Uma virada em missões para movimentos: pensamentos sobre a nova era e as novas roupagens
“Igreja como instituição” está mudando para “igreja como movimento”
Wes Watkins
“A única maneira de entender o propósito das mudanças é mergulhar nelas, mover-se com elas e entrar na dança” – Alan Watts.
A mudança é uma constante em nosso mundo. Especialmente nos últimos anos, parece que o ritmo das mudanças está aumento de forma dramática. Suspeito que, intuitivamente, todos nós já saibamos disso. Mas, como cristãos comprometidos com a missão de Deus de redimir as nações para que voltem a ele, talvez não seja tão intuitivo assim saber como dar sentido a tudo isso.
Os anos 2020 tem sido por demais perturbadores que qualquer outra época desde a Segunda Guerra Mundial. Em toda a década observaram-se grandes turbulências no cenário mundial: pandemias, guerras, desastres naturais, campanhas baseadas em fake-news, nacionalismos xenofóbicos… Tudo isso estabelece uma atmosfera de medo e incerteza.
Mas nem tudo se resume a más notícias. Desde os anos 1990, em meio ao caos, houve um avanço nas missões mundiais com a irrupção dos Movimentos de Fazedores de Discípulos [em inglês, Disciple Making Movements (DMM)] no chamado Mundo Majoritário. [Aqui você pode ler mais sobre esses movimentos.] Tal desenvolvimento foi retratado na obra Motus Dei: The Movement of God to Disciple the Nations, editada por Warrick Farah (William Carey Library, 2021). O avanço do movimento – afirma-se que hoje mais de 1% da população mundial integra um dos Movimentos de Plantação de Igrejas [em inglês, Church Planting Movements (CPM)] – é impressionante.
Em 1991, um livro inovador publicado por David Bosch – Missão Transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão (Sinodal, 2002) – detalhou como o entendimento da compreensão da igreja sobre sua missão se transformou ao longo da história. Bosch propôs, como indica o título da obra, que a igreja estaria experimentando um outro paradigma em termos da prática missionária e do significado da missão. Não era tanto que o mundo estava mudando (o que é fato), mas principalmente que a missão em si estava mudando.
Bosch não estava sozinho ao chamar a atenção para isso. Leslie Newbigin o precedeu. Darrel Guder publicou Missional Church: A Vision for the Sending of the Church in North America em 1998. Outros livros seminais como The Shaping of Things to Come: Innovation and Mission for the 21st-Century Church (2003) de Alan Hirsch e Michael Frost falam da necessidade de uma inovação missional. Ralph Winter também escreveu sobre as três eras da missão e propôs uma quarta era, mas infelizmente foi dissuadido de publicar a respeito disso.[1] A obra Church Planting Movements, How God Is Redeeming a Lost World (2012), de David Garrison, foi igualmente inovadora. Tom Steffen publicou The Facilitator Era: Beyond Pioneer Church Multiplication (2011). Enfim, a lista de vozes as mais diversas vai longe.
Tanto a realidade quanto a lógica dessa mudança de paradigma na compreensão da missão estão claras. Desde o final do século 20, a igreja se encontra em uma nova era da missão. Ainda que você não concorde com a necessidade de conceituar como uma nova “era”, isso não é central no ponto que quero tocar: novas roupagens (wineskins, i. e., bolsas de pele de animal usadas para guardar vinho) da missão estão sendo discernidas e utilizadas hoje. Podemos nos referir a isso como uma “virada” em missões.
Admiramos heróis missionários do passado como William Carey (1782-1834), Adoniram Judson (1788-1850) e Hudson Taylor (1832-1905). Os exemplos deles nos ajudam a manter a tradição de nossa fé hoje. Não se trata de que o paradigma de missões deles (ou parte desse paradigma) estivesse equivocado. No entanto, não podemos ter a expectativa de que seja possível lidar com a complexidade das realidades do século 21 valendo-se das práticas e conceitos do século 19.
Alguns podem até negar que estamos em uma nova era e, por isso, buscam manter o status quo. Andrew Walls tem uma afirmação conhecida segundo a qual um dos problemas missiológicos mais persistentes pode ser rastreado ao longo dos séculos até o tempo da igreja primitiva em Atos 15.1: a “tendência judaizante”, que seria “a insistência em impor nossa própria cultura religiosa, nossa própria Torá e circuncisão”.[2]
É claro que nem todos concordamos em como descrever a nova era em que nos encontramos. Mas a dificuldade em descrever esta nova era, seja a respeito do que mudou, seja a respeito do que precisa mudar, não deve nos incomodar. Deste lado da eternidade, “vemos de modo imperfeito” e o que sabemos “é parcial e incompleto” (1Co 13.12). Necessitamos de múltiplas perspectivas, bem como de humildade em nossas proposições.
Com isso em mente, gostaria de esboçar brevemente minha visão pessoal desta nova era, ou seja, as mudanças estruturais que ocorreram na história recente da missão e que ainda estão se desenrolando hoje.
Do Oeste aos nativos
Há uma tendência por parte das denominações evangélicas mais abastadas e educadas no Ocidente de afirmar terem descoberto como fazer “igreja”. A prática de missão resultante disso é embalar seu modelo de igreja e exportá-lo para o restante do mundo. Infelizmente, muitas dessas denominações fracassam ao não levar em conta o próprio declínio do evangelicalismo fiel no Ocidente. Isso requer uma pausa e uma reflexão santas: até que ponto a eclesiologia ocidental deve ser compartilhada com as nações? O Espírito de Deus pode levar os cristãos do mundo majoritário a aplicações bíblicas que se encaixam melhor em seu contexto do que a teologia e as práticas importadas do Ocidente.
A construção colonialista da missão – “do Ocidente para o resto do mundo” – foi substituída com o surgimento de estruturas de missões e teologias nativas. Não me entenda mal: o envio de missionários do Ocidente e de outras partes do mundo ainda é vital nos dias atuais, especialmente aos não alcançados e não engajados (independentemente da geografia), mas a postura difere muito e não está baseada nas suposições da era anterior. Os ocidentais podem servir como catalisadores e incentivadores, mas eles não são o centro da história.
Do gerenciamento linear à complexidade holística
Relacionada a esta discussão, está a falácia iluminista de que todos os problemas podem ser resolvidos, incluindo os que concernem à missão. Nas eras anteriores, o alvo era desenvolver uma igreja madura e, apenas após isso ter sido alcançado, atentar para sua capacidade de multiplicação. Em outras palavras, o objetivo era fazer discípulos por meio da plantação de uma única igreja saudável primeiro.
Jesus modelou uma abordagem diferente: menos linear e mais holística. Ele investiu tempo com os marginalizados, curou e cuidou dos pobres, fez uma porção de perguntas perspicazes, proclamou a multidões e mentoreou seu amigos. Em suma, Jesus fez discípulos que fizeram discípulos. Ele não “plantou uma igreja” valendo-se das metodologias que alguns defenderiam hoje.
No processo de Jesus de fazer discípulos, seus discípulos cresceram cognitivamente, afetivamente e no comportamento, tudo ao mesmo tempo. Eles começaram a servir no ministério imediatamente, crescendo assim para a maturidade. A “plantação de igreja” foi o resultado natural de um processo de fazer discípulos não linear e holístico que envolveu comprometimento e sacrifício.
Abraçar a complexidade nesta nova era de missão é um exercício de humildade epistêmica. Não podemos afirmar gerenciar a missão uma vez que não podemos gerenciar Jesus: ele é o nosso imprevisível e selvagem Messias. Como ele e o apóstolo Paulo, fazemos discípulos para plantar igrejas, não o contrário.
De uma liderança centrada no pastor a uma liderança policêntrica mútua
Temos, também, de repensar nosso típico modelo eclesiológico centrado no pastor, certamente isso é pedir muito de uma pessoa. Felizmente, a liderança policêntrica mútua não é uma estrutura hierárquica (nem uma estrutura plana), ela conta com muitos centros que se relacionam entre si. Ela demanda líderes que compartilham a responsabilidade em liderar e seguem em submissão mútua. A Reforma recuperou o sacerdócio do crente na teoria, mas a nova era tenta recuperá-lo na prática. É esse tipo de liderança descentralizada que está melhor preparada para a multiplicação saudável. A seguir, nos voltamos para a virada para os movimentos.
De instituições para movimentos
Uma maneira resumida de descrever o que eu escrevi até este ponto é o retorno da missão aos movimentos. Refiro-me aqui a Movimentos de Fazedores de Discípulos e a Movimentos de Plantação de Igrejas com as seguintes características:
- Holisticamente transformadores;
- Liderados por locais;
- Organicamente complexos;
- Eclesiologicamente adaptáveis;
- Impulsionados pelo evangelho;
- Para a glória de Deus;
- Baseados na Bíblia;
- Dependentes do Espírito Santo;
- Centrados em Jesus.
Na era anterior, a fé bíblica era facilmente concebida e praticada em sua forma institucional. No entanto, hoje vemos maneiras em que a igreja está se libertando de seu cativeiro constantiniano. A eclesiologia adaptativa que testemunhamos nos movimentos fornece evidências disso. “Igreja como instituição” está mudando para “igreja como movimento”. As instituições permanecem vitais para a missão, mas devem servir os movimentos, não o contrário.
Por natureza, movimentos saudáveis são missiológica e teologicamente integrativos. Eles reúnem participantes do Norte global e do Sul global em uma dinâmica equilibrada. A liderança desses movimentos não se encaixa no estilo autocrático, de líderes-celebridade-com-todas-as-respostas. Em vez disso, catalisadores de movimentos unem as pessoas para experimentar e inovar de acordo com oportunidades e necessidades.
Entre na dança
Não deveríamos nos surpreender que esses quatro turnos/estágios são muito mais próximos do Novo Testamento que as práticas da era anterior. Vivemos em um período no qual estamos alegremente redescobrindo os princípios bíblicos dos movimentos. Na verdade, talvez possamos ver os movimentos como uma abordagem natural para a missão, não uma exceção. E, em vez de pensar na década de 2020 como disruptiva, poderíamos melhor vê-la como um catalisador em prol de libertar a igreja para se conectar com o movimento de Deus.
Na rede Motus Dei[3], tratamos essa virada em missões para movimentos como uma nova safra com novas roupagens (wineskins). A tarefa não é apenas meramente imitar heróis cristãos ocidentais de gerações anteriores. O objetivo é recalibrar a fé aos ensinamentos da Bíblia e especialmente à pessoa de Jesus Cristo. Não existe nada melhor e mais inspirador que isso.
Sobre o autor
Wes Watkins é professor assistente de missiologia no Arab Babtist Theological Seminary (ABTS) no Líbano.
Esse texto foi publicado em inglês na página no ABTS em abril de 2022. O conteúdo original pode ser acessado aqui. O Martureo obteve permissão para traduzi-lo para o português e republicá-lo. Tradução: Fernanda I. Schimenes.
[1] Acesse a página 294 de: https://www.ocms.ac.uk/wp-content/uploads/2021/01/Evangelical-and-Frontier-Mission-final-WM.pdf.
[2] Veja artigo completo em inglês em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/239693930402800101