsabilidade pública, as congregações romanas certamente teriam entendido essa referência.

O importante é reparar como a convenção de benfeitoria era empregada pelos escritores cristãos. Eles não apenas enfatizam a continuação da obrigação dos benfeitores cristãos para a sociedade, mas expandem a convenção pela sua fundamentação teológica, aplicando-a a toda a comunidade cristã. Isso também ocorre em Romanos 13.1-7, e é nesse ponto que as injunções dessa passagem adquirem uma conotação radical de transformação. “Fazer o bem” se torna obrigação de todos, não apenas dos poderosos com mais recursos. O conceito de benfeitoria efetivamente é contextualizado para abranger a igreja toda. A benfeitoria é subvertida e transformada em serviço humilde, um exercício que coloca o escravo espiritualmente no mesmo papel do mestre (veja 1Tm 6.1-2). Na oikonomia surpreendente de Deus, a nobreza e a honra, galardões da benfeitoria, são atribuídas aos escravos.

Em Romanos 13.1-7, uma convenção cultural associada com os poderosos e os ricos é atribuída também aos fracos e pobres dentro da comunidade, uma convenção para definir e resumir a sua ética interna e a sua ética pública. De qualquer maneira, “fazer o bem” deve ser entendido como o serviço a favor dos outros e é intrínseco à missão da igreja e ao projeto de Deus de unir gentios e judeus. Essa base teológica da exortação capacita a igreja para um ministério difícil e sacrificial (8.31-19), e chama a igreja para se engajar plenamente no mundo a fim de transformar os seus caminhos e os seus valores.

Conclusão

A alternativa do apóstolo Paulo para um contexto de totalitarismo religioso (romano) não é um outro totalitarismo religioso (cristão). Não, Paulo apela para a sujeição às autoridades e ao mesmo tempo para a sua subversão por meio de uma ética pública que, quando praticada, era um dos principais meios de transformação das culturas que cercavam a igreja ao longo dos séculos. O sociólogo estadunidense Rodney Stark documenta detalhada e convincentemente como isso transpirou durante os primeiros três séculos da igreja cristã primitiva e redundou um crescimento numérico que atingiu 50% da população romana.[6] Mas a mesma história se repete ao longo dos séculos e em regiões geográficas e étnicas as mais diversas, onde a igreja aprendeu e exerceu a ética pública de “fazer o bem”.

 

Sobre o autor

Estadunidense naturalizado brasileiro, teólogo com Ph.D em Estudos Inter-culturais e mestrado em Missiologia, autor de vários livros (O Que é Igreja MissionalTrabalho, Descanso e Dinheiro e A Visão Missionária na Bíblia, entre outros), professor em diversas escolas de teologia e missões, editor geral da Bíblia Missionária de Estudo da Sociedade Bíblica do Brasil, surfista e blogueiro (www.ultimato.com.br/sites/timcarriker).

 

[1] São Paulo: Mundo Cristão, 2018 (tradução de A Public Faith. Grand Rapids: Brazos Press, 2011).

[2] Leia também o artigo “Por trás do radicalismo islâmico: Algumas ideias de Qutb publicadas na obra Milestones de 1964”, de Marcos Amado, disponível aqui. (N. do E.)

[3] Os pontos 1 a 8 foram extraídos do livro, ou seja, são palavras do próprio Volf. (N. do E.)

[4] Os livros de teologia bíblica do Antigo Testamento são especialmente relevantes. Minha própria contribuição se encontra em O propósito de Deus e a nossa vocação. Uma teologia bíblica da missão toda. Viçosa: Ultimato, 2021.

[5] Termo técnico da retórica grega para uma exortação moral. Paulo usa bastante essa ferramenta da retórica greco-romana em Romanos.

[6] O crescimento do cristianismo. Um sociólogo reconsidera a história. São Paulo: Paulinas, 2006. Resumo este fenômeno no meu livro, O que é igreja missional. Modelo e vocação da igreja no Novo Testamento. Viçosa, Ultimato, 2018.

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