A primeira Grande Comissão

No universalismo da doutrina da criação do Antigo Testamento reside uma compreensão holística da missão

Timóteo Carriker

Qualquer teologia da missão cuja pretensão seja ter sua autoridade enraizada na revelação bíblica deve necessariamente começar com os vários relatos da criação no Antigo Testamento. Isso porque, sendo a preocupação primária na missão o cumprimento do propósito de Deus em e para o mundo, certamente nosso ponto de partida missiológico deve ser um exame do propósito original de Deus para a criação em este (neste) mundo. Nos relatos da criação do AT, encontramos os primeiros indícios da graça redentora de Deus para toda a humanidade, não apenas para os hebreus. Não é por acaso que o advento da humanidade é o ponto de partida da própria ordem do material da Bíblia, tornando sua mensagem desde o início universal, ecumênica e missionária. Os relatos da criação têm como tema inicial a ordem na criação e, mais particularmente, o reino de Deus que dá sentido a essa ordem. Esse é o único tema que é consistente em todo o escopo da Bíblia, e isso é fundamental para a nossa compreensão de missão global.

O primeiro objetivo desta reflexão é examinar brevemente e exegeticamente o relato da criação encontrado principalmente em Gênesis 1 e 2, Isaías ­42-44 e em alguns dos Salmos. Os aspectos que dizem respeito particularmente à missão de Deus para o mundo e o papel da humanidade serão enfatizados. A partir desses dados, deduziremos as primeiras implicações para uma teologia bíblica da missão.

Os relatos da criação de Gênesis

Nossa análise exegética deve começar com os relatos da criação de Gênesis. Antes, contudo, vamos estabelecer o contexto maior. Pode-se ver panoramicamente os primeiros doze capítulos da seguinte forma: no princípio, Deus criou os céus e o terra, isto é, tudo. Toda a criação tem sua base em (Adão, o ponto central em torno do qual Deus constrói em Gn 2) e para (Adão, o ápice da criação em Gn 1) a humanidade. A humanidade, então, é o fim principal de Deus (quer vista como o ponto central ou o ápice da criação). No entanto, a humanidade não entendeu a sua centralidade e responsabilidade (Gn 3), alienando-se assim de Deus. O resultado atinge proporções catastróficas não só para a raça humana, mas para toda a criação (Gn 4-6). O juízo chega necessária e inevitavelmente (Gn 7–8), mas depois e por meio dele, Deus permanece fiel à sua criação e à humanidade (Gn 8–9). No entanto, as gerações consequentes também mantêm sua natureza caída. Novamente, o julgamento de Deus atinge a humanidade, mas desta vez não por meio de um dilúvio, e sim com uma dispersão da humanidade sobre a terra em alienação mútua (Gn 11).

Até este ponto, Deus tratou com os povos do mundo. Mas, no capítulo 12, encontramos os primórdios do relacionamento particular de Deus com a nação de Israel.[1] A relação de Deus com o mundo das nações em Gênesis 1-11 é o pano de fundo para a história de Israel, que começa com os patriarcas e particularmente com o chamado de Abraão. Nesse ponto, começamos a ler sobre a restauração da unidade e comunhão que foram anteriormente perdidas e quebradas entre Deus e a humanidade. Aqui, Gênesis 12.3 torna-se crucial: “Abençoarei aqueles que o abençoarem e amaldiçoarei aquele que o amaldiçoar. Em você serão benditas todas as famílias da terra” (NAA). Como a desobediência de um determina o destino da humanidade na história da criação, assim também a obediência de um determina o destino da humanidade no início da história da restauração (Gn12.3). Portanto, toda a história de Israel nada mais é do que uma continuação do contrato de Deus com as nações, e, portanto, a história de Israel e, consequentemente, o resto do Antigo Testamento só podem ser entendidos à luz do problema ainda a ser resolvido do relacionamento de Deus com as nações.

O propósito de Deus ligado a toda a criação por meio das nações pode ser notado não só a partir da lógica interna do arranjo de Gênesis 1-11 dentro de seu contexto mais amplo, mas também pela própria consciência de Israel como nação. O fato de que a nação de Israel estava consciente de si mesma como apenas uma nação entre muitas pode ser visto na sua própria lembrança de sua ausência na Tábua das Nações (Gn 10). Israel está “nos lombos do Arfaxade”, isto é, está escondida em um nome que não tem nenhum significado teológico para o Javismo. Portanto, Israel não podia se ver como o ponto focal das nações. Foi o primeiro povo, de fato, a pensar em si mesmo como uma só nação. Outros impérios pensavam em si mesmos como o universo. Assim, Israel aceitou sua situação não como o propósito final de Deus, mas como o meio da redenção de Deus para todas as nações.

A própria estrutura dos relatos da criação em Gênesis ressalta o propósito de Deus para toda a criação por meio da humanidade ou das nações. Já se mencionou a centralidade de Adão nos relatos da criação. Adão é usado, assim como em outras partes da Bíblia (1Co 15), para se referir tanto a um nome individual quanto a toda raça humana (por ser etimologicamente derivado de אדם). E é usado para demonstrar a lógica estrutural da história da criação de Gênesis 1 como temática da ordem e, particularmente, do reino de Deus (veja a seguir).

Todos os relatos da criação do Antigo Testamento, de fato, enfatizam a completa dependência que a ordem terrena tem de Deus (ver também Js 10.12; Jz 5.20; Gn 49.25; Ex 15.8,11; Nm 16.30; Dt 33.14ss; Sl 29). A construção ordenada da criação é enfatizada em Provérbios 8.22ss de uma perspectiva de construção de casas. A ordem é imediatamente evidente no relato de Gn 1.1-2.3 da ação inicial de Deus sobre e contra o caos (compare Gn 1.2 com Is 45.18). Essa ordem ou subordinação da criação é continuamente demonstrada em vários salmos, particularmente no Sl 18.7-15. A obediência, então, que é inerente à exigência de ordem, é pré-requisito para habitação na criação (Is 66.1; portanto, a queda da ordem em Gn 1 e 2 foi resultado de desobediência).

A forma particular dessa ordem já foi sugerida pelo tema do reino de Deus, que então liga os relatos da criação de Gênesis com Gn 17.6 e 16. A restauração da criação também assume a continuidade do tema do reino. O ponto fulcral desse tema é a vinda do Rei, Jesus (Is 9.6-7), e sua consumação é a realização final do reino de Deus na criação do novo céu e nova terra (Gn 1.1-2). Aliás, é esse o tema que dá sentido à ordem definida encontrada em Gênesis 1 e 2. Quando os relatos são entendidos topicamente (em vez de mitologicamente por eruditos liberais ou estritamente de forma cronológica pelos fundamentalistas), como era típico do estilo hebraico, eles ficam mais claros. Assim, a ordem não é tanto em termos de sequência cronológica – o que, de fato, requer interpretações bastante fantásticas –, mas em termos de assunto tópico. Deus primeiro cria três grupos de reinos básicos, ou domínios, durante os primeiros três dias, sobre os quais ele então nomeia “reis” para governarem durante os três dias seguintes. A nomeação régia final (ou a primeira Grande Comissão!) é a da humanidade, que recebe uma nomeação real representativa como mordomo-governadora sobre todos os outros reinos. Por representativa, queremos dizer que a humanidade foi gerada de Deus à sua imagem (צלם) e semelhança (דמות), isto é, segundo a sua “própria espécie” (Gn 1.11). O ponto aqui está no propósito para o qual a humanidade foi criada ao invés de na forma que a constitui especialmente. A humanidade tem um chamado representativo para governar como Deus governa. Portanto, o homem não é apenas o servo do Senhor, mas o filho do pai. Como o pai faz, assim o filho reflete. Dessa forma, a realeza e o domínio de Deus são refletidos no domínio da humanidade sobre a criação.

A função que a imagem de Deus no homem tem, portanto, é exatamente a que o texto bíblico declara em Gênesis 1.28: “dominar” (רדה) e “subjugar”כבש) ) a terra, isto é, seu status de senhor (o “s” em minúsculo é importante) do mundo. Deus coloca a humanidade no mundo como um sinal de sua própria soberania. O Salmo 8 concorda com esse conceito de Gênesis 1 – a humanidade realizando a sua comissão no papel de rei do reino terrestre como Deus é o Rei do reino celestial, o status da humanidade sendo, portanto, apenas um pouco menor do que o de habitantes do céu.

Até agora, nossa análise bíblica mostrou que Deus tem um propósito para toda a criação por meio de sua representante principal: a humanidade (as nações). Embora o terreno tenha sido preparado para demonstrar que tal plano é redentor, a clareza desse ponto ainda está para ser vista. Já demonstramos como os relatos da criação de Gênesis trouxeram a criação em estreita ligação com o início da história salvífica em Gênesis 12. Com a criação do mundo, começamos a ver o registro de história. É nesta referência da história da criação do mundo que a ação salvadora dentro de Israel poderia ser trazida para seu quadro teológico apropriado de referência, porque a criação é parte da etiologia de Israel.

A conexão em Isaías e nos Salmos

Isaías faz esta ligação entre criação e redenção de forma ainda mais assertiva. O principal fator de conexão é que, como Javé tinha o poder de subjugar o caos, também poderia ser feito um apelo a ele para ajudar seu povo em tempos de dificuldade no plano histórico (Is 51.9s); e porque ele criou os confins da terra, sua mensagem atual também é confiável (Is 40.27ss). Isaías entende corretamente a criação não como uma obra separada por si só, adicional aos atos históricos de Jahweh, mas sim como o primeiro dos atos históricos miraculosos de Javé e um tremendo testemunho de sua vontade de salvar. Javé é aqui mencionado simultaneamente como o criador do mundo e o criador de Israel (Is 43.1, 7, 15; 44.2, 21). Ele é criador em um sentido duplo, porque realizou a existência física de seu povo, e, particularmente “escolheu” e “redimiu” Israel. Em Isaías 44.1ss; a criação de Israel é coordenada com sua eleição. De fato, nesta passagem, criarברא) ) e redimir (גאל) podem ser usados como sinônimos! Aqui, Javé é criador e redentor de Israel – não são duas atividades separadas, mas uma única.

Também em Isaías 42.5 e 43.1, cláusulas descritivas como “aquele que criou os céus” e “aquele que te criou, que te formou” estão explicitamente subordinadas à cláusula principal “não temas, eu te resgato”. A intenção aqui e em Is 44.24b-28 é reforçar a confiança no poder de Javé e sua prontidão para ajudar. Isto é porque, novamente,
Javé em Is 44.24 é representado como “o redentor e criador”.
Mas os relatos da criação em Gênesis e Isaías não ficam sozinhos nesta estreita ligação da criação com a redenção. Os Salmos também trazem a mesma marca. O propósito do Salmo 89, por exemplo, é celebrar os “atos de graça de Javé” (הסדי יהוה). No entanto, uma parte considerável no meio trata de vários atos de criação, que devem ser considerados juntamente com outros atos salvadores de Javé mencionados no salmo. O Salmo 74 começa com um chamado a Javé “que faz obras de salvação” (פ על ישועות) e então registra as obras da criação de Javé (vs. 12-17). Muitos outros salmos anunciam louvores à soberania de Deus na criação (Salmo 8; 24.1f; 19.2-7; 98.7-9).

O tema escatológico do reino de Deus

Finalmente, esta ligação da criação com a redenção encontra sua ligação no tema escatológico do reino de Deus. Assim, as passagens que falam da restauração em um novo céu e uma nova terra (ls 51.6; 34.4; 65.17; 66.22; Sl 102.26-28), expressando a soberania absoluta de Deus sobre todas as coisas criadas, assumem um novo significado. Essa ideia de escatologia e futuro é a característica distintiva da história bíblica. Não é apenas Javé o Senhor do passado e da criação, e o Senhor do presente e da salvação, mas ele é também o Senhor do futuro que trará tudo à sua consumação na restauração em um novo céu e uma nova terra. Este plano de reconciliação de toda a criação não foi um segundo pensamento, mas estava na mente de Jahweh “antes da criação do mundo” (Efésios 1.44, supralapsariano).

Então, vimos que Javé tem um propósito escatológico para toda a criação (Deus termina com um novo céu e uma nova terra como ele começa com o céu e a terra em Gn 1.1). O representante principal de Javé para reordenar sua criação é a humanidade redimida que levar a bênção de Deus para toda a criação. Devemos perguntar neste momento qual é, então…

…o significado teológico de tudo isso, particularmente em termos de uma teologia bíblica de missão

Em primeiro lugar, reconhecemos que o propósito de Deus na criação é redentor. Este é o nosso ponto de partida fundamental. Quando Deus completou a criação, ele a chamou de “bom, muito bom!” (טוב מאד). Este propósito redentor é a base para a proclamação da soberania de Deus sobre todo o mundo, incluindo seus povos.

Em segundo lugar, a primeira aliança de Deus foi com o toda a humanidade, em que, como senhor sobre seus companheiros da criação, ele encontra sua própria dignidade em sua própria sujeição a Deus. Portanto, por ser criado à imagem de Deus, o homem deve dominar a terra e assim se submeter a Deus. Como W. Eichrodt disse: “A subjugação da terra e o domínio sobre as suas estruturas conferem à raça humana uma tarefa universal comum, e na execução desta tarefa a natureza especial do homem tornar-se visivelmente eficaz na medida em que ele se torna o responsável representante do divino Senhor cósmico” (Teologia do Antigo Testamento, Vol. II, p.127). Da mesma forma, Orlando Costa afirma: “Ao fazer o homem à sua própria imagem e semelhança e ao dar a ele a tarefa de subjugar a Terra, Deus dá a ele o dom da liberdade e o e o convida a compartilhar sua vontade e propósito na criação” (Hacia Una Teología de la Evangelización, pp. 109-110). No entanto, a decadência do homem, um resultado de sua desobediência, exige redenção, que tem como objetivo primeiro as nações e depois toda a criação.

Em terceiro lugar, enquanto Jesus Cristo é fundamental para a redenção da criação, a humanidade é central, embora não circunferencial (Romanos 8.20-25). Isto é, a redenção alcança além, mas por meio da humanidade, até toda a criação. Johannes Blauw faz isso ponto vívido: “Porque o Deus de Israel é o Criador, não somente de todas as nações, mas também do céu e da terra, do homem e das feras, Ele se revelará no futuro, como Criador e Possuidor e mais particularmente como Redentor também de todo o mundo” (A Natureza Missionária da Igreja, p. 36). A criação em sua totalidade deve compartilhar as bênçãos da redenção.

No entanto, o mundo deve passar por uma transformação radical por causa da maldição do pecado do homem. Então se dará a cena da realização final de Deus do seu reino já em operação no mundo.

E, em quarto lugar, quando reconhecemos que a primeira aliança de Deus foi com toda a humanidade, nós encontramos nosso ponto de contato com a humanidade, cujo ancestral comum é Adão. Essa afirmação implica solidariedade com toda a raça humana. E isso implica proclamar a todos os povos a fim de se cumprir o propósito de Deus para toda a criação. Certamente, o cristianismo também precisa do universalismo da doutrina da criação do Antigo Testamento, pois aqui reside uma compreensão holística da missão. Os atos salvíficos de Deus são universais em sua disponibilidade (embora não necessariamente em sua aceitação), nisso reside a singularidade do cristianismo. A graça redentora de Deus alcança toda a civilização, primeiro por meio da igreja, mas eventualmente para todas as facetas da criação através Jesus Cristo (Cl 1.19-20; Ef 1.9-10; Fp 2.10-11; 1Jo 2.2).

Bibliografia

Blauw, Johannes. A Natureza Missionária da Igreja. São Paulo: ASTE,1966. trans. J. P. Ramos.

Costas, Orlando. Ed.  Hacia Una Teología de la Evangelización. Buenos Aires: Editorial La Aurora, 1973.

DeRidder, Richard R. Discipling the Nations. Grand Rapids: Baker Book House,1979.

Eichrodt, Walter. Theology of the Old Testament. trans., J. A. Baker. Philadelphia: Westminster, 1961 and 1967, Vol.s I and ÌI.

Kittel, R. and P. Kahle. Biblia Hebraica. 16th ed. Stuttgart: Wurtembergishe Bibelanstait, 1973.

Kline, Meredith G. The Structure of Biblical Authority. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1972.

Ladd, G. E. The Presence of the Future. Grand Rapids: Eerdmans, 1974.

Snyder, H. S. The Community of the King. Downers Grove: Inter-Varsity Press, 1977.

Rad, Gerhard von. Old Testament Theology. New York: Harper and Row ,1962 and 1965, Vol. I and II. Trans., D. M. G. Stalker.

 

Sobre o autor

Estadunidense naturalizado brasileiro, teólogo com Ph.D em Estudos Inter-culturais e mestrado em Missiologia, autor de vários livros (O Que é Igreja MissionalTrabalho, Descanso e Dinheiro e A Visão Missionária na Bíblia, entre outros), professor em diversas escolas de teologia e missões, editor geral da Bíblia Missionária de Estudo da Sociedade Bíblica do Brasil, surfista e blogueiro (www.ultimato.com.br/sites/timcarriker).

Esse texto foi escrito pelo autor originalmente em inglês em 1979 como trabalho da disciplina Teologia da Missão I ministrada pelo professor Arthur F. Glasser no Fuller Theological Seminary. Foi traduzido pelo português pelo próprio autor para publicação no Martureo.

 

[1] Há uma forte alusão à relação particular de Deus com Israel na bênção de Noé sobre Sem, o antepassado de Abraão, em Gn 9.27.

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