A abordagem de ‘Grupos Culturais Homogêneos’ – Perspectiva histórica

Uma nova consciência das realidades sociais mudará, mais uma vez, como pensamos a grande comissão

David E. Datema e Leonard (Len) N. Bartlotti

O conceito de ‘Grupos Culturais Homogêneos’ teve (e ainda tem) tremendo impacto nos cristãos que, de alguma forma, estão (ou estiveram) envolvidos no trabalho missionário.

Considerando que essa abordagem começou a se espalhar pelo mundo há mais de quarenta anos, é natural nos perguntarmos se ela ainda é relevante hoje.

Por isso, o Martureo traz uma série de 4 artigos sobre o tema.

  1. ‘Grupos Culturais Homogêneos’: realidade ou ilusão?, de Marcos Amado.
  2. Reimaginando e repensando ‘Grupos Culturais Homogêneos’, de Len Bartlotti.
  3. Globalização, urbanização e migração: repensando o conceito de ‘Grupos Culturais Homogêneos’, de Minh Ha Nguyen

A seguir, está o quarto texto.

 

A confusão reina entre os líderes no mundo das missões quando se trata de avaliar a responsabilidade evangelística da igreja. A cada década (ou algo em torno disso), a onda de uma nova teoria entra em cena, e os teóricos que ensinam e escrevem livros, bem como aqueles que atuam e que lideram missões, agitam-se furiosamente procurando conter a maré, ou surfar na onda. Os impressionantes conclaves e discussões privadas parecem dominados por promotores entusiastas e frequentemente acríticos da nova onda, ou pelos veteranos que lutam para sintetizar verdades mais antigas e devotamente sustentadas com as implicações da ideia recém-ascendente.”[1]

Em 1983, J. Robertson McQuilkin descreveu o advento da abordagem de ‘Grupos Culturais Homogêneos’ (GCH) como “a atual onda missiológica”. Todos os esforços para conter a maré falharam. A maioria escolheu pegar a onda. Cinquenta anos depois, alguns argumentam que a onda parece ter se esgotado, e seu ímpeto remanescente pareceria estar correndo para trás como se fosse alimentar a próxima onda. Outros se agarram ao pensamento de GCH, não vendo nada no horizonte vindo para tomar o seu lugar. A seguir, tentaremos contar brevemente a história do desenvolvimento da abordagem de GCH até 1982, quando um consenso sobre a terminologia foi estabelecido.[2]

Precursores de ‘Grupos Culturais Homogêneos’

Na realidade, a onda de ‘Grupos Culturais Homogêneos’ dos anos 1970-1980 não era “nova”. Os missionários estavam bem cientes da diversidade étnica e linguística da humanidade. Eles não ficaram surpresos com a complexidade dos povos e etnias dentro de um único estado-nação. Um leitor acrítico da perspectiva “Three Eras”[3] [“Três Eras”] da história missionária moderna, de Ralph Winter, pode concluir que não foi a partir do momento que os missionários foram das “terras costeiras” para o “interior” que eles, de repente, perceberam essa diversidade. No entanto, mesmo o Enquiry [Inquérito] de William Carey (1792) mostrou apreciação pela diferença e variedade humanas. Ao longo do século 19, grandes avanços foram feitos na compreensão dos agrupamentos humanos. Em 1910, a Commission One [Comissão Um] da Conferência Missionária Mundial em Edimburgo[4] apresentou uma pesquisa do mundo não cristão que tinha mais de duzentas páginas, usava a frase “não alcançados” regularmente, e se mostrava impressionantemente ciente das diferenças étnicas e linguísticas.[5] No século 20, essa pesquisa continuou, ampliando a compreensão da diversidade e da complexidade dos agrupamentos humanos. Na América Central, W. Cameron Townsend observou muitos povos tribais frequentemente ignorados e que precisam de suas próprias Escrituras. Na Índia, J. Waskom Pickett escreveu um livro sobre movimentos de massa que formou a base para o posterior trabalho de Donald McGavran sobre movimentos populares e princípios de crescimento da igreja.[6] O aspecto mais importante de tudo isso, para nossos propósitos, era o princípio da unidade homogênea, que enfatizava a tendência humana de preferir a associação com outros de afinidades semelhantes. Na África, David Barrett e Patrick Johnstone começaram projetos de pesquisa (que eventualmente se tornaram globais) sobre povos. O de Barrett é uma investigação mais acadêmica, o de Johnstone cria recursos para oração. Todos esses esforços representaram tentativas de identificar o agrupamento humano em um nível inferior ao dos estados-nação. A nossa colocação aqui é simplesmente que o paradigma de ‘Grupos Culturais Homogêneos’ não foi uma nova revelação sobre a existência de diversos grupos de pessoas. Foi uma fase única e culminante de um movimento, “gerando uma consciência global e uma aplicação combinada do conceito de GCH que criou novas abordagens para a tarefa de evangelização mundial”.[7]

Estímulos que desencadearam um movimento

A abordagem de ‘Grupos Culturais Homogêneos’ da década de 1970 foi desencadeada por dois estímulos diferentes, mas complementares. Primeiro, houve um despertar para a “esmagadora verdade” de que “pelo menos quatro em cada cinco não cristãos no mundo hoje estão além do alcance de qualquer evangelismo cristão E-1 [local]”.[8] Esse estímulo veio por meio da provocativa e inovadora palestra de Ralph Winter na Conferência de Lausanne de 1974, que expôs a incapacidade de o evangelismo feito pelo vizinho próximo (E-1) alcançar esses grupos de pessoas, e chamou a atenção para a necessidade de se fazer do evangelismo transcultural (E-2, E-3) “a maior prioridade”. O segundo estímulo ajudou a visualizar essa realidade. O surgimento de uma nova tecnologia de informática permitiu que os líderes de missões exibissem efetivamente listas das “pessoas ocultas” que constituíam aquele mundo não cristão. Adicionou especificidade ao nomear e listar grupos de pessoas em vez de se referir a eles com títulos gerais vagos como “não evangelizado” ou “mundo pagão”. A intenção era superar a “cegueira das pessoas”, a incapacidade de ver essas entidades menores que constituíam a população humana. Assim, uma representação étnica do mundo não evangelizado estava associada a uma visualização mais detalhada desse mundo. A convergência dessas duas forças mudou a imagem do mundo de estados-nação para ‘Grupos Culturais Homogêneos’, especialmente aqueles rotulados como “não alcançados”. Um mundo antes monocromático agora era policromático: povos, línguas e grupos variados e não alcançados, anteriormente “ocultos” pela (o que Winter chamou) “grama alta” das igrejas nacionais existentes, eram projetados diante dos olhos dos missionários e da igreja global.[9] Isso colocou uma nova ênfase e urgência na fase “pioneira” da missão em busca de um “avanço missiológico” entre cada povo não alcançado. Em certo sentido, o paradigma de GCH ganhou força porque a tecnologia da computação era avançada o suficiente para organizar e manipular dados já existentes. A lista Ethnologue das línguas mundiais foi informatizada pela primeira vez em 1971.[10]

No mundo de missões, a tecnologia da computação agora permitia a recuperação, o arranjo e a análise de dados mais rápido do que nunca.[11] Foi uma inovação tecnológica que permitiu a construção e a manutenção de listas de ‘Grupos Culturais Homogêneos’, aprimorando a visão cognitiva de Winter com exibição gráfica. Embora o insight em si fosse poderoso, quando combinado com as listas, provou ser irresistível. Agora, os indivíduos não só podiam ouvir sobre os povos não alcançados, também podiam vê-los com mais clareza do que nunca. Em missões, é ver para crer.

Os líderes de pensamento primários

Embora muitos estivessem envolvidos na pesquisa de ‘Grupos Culturais Homogêneos’, incluindo David Barrett (World Christian Encyclopedia) e Patrick Johnstone (Operation World), a abordagem de GCH como um conceito completo e estratégia de missão foi o produto de três esferas principais de influência, todas provenientes do sul da Califórnia:

  • a School of World Missions (SWM) [Escola de Missões Mundiais] do Fuller Theological Seminary;
  • o Missions Advanced Research and Communications Center (MARC) [Centro de Comunicações e Pesquisa Avançada de Missões] da Visão Mundial;
  • e o U.S. Center for World Mission (USCWM) [Centro Norte-Ameriano para Missões Mundiais].

O MARC foi estabelecido em 1966 como uma joint venture entre World Vision International e Fuller.[12] Juntos, eles tiveram uma grande influência durante os anos 70 e 80 na pesquisa de povos não alcançados. Cada uma dessas instituições foi liderada por luminares missiológicos. C. Peter Wagner, professor da SWM de Fuller, atuou como Presidente do Grupo de Trabalho de Estratégia (SWG) do Comitê Lausanne para Evangelização Mundial (LCWE).[13] Trabalhando em estreita colaboração com Wagner estava Ed Dayton, Diretor do MARC. Dayton era ex-aluno do Fuller, e estudou com professores da SWM. Essa colegialidade e a proximidade (9 milhas) entre o Fuller Seminary (Pasadena) e a sede da World Vision (Monróvia) facilitaram a sinergia. Segundo Wagner e Dayton,

desde a sua fundação em 1966, o MARC centrou a sua filosofia de evangelização mundial em torno de ‘Grupos Culturais Homogêneos’. A análise feita em conjunto por Donald McGavran e Ed Dayton, da Escola de Missões Mundiais do Seminário Fuller, indicou que a abordagem de missões feita em nível de países não era mais viável. McGavran e Dayton trabalharam na análise de um mundo carente de evangelização com base na percepção anterior de McGavran obtida dos movimentos de pessoas. À medida que a análise continuava, era óbvio que a unidade básica da evangelização já não era mais um país, nem o indivíduo, mas uma grande variedade de subgrupos.[14]

Repare nos conceitos interconectados: evangelização mundial; abordagem baseada em ‘Grupos Culturais Homogêneos’ em vez de em países; movimentos de pessoas; grande variedade de subgrupos. As preocupações impulsionadoras eram tanto bíblicas quanto estratégicas: a evangelização mundial poderia ser impulsionada estrategicamente, promovendo movimentos de pessoas voltadas para Cristo entre todos os subgrupos identificáveis ​​do mundo. Em 1976, Ralph D. Winter relutantemente deixou seu papel de professor na Fuller SWM para fundar o USCWM (a apenas três milhas de distância, em Pasadena) como um centro missionário cooperativo “think tank” (laboratório de ideias), universidade de pesquisa e plataforma para mobilizar a igreja para alcançar os “povos escondidos” do mundo. Originalmente proposto para fazer parte do Fuller, as ideias e abordagem de Winter eram muito radicais e “fora da caixa” para caber em uma estrutura educacional normal. Pela fé, ele lançou uma organização que se tornou a principal promotora do conceito de GCH e do movimento em prol dos grupos não alcançados em todo o mundo. Agora, havia três organizações próximas, cada uma conectada à SWM do Fuller, mas com finalidades exclusivas, porém paralelas e complementares. Isso criou um ambiente rico para um diálogo robusto e um debate entre vários líderes do pensamento missiológico.

Wagner e Dayton

Em conjunto com os professores da SWM do Fuller, o MARC elaborou o primeiro Diretório de Povos Não Alcançados (PNA ou UPG [Unreached People Group, em inglês]) para o Congresso de Lausanne de 1974. O diretório era um livreto atraente que apresentava o mundo dos povos não alcançados aos congressistas. Para a maioria, foi certamente a primeira vez que viram uma lista como essa. Ele definiu um grupo de pessoas como uma unidade homogênea. Com base em um questionário enviado a 2.200 pessoas, apresentou uma lista de 413 GCH não alcançados – o critério era ter “menos de 20%” de cristãos professos. A lista usava o critério de 20% de cristãos professos como forma de delinear o status “alcançado”.[15] Três anos após o congresso, foi fundado o Strategic Work Group (SWG) [Grupo de Trabalho de Estratégia]. Wagner trabalhou em estreita colaboração com Dayton do MARC, e eles produziram conjuntamente, de 1979 a 1984, a série de livros Unreached Peoples [Povos Não Alcançados]. Esses livros deram continuidade ao trabalho original que havia sido apresentado em 1974, e cada volume incluía uma lista atualizada de PNA, e o número deles aumentava a cada ano. A maior mudança ocorrida nesses anos envolveu os critérios de “alcançado” – questão central que ainda hoje permanece contestada. Sem esse critério, não havia maneira de determinar se um ‘Grupo Cultural Homogêneo’ foi alcançado ou não. Primeiro, “cristãos professos” foi mudado para “cristãos praticantes” como o critério de medição. (Alguns críticos ironicamente sugeriram que, ao fazer isso, todos os ‘Grupos Culturais Homogêneos’ agora passariam a ser não alcançados!) Mais importante, havia também um debate contínuo sobre qual seria a porcentagem apropriada de cristãos para representar o ponto de inflexão “alcançado”. Finalmente, foi acordado que GCH não alcançado seria definido como “um grupo com menos de 20% de cristãos praticantes”.[16]

Winter

Ralph Winter foi o antagonista nesse debate. Ele não gostava do termo “não alcançado” devido à sua conotação geral como uma referência a qualquer pessoa que não fosse cristã. Ele também era cético quanto a critérios quantitativos, como porcentagem. Winter apresentou o conceito alternativo de “povos ocultos”: qualquer grupo linguístico, cultural ou sociológico definido em termos de sua afinidade primária (não afinidades secundárias ou triviais), que não pode ser conquistado por métodos E-1 e conduzido para uma comunidade [cristã] existente.[17] Alguns anos mais tarde, uma definição simples e refinada para povos ocultos surgiu: “Aqueles subgrupos culturais e linguísticos, urbanos ou rurais, para os quais ainda não existe uma comunidade nativa de cristãos crentes capazes de evangelizar o seu próprio povo”.[18] Para Winter, não se tratava de quantos cristãos ou missionários havia entre um povo. Tratava-se da qualidade da comunidade cristã – a presença ou ausência de um movimento eclesial evangelizador nativo viável –, não de seu tamanho. A questão da afinidade ou subgrupo foi outra preocupação particular de Winter, e continua sendo até hoje o aspecto mais confuso da teoria de ‘Grupos Culturais Homogêneos’. Até que ponto os agrupamentos de pessoas podem ser divididos em “segmentos”? Qual nível de afinidade (parentesco, afinidade, atração) foi considerado relevante para a identidade do GCH? Seriam “enfermeiras em St. Louis” ou “jogadores profissionais de hóquei” (esses estavam nas primeiras listas!) ‘Grupos Culturais Homogêneos’ distintos? Para Winter, esse conceito de segmentação era de extrema importância, porque era exatamente aqui que os GCH podiam ser “ocultos” da vista, talvez existindo dentro de um grupo mais óbvio. Winter propôs quatro segmentos para retratar essas realidades, valendo-se dos termos Megaesfera, Macroesfera, Miniesfera e Microesfera para identificar os subgrupos que existem como camadas ou estratos dentro de um ‘Grupo Cultural Homogêneo’. A segmentação era necessária “sempre que descobríssemos que um GCH era muito diverso internamente e uma única abordagem não seria suficiente”.[19]

O consenso de Chicago de 1982

Em 1980, ano do Congresso de Lausanne em Pattaya (Tailândia) e da reunião apoiada pelo USCWM em Edimburgo, havia duas definições – uma para “povos não alcançados” e outra para “povos ocultos”. Era premente a necessidade de uma concordância para a terminologia, em parte porque essas mesmas entidades também tentavam descobrir como fazer para unir igrejas e agências com o propósito de “alcançar”, “adotar” ou “amar” os PNA. Observe que preocupações quanto à mobilização – como apresentar realidades e conceitos de campo para as igrejas enviadoras – começaram a assumir uma importância crescente.[20] No outono de 1981, Wade Coggins, em nome do Lausanne Committee for World Evangelization (LCWE) [Comitê de Lausanne para a Evangelização Mundial] na América do Norte, e Ed Dayton convocaram uma reunião para se promover um consenso sobre a terminologia e discutir como esse programa em conjunto poderia funcionar. Foi chamado inicialmente de “Discussão dos Povos Não Alcançados”,[21] e acabou por fim sendo referido como o “Reach-A-People Meeting”[22] [Encontro Alcançe-Os-Povos]. Ocorreu em Chicago, de 25 a 26 de março de 1982, com a presença de dezenove líderes de missões, a maioria dos quais eram executivos de missões. A seguinte definição surgiu para ‘Grupo Cultural Homogêneo’:

Um agrupamento significativamente grande de indivíduos que se percebem como tendo uma afinidade comum entre si por causa de sua língua, religião, etnia, residência, ocupação, classe ou casta, situação etc., ou combinações desses [fatores]. Para fins evangelísticos, é o maior grupo dentro do qual o evangelho pode se espalhar como um movimento de plantação de igrejas sem encontrar barreiras de compreensão ou aceitação.[23]

A segunda frase foi adicionada a mando de Winter a fim de enfatizar a segmentação causada por barreiras sociais/culturais. Contudo, o verdadeiro problema tinha a ver com a nomenclatura (não alcançado ou oculto), e a definição de quem são os que não têm acesso ao evangelho. Então, povo não alcançado recebeu a sua definição:

Um grupo de pessoas dentre o qual não há comunidade nativa de cristãos em número e com recursos adequados para evangelizá-lo sem assistência externa (transcultural).[24]

Assim, no final, Winter concordou em usar “Povos Não Alcançados” (PNA), enquanto Dayton concordou com Winter quanto a não haver porcentagens. O foco estava na ausência ou na presença de uma igreja viável.

Dificuldades remanescentes

Não houve nenhuma mudança oficial nessas definições desde então. Ainda assim, problemas significativos permaneceram. Em primeiro lugar, nenhuma porcentagem foi fornecida nas definições de 1982, então não houve um acordo oficial sobre quando um grupo foi “alcançado”, resultando em diferentes números de ‘Grupos Culturais Homogêneos’ não alcançados [Unreached People Groups – UPGs]. Em segundo lugar, o consenso não respondeu a uma das questões mais prementes e práticas: qual nível de segmentação (etnia, língua, parentesco, classe etc.) era o mais adequado? As diferenças aqui também levaram a diversos números de UPGs. Um bom exemplo dessa incerteza pode ser visto no relatório “Força Tarefa de Estatísticas” do pré-congresso de Lausanne (1989, Lausanne II, em Manila), presidido por David Barrett, que fornece seis categorias para os povos: países, macropovos, povos etnolinguísticos, minipovos, micropovos e sociopovos.[25] Como resultado, diferentes interpretações sobre o que exatamente constituía um ‘Grupo Cultural Homogêneo’ levaram a listas diferentes ao longo da década de 1980. Só em meados da década de 1990, muito por conta do surgimento do AD2000 and Beyond Movement, que uma lista combinada foi experimentada e se estabeleceu a etnolinguística como a categoria primária. Além disso, o critério foi alterado para “menor ou igual a 2% de evangélicos e menor ou igual a 5% de cristãos adeptos”[26], o que permanece em uso para a lista do Joshua Project [Projeto Joshua]. Ainda hoje, as listas de ‘Grupos Culturais Homogêneos’ mostram diferenças em critérios/definições sobre o que constitui um grupo coeso dentro do qual o evangelho pode se espalhar como um movimento de plantação de igrejas sem encontrar barreiras de compreensão ou aceitação. O consenso sobre essas questões tem se mostrado ilusório. Winter continuou a promover a sua abordagem “nenhum grupo de pessoas deixado para trás”, revelando o conceito de “povos unimax”, que considerou ser o grupo “relevante para a missão”, o qual também equiparou à minisfério (em referência ao penúltimo terno de sua segmentação de níveis). Winter estava novamente tentando enfatizar grupos menores. Ficou claro, a partir dos escritos posteriores de Winter, que ele sentiu que a definição de 1982 foi imprudentemente equiparada aos povos etnolinguísticos, que em alguns casos eram muito grandes e provavelmente escondiam grupos menores. Winter manteve essas diferenças ao longo de sua vida, como fica evidente em seu livro Perspectives on the World Christian Movement: A Reader [Perspectivas sobre o Movimento Cristão Global: Uma Leitura]. Aos olhos da maioria, entretanto, os ‘Grupos Culturais Homogêneos’ simplesmente se referiam a entidades etnolinguísticas.

Conclusão

Essa visão geral histórica coloca em perspectiva os aspectos positivos e negativos dessa onda missiológica. Primeiro, uma “tempestade perfeita” foi criada pela união de ideias relacionando grupos de pessoas com a evangelização mundial; a sinergia de influenciadores (formadores de pensamentos) e instituições (agências de pesquisa); a justaposição simultânea de tecnologia da informática, dados e mídia que forneceram novas imagens dos não alcançados; ampliados pelo intercâmbio internacional de ideias, pessoas, dados e organizações em congressos e eventos;[27] todos os quais, juntos, ajudaram a iniciar e sustentar um movimento global. (Veja a Figura 2.1 para um resumo.)

Figura 2.1 – A construção de um movimento

 

Em segundo lugar, a retórica sobre ‘Grupos Culturais Homogêneos’ sempre esteve muito à frente da realidade do que são GCH, o que significa que mesmo quando o paradigma foi promovido com ousadia no palco, havia ainda muita confusão nos bastidores. O paradigma sempre esteve em busca da validação de suas afirmações ousadas e de cobrir buracos conceituais, enquanto observadores atentos, como os editores da EMQ Jim Reapsome e Gary Corwin, forneciam respostas adequadas e significativas. Dada a confusão em massa que acompanhou o movimento, é surpreendente que ele tenha tido sucesso.

Terceiro, o fato de que a permanente confusão continua ainda hoje em termos de níveis de segmentação – debates sobre qual critério de porcentagem é o melhor e a ascensão de identidades híbridas como uma barreira para o modelo de ‘Grupos Culturais Homogêneos’ (e distintos!) – mostra que a complexidade humana permanece além do nosso alcance para que consigamos compreendê-la totalmente. O paradigma de ‘Grupos Culturais Homogêneos’ humilha todos os seus defensores. O conceito de enxergar o mundo como base em GCH é indiscutivelmente a inovação de pensamento mais significativa na missiologia do século 20. Ainda hoje, ‘Grupos Culturais Homogêneos’ permanecem como a unidade de análise que a maioria das pessoas pensa quando contempla a evangelização mundial. Mas este texto e outros mais mostram que as coisas estão mudando. Quer o paradigma seja simplesmente ajustado ou substituído por completo, é provável que os mesmos elementos que o trouxeram à existência serão significativos para pavimentar o caminho a seguir. Uma nova consciência das realidades sociais do mundo não evangelizado e novas habilidades para retratar esse mundo com uma clareza cada vez maior mudarão, mais uma vez, a forma como pensamos sobre a grande comissão.

 

Sobre os autores

Dave Datema atua como catalisador de missiologia para a Frontier Ventures em Pasadena, Califórnia. Ele também está fazendo pesquisa de doutorado sobre os missionários afro-americanos Joseph e Mary Gomer.

Leonard N. (Len) Bartlotti, PhD, é um consultor intercultural, estrategista, palestrante e educador conhecido com 35 anos de experiência em ministério intercultural e trabalho pioneiro na Ásia Central.

Esse artigo foi extraído da publicação EMQ (Evangelical Missions Quarterly) de outubro – dezembro de 2020, da Missio Nexus, que se dedicou exclusivamente ao tema ‘Grupos Culturais Homogêneos’. A tradução e a republicação pelo Martureo foram devidamente autorizadas.

 

[1] J. Robertson McQuilkin, “Assessing the Evangelistic Responsibility of the Church,” (artigo não publicado, usado com permissão do Ralph D. Winter Research Center and Archive, Pasadena, CA, fevereiro de 1982). Esse artigo foi editado e publicado posteriormente como “Looking at the Task Six Ways”, Evangelical Missions Quarterly, 19: 1 (1 de janeiro de 1983).

[2] Para uma visão geral do movimento de missões transculturais, consulte Alan Johnson, “Part I: The Frontier Mission Movement’s Understanding of the Modern Mission Era”, International Journal of Frontier Missions 18:2 (Summer 2001): 81–88, aqui; Alan Johnson, “Part IV: The Core Contributions of Frontier Mission Missiology,” International Journal of Frontier Missions 18:3 (Fall 2001): 129–131, aqui. Para obter mais detalhes sobre as definições de ‘Grupo Culturais Homogêneos’, consulte Dave Datema, “Defining ‘Unreached’: A Shorty History,” International Journal of Frontier Missiology 33:2 (Summer 2016): 45–71, aqui.

[3] Ralph D. Winter, “The Concept of a Third Era in Missions,” EMQ 17:2 (Abr 1981); cf. “Three Men, Three Eras: The Flow of Missions,” Mission Frontiers 3:2 (Fev 1981); mais completamente desenvolvido por Winter em uma versão posterior, “Four Men, Three Eras,” Mission Frontiers 19 (Nov 1997).

[4] Aqui você lê o artigo “Conferências globais de Missões sob uma perspectiva histórica”. (N. do E.)

[5] John R. Mott et al, Report of Commission I: Carrying the Gospel to All the Non-Christian World, World Missionary Conference, (Edinburgh, London: Oliphant, Anderson and Ferrier and New York: Fleming H. Revell Co.), 1910.

[6] Aqui você lê o texto “Os movimentos de plantação de igrejas ou de fazedores de discípulos (CPM e DMM”. (N. do E.)

[7] Len Bartlotti, comunicação pessoal, 28 de Maio de 2020.

[8] Ralph D. Winter, “The New Macedonia: A Revolutionary New Era in Mission Begins,” em Perspectives on the World Christian Movement: A Reader, eds. Ralph D. Winter e Steven C. Hawthorne (Pasadena, CA.: William Carey Library), 353.

[9] Ralph D. Winter, Penetrating the Last Frontiers, (Pasadena, CA: William Carey Library, 1978): “O principal problema agora é que a igreja nacional cresceu como a grama alta, e nossos missionários não conseguem ver além” (p. 3). Essa declaração gerou respostas defensivas acaloradas de alguns líderes denominacionais de missões, que sentiram que suas igrejas nacionais e programas de missões estrangeiras (a grande maioria dos quais não eram pioneiros) estavam sendo menosprezados.

[10] “History of the Ethnologue”, Ethnologue: Languages of the World, accessado em 23 de abril de 2020, disponível aqui.

[11] Samuel Wilson, “SHARE (Systems, Hardware and Research for Evangelization): The Development of a Cooperative Information Network for World Evangelization” (Artigo não publicado, Ralph D. Winter Research Center and Archive, Pasadena, CA, 1980).

[12] Samuel Wilson, “SHARE”.

[13] O LCWE foi estabelecido em janeiro de 1975 para implementar o ethos e a visão do Congresso Internacional sobre Evangelização Mundial que aconteceu de 16 a 25 de julho de 1974. Tinha um corpo internacional, sete comitês regionais, um comitê executivo e quatro grupos de trabalho: teologia e educação, intercessão, comunicação e estratégia. A primeira reunião do Grupo de Trabalho de Estratégia foi em 1977.

[14] C. Peter Wagner e Edward Dayton, Unreached Peoples ’81: The Challenge of the Church’s Unfinished Business. (Elgin, IL., David C. Cook Publishing Company, 1981), 24.

[15] Para uma discussão mais completa da justificativa e dos problemas associados aos indicadores de “porcentagem” de alcance, consulte Dave Datema, “Defining ‘Unreached”: A Short History, IJFM 33:2, Summer 2016.

[16] C. Peter Wagner and Edward R. Dayton, Unreached Peoples ’79: The Challenge of the Church’s Unfinished Business (Elgin, IL.: David C. Cook Publishing Co, 1978), 24.

[17] Ralph D. Winter, Penetrating the Last Frontiers (Pasadena, CA: William Carey Library, 1978), 42.

[18] Ralph D. Winter, “Frontier Mission Perspectives”, Seeds of Promise: World Consultation on Frontier Missions, Edinburgh ’80, ed. Allan Starling (Pasadena, CA: William Carey Library, 1981), 61.

[19] Winter, “Frontier Mission Perspectives”, 63. Winter admite que “a realidade da diversidade humana é, naturalmente, incomensuravelmente mais complexa do que esses quatro níveis implicam. Pode-se facilmente imaginar casos em que existem muito mais do que quatro níveis”.

[20] A proposta “Adote Um Povo Oculto” do USCWM foi redigida por Len Bartlotti, então presidente da Divisão de Mobilização, publicada em Mission Frontiers, 2:11 (novembro de 1980), e discutida no Congresso Mundial sobre Missões Transculturais de Edimburgo de 1980. Ao mesmo tempo, a SWG, o MARC e o evento de Lausanne em Pattaya discutiram o conceito de “alcançar” um povo. A proposta central envolveu um processo de 3 etapas: 1) Validação; 2) Decisão da agência de iniciar a ação; 3)Adoção do povo oculto pela igreja. O esquema reflete as convicções de Winter sobre os dados, a iniciativa da agência missionária no pioneirismo, e prevê que os recursos do centro nos EUA estejam por trás das iniciativas da igreja missionária. A proposta evoluiu para a atual campanha global Adote um Povo com sede em Manilla, Filipinas, e se tornou parte de uma chamada para um movimento abrangente de renovação de missões: “Chegou a hora de os líderes de igreja e de missões se unirem na promoção de um movimento de renovação de missão cooperativa que abrange toda a base do movimento missionário protestante e a reconstrução da perspectiva de missão pioneira dentro dele”. Veja Len Bartlotti, “A Call for a Mission Renewal Movement”, IJFM 1:1 (1984), 37-56, disponível aqui.

[21] “Letter from Wade T. Coggins to Participants”, 13 de Janeiro de 1982, Ralph D. Winter Research Center and Archive, Pasadena, CA, USA.

[22] “Letter from Ed Dayton and Wade Coggins to Participants”, 26 de Fevereiro de 1982, Ralph D. Winter Research Center and Archive, Pasadena, CA, USA.

[23] Ralph D. Winter and Bruce A. Koch, “Finishing the Task: The Unreached Peoples Challenge”, Perspectives on the World Christian Movement, 4th Ed., Ralph D. Winter & Steven C. Hawthorne, eds. (Pasadena, CA: William Carey Library, 2009), 536.

[24] Ralph D. Winter, “Unreached Peoples: The Development of the Concept”, Reaching the Unreached: The Old-New Challenge, ed. Harvie M. Conn (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1984), 36-37.

[25] Patrick Johnstone, “People Groups: How Many Unreached?”, International Journal of Frontier Missions, 7:2 (April 1992).

[26] “Why Include Adherents when Defining Unreached?”, accessado em 20 de abril de 2015, disponível aqui. Um cristão adepto é simplesmente qualquer pessoa que se identifique como cristão de qualquer tipo.

[27] Ralph Winter promoveu consistentemente o significado histórico dos congressos internacionais. Esses eventos foram espaços de intercâmbio estratégico de ideias, pessoas e organizações voltadas para a evangelização mundial e o objetivo de alcançar “todos os povos até o ano 2000”. Veja, por exemplo, Mission Frontiers, janeiro de 1988, onde ele chama o COMIBAM ’87 (Congreso Misionero Iberoamericano ’87, no Brasil), uma reunião de 3 mil líderes da América Latina, Portugal e Espanha, de “o encontro do século”. Ele escreve: “O grande clamor aqui no COMIBAM ’87 é transformar campos missionários em forças missionárias. E eu não acredito que o mundo será o mesmo novamente. O COMIBAM é uma evidência inconfundível e indelével de um movimento que está ganhando força ao redor do mundo…. o anúncio público definitivo e final da maioridade” das missões do mundo majoritário. Em particular, COMIBAM deu “significativa atenção ao instrumento único de evangelização global – a saber, o missionário e a sociedade missionária”. Acessado em 2 de julho de 2020 e disponível aqui.

 

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