Deus, o trabalho e você
“Meu pai morreu”
Quando estive entre os WaiWai, grupo indígena do extremo Norte do Brasil, descobri que haviam somente três tempos verbais para se referir ao passado. São eles: Passado remoto – É quando algo aconteceu há muitos anos atrás. Passado recente – quando algo aconteceu a poucos meses ou semanas; e, passado imediato – quando aconteceu no mesmo dia em questão, há algumas horas atrás.
Tendo isto em mente eu estava conversando com um dos indígenas WaiWai que me disse: “Meu pai morreu!” Ele usou, no idioma WaiWai, o passado recente, ou seja, o pai dele havia morrido há poucos meses atrás conforme a gramática daquela língua. Porém, eu achei curioso, que nos meses em que eu e minha família estávamos na aldeia não vimos e nem ouvimos a respeito do falecimento de alguém. Numa comunidade de não mais do que 350 indígenas, seria praticamente impossível não ter percebido tal acontecimento.
O que de fato estava acontecendo era que, se os sentimentos em relação a alguém ainda fossem muito presentes na vida do falante, ele poderia lançar mão de um tempo verbal no passado recente, mesmo que isto tivesse acontecido num passado remoto, isto é, os sentimentos poderiam, em alguns casos, determinar a forma linguística. Isto significa que língua e cultura se fundem na compreensão e consequentemente na boa comunicação. Nem um, nem outro, são mais, ou menos importantes.
Se isto é verdade, porque pensamos, na prática, que o idioma deve ser estudado intencionalmente e a cultura, por alguma razão, achamos que aprenderemos intuitivamente?
Comunicação e diversidade cultural – criação e queda
O que mais aprendi com o campo missionário tem haver com a comunicação e a cultura, especialmente com o estudo intencional da cultura, pois isso nos ajudará a comunicar o Evangelho de forma inteligível ao universo daquele que nos ouve. Precisamos lembrar também que, o estudo da cultura ajuda o comunicador a entender quais perguntas são levantadas pelo grupo alvo, pois as respostas nós já as temos no evangelho. Isto aponta para um princípio importante: É sempre o Evangelho que responde para a cultura e nunca o contrário.
“E disse Deus… e Deus lhe perguntou”. “No mundo todo havia uma só linguagem”. Deus estabeleceu a linguagem. Ele é o primeiro comunicador, já era assim na trindade, antes da fundação do mundo e foi assim no contato com o primeiro homem.
Por causa do homem, em decorrência da queda, a comunicação também se corrompeu e tornou-se um desafio constante para todos os homens, em todos os tempos e em qualquer lugar habitado pela humanidade. Um ruído, principalmente provocado pelo pecado, se impôs no meio dos relacionamentos afetando tanto a comunicação com Deus, mas também entre os seres humanos. Portanto, a queda gerou um rompimento entre Deus e o homem, mas que foi restaurado por sua graça. Mas também gerou uma distorção dos relacionamentos humanos, da cultura e da linguagem. “Assim os homens não entendiam mais uns aos outros” (Gn. 11. 7).
A confusão na linguagem não provocou somente aspectos linguísticos distintos, mas também, “gramáticas culturais” diferentes espalhadas por toda a terra. Paradoxalmente, as distintas línguas e culturas, provenientes de Babel, não podem ser vistas, como maldição. Ao contrário, no contexto geral da Bíblia, elas manifestam a diversidade das culturas por meio das quais Deus é e, será glorificado (Ap. 7. 9).
A linguagem cultural: um objeto a ser estudado intencionalmente
Sabemos que a comunicação é essencial ao trabalho missionário, não somente pelas questões transculturais, mas também pelas questões da própria cultura do missionário. Quando me refiro à comunicação, não estou indicando somente questões relevantes à oralidade ou a escrita, mas também à linguagem cultural, isto é, aos símbolos e as ideias que estão por trás de um fenômeno cultural qualquer. Missionários, em geral, estão mais preocupados com a linguagem falada e escrita do que com a cultural. Isto não é anormal, ao contrário, quando chegamos numa outra cultura, em campos além, nossa ansiedade em conseguir comunicar, mesmo que seja somente o trivial, está em nível altíssimo e isto é bom, pois nos faz focar em longas horas de estudos teóricos e práticos, a fim de que consigamos comunicar, em especial o Evangelho; para que aquela aldeia, campo, cidade ou segmento social ouça a respeito do libertador Jesus.
Assim como o idioma, a cultura de um determinado povo ou segmento social, mesmo dentro de sua própria cultura deve ser estudado intencionalmente. Nosso objetivo ao comunicar o Evangelho é: em primeiro lugar a glória de Deus e em segundo, comunicar de tal modo que as pessoas compreendam e não necessariamente que se convertam. É claro que nosso desejo é que as pessoas que se relacionam conosco e nos ouvem se tornem discípulos de Jesus, mas esta é uma ação do espírito Santo de Deus e não nossa. Nossa missão é glorificar a Deus e comunicar de modo que elas compreendam. Se elas compreenderem e mesmo assim se negarem a seguir Jesus, significa que nosso papel foi cumprido.
Nosso desafio é comunicar de modo que faça sentido para aqueles que nos ouvem. Para isso precisamos compreender o melhor possível, a cultura (incluindo o idioma é claro), o Evangelho e o contexto em que estas relações acontecem. Conforme Hesselgreve, as questões de sentido estão sempre ligadas ao contexto histórico, cultural ou imediato. Para que possamos desenvolver uma boa comunicação, não basta somente conhecimento do idioma, mas é imprescindível que conheçamos a cultura, pois a comunicação não é um jogo de tradução literal, mas de sentido. O conhecimento da cultura ajudará a dar sentido para os ouvintes. Se queremos comunicar o Evangelho de modo que ela faça sentido para ouvintes é imprescindível que conheçamos bem o Evangelho a cultura e o contexto.
O Evangelho inteligível supera as diferenças
Comunicação significa tornar comum. Então, quando falamos de comunicação transcultural do Evangelho estamos falando em tornar comum (inteligível) o Evangelho para a cultura receptora. Mas temos mais um problema neste ponto: muitas vezes não conseguimos comunicar corretamente dentro da nossa própria cultura, imagine então em outra, onde todo o processo de socialização que recebi desde o meu nascimento agora não funcionam mais quando me deparo com o campo transcultural. Por exemplo, se digo a um esquimó: O sangue de Cristo lhe torna mais branco que a neve, logo devo perguntar: de qual branco estamos falando, já que, para eles, existem mais de dez tonalidades desta cor.
Como apresentar Cristo para pessoas distintas, de faixas etárias diferente, de contextos urbano e rural diferentes. Como falar de Cristo, para um universitário urbano brasileiro?
Falar de comunicação cultural ou transcultural não significa somente a compreensão de uma “gramática linguística”, mas também de uma “gramática cultural”. Ambas precisam ser compreendidas dentro do contexto em que estão para que a mensagem do Evangelho faça sentido. Em outras palavras precisamos conhecer bem o Evangelho e bem a cultura afim que obtenhamos sucesso na comunicação. Precisamos comunicar com sentido, porém não podemos em nenhuma hipótese negociar o Evangelho para que isso aconteça. O Evangelho deve desafiar, confrontar e transformar. Se qualquer um desses aspectos forem negados, precisamos urgentemente rever que Evangelho estamos anunciando.