O poder produtivo do descanso
Hábitos que ajudam o coração a se manter no lugar correto
A Escritura começa sua narrativa nos contando que após criar todas as coisas, no sétimo dia, o Senhor descansou (Gn 2:3). Deus, por definição, jamais se cansa. Mas se ele não estava de fato cansado, por que Ele descansou?
O livro do Gênesis nos conta a história do início do mundo, mas foi escrito por Moisés no deserto, enquanto os hebreus estavam indo em direção a Canaã para criação de um Estado. Por causa disso, além de lições teológicas sobre o Criador, o legislador de Israel estava ensinado ao povo os fundamentos das futuras leis trabalhistas e religiosas. O sábado seria para o descanso do trabalho e para a consagração ao Senhor. Deus descansou, sem precisar, para ensinar sobre esse direito à nação de Israel, para convidar a humanidade a se relacionar com ele e nos ensinar sobre a necessidade de repouso e descanso.
Ainda nos escritos de Moisés, o sábado se torna uma lei constitucional – porque os dez mandamentos constituem a carta magna da nação e não apenas um decálogo moral subjetivo – com enorme importância para todo o povo de Israel. Descansar deixou de ser a prática da imitação de Deus para se tornar um direito e um dever de todo cidadão israelita.
O descanso é algo tão importante para Deus que o conceito também foi aplicado à terra. Depois de seis anos de trabalho, os israelitas não poderiam cultivar a terra, deixando que a criação também descansasse (Lv 25:2-5).
No Novo Testamento o Senhor também descansa. Jesus, o Deus encarnado, demasiadamente cansando, dorme profundamente no barco enquanto seus discípulos conduzem a embarcação no Mar da Galileia (Lc 8:24).
Sabemos que a vida na eternidade será gloriosa. O texto bíblico compara essa vida no “novo céu e nova terra” a um descanso eterno (Is 57:2). Como descansar é prazeroso, assim será a vida dos remidos nas moradas celestiais.
Enfim, do início ao fim da revelação, Deus nos chama a descansar. Diante dessa verdade, o salmista compôs uma bela canção: aos seus amados ele dá enquanto dormem (Sl 127:2).
Esse axioma bíblico teológico é completamente contra cultural em nossos dias. A ética de trabalho no modo de produção predominante nos ensina que trabalhar é viver, trabalhar duro é um ideal e o descanso é para os fracos.
Enquanto uns dormem, outros estudam, trabalham, enriquecem e se sobressaem.
Enquanto a igreja se precavia do mundanismo aparente, a saber: roupas e linguagem; a ética secular envolveu os súditos do Reino de forma que poucos compreendem o trabalho a partir de uma cosmovisão bíblica.
Consequentemente, as estatísticas de burnout e stress não parecem ser muito diferentes na igreja e fora dela. Esse problema velado tem uma faceta ainda mais calamitosa: a liderança cristã não está imune a essa realidade.
Em especial, esse texto deseja fazer apontamentos sobre o drama da falta de descanso entre a liderança eclesiástica. Para sermos mais específicos em nosso recorte, queremos olhar para a vida daqueles que deveriam ser modelos para o rebanho de Cristo e testemunhas para o mundo: estamos falando de pastores e missionários, sobretudo aqueles que vivem do Evangelho ou se sustentam ainda que parcialmente com os recursos oriundos da Igreja. Se você está nessa condição, esse texto foi escrito para você. Caso esta não seja sua posição hoje, encorajo você a se inteirar do assunto e ao final, se o texto for digno, recomendar a pastores e missionários que estão ao seu redor. Isso pode precavê-los ou até mesmo ser um bote salva-vidas.
Missionários e pastores são pessoas que decidiram se dedicar diretamente para o serviço do Reino. Cuidar de vidas e compartilhar o Evangelho é uma tarefa sem fim. O trabalho é de tempo integral, pois não podemos determinar um horário específico para as pessoas enviarem mensagens desesperadas em busca de nosso auxílio. A demanda é sempre maior do que qualquer um pode suportar, por isso muitos terminam os dias sobrecarregados e com a sensação de que ainda existe trabalho a ser feito. Afinal, a tarefa só será finalizada quando o Mestre retornar.
Além da própria natureza do trabalho, a relação de contrapartida financeira faz com que aquele que serve ao Senhor por amor, mas recebe recursos para sustento próprio e da família, sinta mais do que os outros discípulos de Jesus uma responsabilidade massacrante.
Nesse contexto, muitos obreiros têm encontrado sérias dificuldades para descansar. Seja porque não conseguem ter um dia de descanso na semana e um período mais longo em algum momento do ano. Seja porque mesmo na “folga” oficial não conseguem desconectar a mente e deixar de lado o smartphone.
A tarefa é em si desafiadora, ela nunca termina e está diante de nós a qualquer hora. Porque somos sustentados para o serviço, nos sentimos culpados em dizer não. Eis a receita simples para uma vida de trabalho árduo, intenso e com riscos de problemas físicos, emocionais e espirituais. O evangelicalismo brasileiro está a cada dia mais chocado com as falências espirituais de muitos líderes, com o crescente número de suicídios e com o aumento das diversas desordens psíquicas entre obreiros.
O movimento missionário tenta compreender o alarmante índice de transtornos de ansiedade, depressão e burnout cada vez mais recorrentes entre os trabalhadores transculturais. Vidas preciosas que não podem frutificar porque adoeceram.
Essas consequências não são apenas para a saúde integral do vocacionado, mas também para as comunidades locais. Pastores adoecidos, igrejas vulneráveis. Trabalhadores transculturais enfermos, missão inoperante.
Aqui está um paradoxo: no esforço extraordinário de ver o serviço do Reino se expandir, os obreiros acabam adoecendo e o trabalho é paralisado.
Exposto o problema, queremos agora propor caminhos profiláticos que também podem servir de antidoto para aqueles que, apesar de bem intencionados, estão sofrendo porque foram além dos seus limites. Essas ideias que desejo compartilhar não são fruto de uma mente que observa o problema de longe ou um ministro perfeito que sempre foi exemplo nessa área. Esses são caminhos que tenho aprendido com pessoas melhores do que eu e que tenho me esforçado a trilhar para glória de Deus, para o bem da minha família e para meu benefício pessoal.
Quando servindo do outro lado do mundo fui diagnosticado como workaholic e como pastor sempre fui conhecido como sendo um “trator” para trabalhar. Tenho buscado santificação a cada dia nessa área e lutado contra meus instintos pecaminosos que me sugerem ser melhor que Deus, não precisando descansar. Esse texto é escrito por um maltrapilho que tem experimento a graça de Deus. Desde que compreendi esse pecado, tenho me arrependido e sou mais sábio nessa área do que fui no passado. Minha mudança não foi do dia para noite, mas está sendo um processo ao longo dos anos. Creio que hoje, pela graça de Deus, não negligencio mais minha família e posso compartilhar meus tropeços e acertos a fim de ajudar outros apaixonados pelo trabalho, que assim como eu, muitas vezes acabam fazendo dele um ídolo.
Precisamos primeiramente permitir que a Teologia Bíblica do descanso molde nossa perspectiva do trabalho e serviço. Deus descansou, Jesus descansou e deseja que seus discípulos descansem, inclusive os seus colaboradores no serviço do Reino (I Co 3:9).
Quando dizemos não às múltiplas demandas e decidimos obedecer a Deus retirando um tempo para descansar, estamos testemunhando nossa fé na bondade e soberania de Deus. Se cremos que Ele está no controle de todas as coisas e confiamos em seu amor, podemos descansar. A Escritura ainda nos encoraja, dizendo que o Senhor nos abençoa enquanto descasamos (Sl 127:2).
Descansar é dar evidências que nosso deus não é o nosso ministério ou as pessoas necessitadas, mas o Senhor. Deixar o trabalho de lado é impedir as raízes do messianismo pecaminoso crescerem em nosso coração: nós não somos os salvadores do mundo.
Na prática, compartilho alguns hábitos que poderão ajudar o coração a se manter no lugar correto:
1) Trabalhe dois turnos por dia e tire um para você e sua família. A maior parte das pessoas trabalha oito horas por dia, ou dois turnos. Alguns trabalham manhã e tarde, outros tarde e noite. Aqueles que trabalham de manhã cedo até altas horas da noite todos os dias geralmente não conseguirão correr a maratona da vida de forma saudável. Em algum momento o corpo ou a mente clamarão por socorro.
Para alguns os turnos serão de quatro horas, para outros de seis, isso depende da demanda e posição de cada um, da resiliência e perfil. O importante é não trabalhar os três turnos. Eu trabalho mais que a maior parte das pessoas, com turnos mais longos, mas tenho procurado tirar um turno para a família em todos os dias trabalhados.
2) Tenha o seu sábado. O dia do descanso é totalmente relativo à realidade de cada pessoa. Isso depende da cultura e do país onde você está. No Oriente Médio por exemplo, o final de semana é sexta e sábado, sendo o domingo um dia de semana. No ocidente, enquanto a maior parte das pessoas descansam no domingo, esse é o dia de maior trabalho para os ministros. Independentemente do dia, cumpra a lei do descanso. Tire um dia para não trabalhar. Recentemente ouvi que o líder de uma das maiores agências missionárias do mundo, um homem de alta produtividade, não trabalha do meio-dia da sexta-feira até o meio-dia do sábado.
3) Tenha férias anuais. Alguns preferem ficar trinta dias em descanso. Outros acompanham os períodos escolares dos filhos e descansam duas semanas no meio do ano e mais duas em dezembro ou janeiro. Vi um obreiro tirar três períodos de dez dias ao longo de um ano.
4) Ouse não olhar o smartphone nesses períodos. O mundo está em nossas mãos e estamos conectados não apenas às informações, mas às pessoas através desse poderoso aparelho. Estar em descanso, mas recebendo mensagens, respondendo, lendo e se preocupando para responder depois não é a melhor forma de ser revigorado.
A verdade é que o descanso precisa ser visto como uma fonte de poder. Quando descansamos não estamos dissipando energia, mas acumulando para servir mais e melhor. Enquanto descansamos não estamos produzindo imediatamente, mas criando condições propícias para a grande produção que virá a seguir. Além disso, quando descansamos, obedecemos ao criador, construindo um relacionamento que não se resume ao ministério, afinal não somos chamados a caminhar com Jesus somente no serviço ministerial.