A Missio Dei e a Mission Life
Uma pequena pílula profilática contra os encantos da vida missionária.
Vamos começar do início. A expressão missio dei é uma locução em latim que significa “missão de Deus”. O termo expressa a crença que por trás de todo esforço humano para a proclamação do Reino está a ação soberana de Deus conduzindo todas as coisas para um fim redimido. Todo esforço humano deve ser orientado e submetido ao paradigma da encarnação do Cristo, o clímax do movimento divino para restauração da criação. Compreender que antes das missões da igreja existe a missão de Deus destrona tendências messiânicas e nos salva de nós mesmos enquanto desejamos servir ao Criador.
Mission life traduzido do inglês denota “vida missionária”. O trocadilho do título é propositalmente provocador. A forma como missionários transculturais estão servindo em seus campos e qual vida eles tem escolhido viver é uma questão urgente a ser ponderada pelo movimento missionário brasileiro. Pelo menos esse é o sentimento de um alguém que já esteve daquele lado e agora observa de fora a ilha na qual viveu. Retomando Saramago em “O Conto da Ilha Desconhecida”, quando diz “… quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver. Se não sais de ti, não chegas a saber quem és“, sabemos que o olhar de fora daquele que já esteve dentro é digno de escuta.
Enunciações explicadas, precisamos explicitar o destinatário dessa breve reflexão. Esse texto é dedicado a todos os cristãos que servem a Deus fora de suas comunidades locais em ambientes transculturais, a todos que se sentem vocacionados para tal e, ainda, àqueles que estão refletindo sobre essa possibilidade. Secundariamente, mas ainda em um propósito valoroso, a leitura deste texto pode elucidar todo cristão na matéria proposta e instrumentalizá-los em uma correta compreensão, bem como capacitá-los para o possível cuidado de um coração missionário.
Sobre o propósito dessa composição, poderia rotulá-la como uma pequena pílula profilática contra os encantos da vida missionária. Porque ao contrário do que muitos imaginam, a vida em missões possui privilégios e um lado muito prazeroso que é como o lado oculto da lua – sabemos que existe, mas somente os que estiveram daquele lado viram de fato o que tem por lá.
Sim, existem muitos benefícios em viver fora do Brasil como um trabalhador da causa de Cristo. Um deles é o ganho existencial. O senso de realização e de propósito são únicos. O sentimento tão almejado por muitos, de significado e sentido é uma certeza quando você está vivendo como os protagonistas do Novo Testamento. Anônimos se tornam heróis e exemplos. Passamos a ser admirados e nossas histórias inspiram outros cristãos.
O ganho social é um fato indiscutível. Lembro-me de ouvir de um trabalhador experiente que me encorajava a abraçar minha vocação: “o Brasil se torna pequeno depois que moramos fora”. Quando residimos no exterior e aprendemos mais um idioma, não raramente dois e alguns até três ou mais; quando nos acostumamos a residir em regiões e países diferentes; quando nos tornamos multiculturais, sabendo transitar em culturas distintas; o local de origem passa a ser apenas mais um lugar. Tornamo-nos cidadãos globais enquanto nos esforçamos para sermos excelentes embaixadores da pátria celestial. Temos acesso a outras culturas, a informação e dominamos as rotas do mundo.
Outra benesse é a monetária. Alguns missionários vivem melhor fora do Brasil do que viviam em sua vida de origem. Isso é uma verdade pouco palatável para alguns. Mas muitas vezes essa é uma realidade que ocorre sem dolo algum. Muitos trabalham em países espiritualmente carentes, mas com um IDH melhor que do seu país natal. Ainda que essa não seja a motivação inicial, muitas vezes é um ganho que não pode ser evitado. Mas contemplamos algo além dos valores mensais. Estamos falando de acesso. A vida missionária permite à maioria dos trabalhadores transculturais ter acesso a lugares e ambientes que o brasileiro comum jamais terá.
Isso traz alguns perigos. Geralmente a ida é romântica e cheia de boas intenções, mas quando os benefícios chegam, muitos se apegam à nova vida e um possível retorno ao país originário significa perda efetiva. Não haverá escola bilíngue para os filhos, nem férias em lugares que outros sonharam, nem sequer poderá usar os novos idiomas que adquiriu. O medo da crise certa faz com que a permanência se torne uma necessidade. Mas agora não é mais a necessidade do povo que o recebeu ou porque somos necessários para Deus naquele local, mas a necessidade do ego. Assim, o primeiro perigo é o de se perder na motivação pela qual você está fazendo o que faz. É a necessidade do outro ou a sua própria?
Outra grande ameaça está ligada à nossa identidade. Muitos passam tanto tempo em outra cultura que deixam de ser uma pessoa de verdade no local de origem e se tornam um mito, um símbolo de encorajamento, um projeto missionário. Essa perda de identidade é reforçada enquanto nos lançamos mais e mais na nova cultura e em nossa vida missionária, pois, consciente ou inconscientemente, quanto mais crescemos na vida missionária, mais ganhos também teremos. No final, corremos o risco de perder nossa identidade, esquecemos quem somos para ficar somente com o que fazemos; tornamo-nos missionários, porque muitas vezes ser o missionário é melhor do que ser simplesmente o João.
O que escancaramos até aqui é a verdade oculta, mas real, de que a vida missionária não é apenas sofrimento. Claro que eles existem, mas eles nos fazem bem. O sofrimento nos deixa mais humildes e geralmente nos conduz para mais perto do Senhor. Também nos ajudam a sermos apoiados. Mas também há ganhos e eles podem nos deixar orgulhosos, menos dependentes do Senhor. Jesus nos prometeu cem vezes mais, ao deixarmos tudo para trás pelo Reino. Ele tem cumprido sua promessa e nós, no lugar de nos alegramos e vermos o ganho terreno como sinas das glórias da vida eterna, estamos nos apegando a esses benefícios. Muitos não sabem mais quem são, nem o motivo de fazerem o que fazem. Estão confusos na missão de Deus por causa dos benefícios da vida missionária.
Mas podemos nos precaver desses perigos e evitar tal tragédia, de estar perdido vocacionalmente enquanto vamos aos perdidos espiritualmente. Primeiramente, saiba quem você é em Deus. Jamais esqueça sua identidade. Não importa se missões te trouxe mais perdas ou mais ganhos, sua dignidade está nos méritos de Cristo na cruz. Ele te adotou como filho e te fez sacerdote do Deus vivo. O valor da nossa adoção e das recompensas eternas superam qualquer ganho terreno. Por isso Jesus exortou os discípulos em Lucas 10, quando retornaram da missão, que se alegrassem primeiro na salvação deles. Missionário é a condição de um serviço, não nossa identidade. Um título ou uma condição não pode definir quem somos.
Além disso, não devemos nos esquecer da nossa motivação. A missão pertence ao Senhor. Ele está trabalhando desde a eternidade e somos apenas pontos no grande plano de Deus que começou bem antes de nós e se cumprirá para além de nós. Ele é o início e o fim. Não devemos trabalhar pela necessidade do outro, tampouco pelas nossas necessidades, mas por obediência. Nossa motivação precisa ser sempre o cumprimento humilde e obediente da nossa vocação, como servos inúteis (Lc 17.10). Missão é missio dei e missões é obediência.