LAUSANNE 4, Que igreja anuncie e demonstre Cristo, unida!
por Marcos Amado
O Movimento de Lausanne desempenhou um papel importante em alguns setores do evangelicalismo mundial nas últimas cinco décadas. Uma das principais razões para isso é que, no final do século XIX e início do século XX, surgiram diferenças entre as denominações protestantes sobre a definição bíblica correta do que é “missão”. Alguns entenderam que, biblicamente falando, missão se referia exclusivamente à evangelização e ao estabelecimento de novas igrejas em todo o mundo. Outros argumentaram que, dadas as mudanças de paradigma que o mundo estava vivenciando, era importante enfatizar as questões sociais, lutando contra as disparidades e injustiças em diferentes esferas da sociedade.
Em resposta a essa dicotomia, outro movimento surgiu por volta da década de 1950 com o objetivo de reafirmar que a responsabilidade social faz parte do chamado cristão, sem renunciar à proclamação do Evangelho. Foi nesse contexto que, sob a liderança do evangelista Billy Graham, nasceu o Movimento de Lausanne, cujo primeiro congresso foi realizado na cidade de Lausanne, Suíça, em 1974.
Sob a influência de importantes teólogos como John Stott e René Padilla, esse primeiro congresso resultou no Pacto de Lausanne , um documento fundamental para a teologia missionária evangélica, que influenciou gerações de cristãos.
Um dos principais aspectos deste documento está no Artigo 5, que afirma:
“…Embora a reconciliação com outras pessoas não seja reconciliação com Deus, nem a ação social seja evangelismo, nem a libertação política seja salvação, no entanto, afirmamos que evangelismo e envolvimento sócio-político são ambos parte de nosso dever cristão. Pois ambos são expressões necessárias de nossas doutrinas de Deus e do Homem, nosso amor ao próximo e nossa obediência a Jesus Cristo.”
Esta passagem contribuiu para uma compreensão mais abrangente da missão, conhecida como Missio Dei ou Missão Integral. Era essencial viver o evangelho por meio do cuidado com os necessitados, sem perder a fidelidade às crenças protestantes históricas e sem negligenciar o zelo evangelístico.
Embora essa abordagem não tenha eliminado a tensão entre diferentes focos missionários, ela contribuiu para uma maior legitimidade teológica da Missão Integral. No Terceiro Congresso de Lausanne em 2010, o Compromisso da Cidade do Cabo reforçou a importância de entender que cumprir a Grande Comissão inclui proclamar e viver de acordo com todos os ensinamentos de Jesus.
Diante deste contexto, que se tornou ainda mais polarizado nos últimos anos, havia grande expectativa em relação ao quarto Congresso de Lausanne, realizado de 22 a 28 de setembro deste ano, na cidade de Seul. Meses antes, Lausanne havia divulgado um documento de mais de 500 páginas intitulado O Status da Grande Comissão , que serviu como preâmbulo para o congresso. Este documento, além de estatísticas, incluía reflexões sobre o que Lausanne chamou de “As 25 Lacunas no Cumprimento da Grande Comissão”.
Sob o lema “Que a igreja declare e exiba Cristo junta!”, e após longos e árduos anos de preparação, a noite de abertura finalmente chegou. A organização foi impecável. Apesar do grande número de participantes, o processo de inscrição levou menos de cinco minutos por pessoa. Os participantes foram atendidos por centenas de voluntários (a maioria coreanos) que foram extremamente simpáticos e prestativos. Os ônibus de transporte para os hotéis, todos de boa qualidade, operaram com muita eficiência.
Não é fácil descrever o impacto visual e emocional de reunir cinco mil cristãos de mais de 200 países em um único local, com grande diversidade denominacional e teológica, para discernir juntos a direção da missiologia global para os próximos anos. Talvez nunca na história do cristianismo tenha havido um evento que representasse tão bem a realidade do cristianismo global.
Dentro do salão, a estética e o som eram impressionantes. A acústica era perfeita. Telas enormes de LED de alta definição facilitavam o acompanhamento de tudo o que acontecia no palco. Tradução simultânea era fornecida diariamente em seis ou sete idiomas diferentes, usando tecnologia de ponta. Cerca de 800 mesas para seis pessoas cada foram distribuídas pelo salão, e os membros de cada mesa (que permaneceriam juntos durante toda a semana para as atividades e discussões que aconteciam pela manhã e à noite) já estavam pré-definidos de acordo com certos critérios. Os líderes de louvor e suas bandas eram da mais alta qualidade, as dramatizações ocorreram em vários horários e a programação ocorreu sem problemas, conforme o planejado.
De manhã e à noite, o programa consistia em apresentações de preletores da Ásia, Europa, Américas e África, mantendo um bom equilíbrio entre representantes do Norte e do Sul globais. Também havia um equilíbrio de gênero, com homens e mulheres participando, bem como palestrantes jovens e experientes. As apresentações eram dinâmicas, e o dia começava com louvor e reflexões sobre o livro de Atos. Temas que eram o resultado de anos de reflexão por comitês liderados por Lausanne eram abordados a cada dia.
À tarde, os cinco mil participantes foram divididos em 25 grupos e passavam duas horas discutindo lacunas no cumprimento da Grande Comissão, incluindo tópicos como secularismo, missões urbanas e inteligência artificial. Em paralelo, reuniões não planejadas entre representantes de diferentes organizações criaram oportunidades para novas amizades e parcerias, transformando o evento em um grande evento de networking.
No entanto, nem tudo foi perfeito. Na primeira noite, ocorreu uma das primeiras surpresas não gratas: foi anunciado que The Seoul Statement , um documento de mais de 30 páginas, estava pronto e disponível no site. Ao contrário de conferências anteriores, nas quais os documentos eram, pelo menos em parte, o resultado de discussões realizadas durante a semana, a Declaração de Seul foi gradualmente desenvolvida ao longo dos anos por um grupo de teólogos convocados por Lausanne.
A divulgação antecipada da declaração causou estranheza em alguns participantes. Alguns pontos do documento se mostravam confusos ou repetitivos, afirmando, em certos temas, posições que alguns entendiam como mais tradicionais, sem considerar as complexidades dos contextos históricos e culturais.
O tema Proclamação vs. Missão Integral , tema recorrente desde 1974, voltou a ganhar destaque. Na noite de terça-feira, segundo dia da conferência, a teóloga Ruth Padilla fez uma apresentação que tinha como ponto de partida o livro de Miquéias, na qual destacou a necessidade de os cristãos se preocuparem com as injustiças, as disparidades sociais, a escravidão e a opressão que ocorrem em diferentes partes do mundo. Em seu discurso, ela mencionou brevemente a situação em Gaza e criticou certas teologias dispensacionalistas, que, segundo ela, contribuem para incitar e justificar o injustificável na região.
No momento de sua palestra, o público não pareceu reagir negativamente. No entanto, dois dias depois, todos os cinco mil participantes do congresso receberam um e-mail da liderança de Lausanne oferecendo um pedido de desculpas por uma apresentação que havia criticado o dispensacionalismo e não conseguiu expressar empatia equivalente pelo sofrimento do povo israelense, bem como não conseguiu abordar adequadamente outros conflitos violentos no mundo. A declaração ofereceu
[…] um pedido de desculpas por uma apresentação desta semana que destacou a ‘escatologia dispensacional’ em um tom crítico, sugerindo que ela contribuiu para a violência e a injustiça e que falhou em notar que muitas teologias foram mal utilizadas e mal aplicadas como justificativas para a violência. A mesma apresentação se referiu ao sofrimento do povo palestino, mas não expressou empatia comparável pelo sofrimento do povo israelense nem expressou adequadamente preocupação por muitos outros povos e nações do mundo que estão atualmente no meio de conflitos violentos. Tomamos conhecimento de dor e ofensa significativas experimentadas neste Congresso por aqueles em contextos teológicos dispensacionais, aqueles que são judeus e aqueles envolvidos em ministérios para judeus e/ou em Israel.
Esta declaração atraiu ainda mais atenção para o incidente, causando uma forte reação de muitos participantes. Os cristãos árabes presentes ficaram emocionalmente abalados e expressaram indignação. A pressão foi tão grande que dias depois a liderança de Lausanne enviou outro e-mail se desculpando e incluindo uma resposta por escrito de Ruth Padilla. Esta segunda declaração ajudou a acalmar, pelo menos em parte, o desconforto causado.
Além deste episódio, a Declaração de Seul levantou outro ponto controverso ao lidar com a Missão Integral em seu capítulo 5. O documento fez (ou deu a impressão de fazer) uma conexão entre a Missão Integral e relatos de má gestão financeira, má conduta sexual, abuso de poder e espiritualidade fraca em várias igrejas e líderes evangélicos ao redor do mundo. O documento lamenta tais falhas e enfatiza a necessidade da graça da continuação do evangelho para produzir santidade entre os líderes cristãos e lamentando “essas falhas; lamentamos nosso pecado; humildemente nos arrependemos e confessamos nossa profunda necessidade da graça contínua do evangelho para produzir em nós a santidade sem a qual ninguém verá o Senhor.”
Por outro lado, e embora tenha havido críticas quanto a essa abordagem, o documento também reafirmou aspectos historicamente ligados à Missão Integral, incentivando os cristãos a se envolverem com questões sociais e a lutar contra injustiças e desigualdades. Isso parece indicar que Lausanne está em um momento de marcada indecisão, recebendo pressões de diferentes grupos com visões bíblico-teológicas variadas. Um reflexo disso foi a presença diária de pequenos grupos de cristãos coreanos protestando pacificamente do lado de fora do evento, criticando o que consideravam posições liberais por parte do movimento.
Outra preocupação expressa por alguns participantes foi a impressão de que muito foco foi colocado em atingir metas, em controlar estatisticamente o alcance de grupos de pessoas não evangelizadas, e o apelo recorrente de que “as lacunas” ainda precisam ser preenchidas para a realização completa da Grande Comissão. O uso da tecnologia e o estabelecimento de metas claras para a missão também foram destacados, o que fez alguns participantes se perguntarem se o movimento missionário estava sendo influenciado por uma mentalidade mais empreendedora (que alguns chamam de missiologia gerencial), em detrimento de uma abordagem mais cristocêntrica, amorosa, humana e relacional.
Apesar de tais críticas e questionamentos, ainda é muito cedo para saber qual será o real impacto de Lausanne 4. Tanto os aspectos positivos quanto os negativos influenciarão a reflexão e a prática missionária global nos próximos anos. O enorme esforço feito pelos organizadores e participantes, bem como o significativo investimento financeiro e humano envolvido, não podem ser negados. Que Deus permita que os aspectos negativos sejam superados e que Lausanne 4 se torne um marco na história do cristianismo mundial, contribuindo para que os cristãos sejam “testemunhas do Senhor Jesus e de todo o seu ensinamento em todo o mundo e em todas as esferas da sociedade” (Compromisso da Cidade do Cabo).
Marcos Amado
Outubro de 2024