Contextualização: polêmicas no movimento missionário global

O modelo de Jesus, inculturação católica, o movimento infiltrador e princípios para guiar um testemunho cristão em diferentes culturas

Carlos Madrigal Mir

Já disse o pensador espanhol José Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância”.[1] Em outras palavras, nenhuma experiência humana pode ser entendida corretamente à margem das circunstâncias que a moldam. Se queremos que uma mensagem seja significativa para uma dada comunidade, não podemos extrapolá-la de seu contexto cultural.

Desde os tempos de Paulo até “a idade das missões” (séculos 17 a 19), os mensageiros adequaram a mensagem do evangelho aos novos contextos de forma talvez mais intuitiva. No século 21, contudo, ao se fazer uma análise dos logros e erros do passado imediato, a contextualização se converteu em uma disciplina de estudo (e de controvérsia) na missiologia.

A Igreja Católica lança mão do método conhecido como “inculturação”, a saber: “A apreciação do evangelho por parte da respectiva cultura até considerá-lo como próprio”.[2] Mas o que ocorre se a cultura está entrelaçada indelevelmente com crenças e práticas incompatíveis com os valores não negociáveis do evangelho? É útil fazer uma comparação entre o que os evangélicos geralmente entendemos por contextualização e aquilo que significa a inculturação no caso católico:

Convém fazer algumas observações sobre o quadro anterior. Creio que fica clara a parte do risco e da vantagem de um e de outro modelo (parte superior). Apenas um comentário: a meta católica me parece muito sugestiva, mesmo que o risco de cair no sincretismo seja elevado. O único aspecto forasteiro que o evangelho deveria ter para as culturas deste mundo é o fato de vir do céu, não o fato de impor a civilização de uma latitude do planeta à outra. Portanto, o objetivo, sim, deveria ser “fazer sentir o evangelho como próprio da cultura”. Não se encarnou Deus em uma dada cultura para chegar até nós?

Mas penso que a parte inferior do quadro necessita de alguns esclarecimentos. Ela leva em conta os séculos depois do “descobrimento” da América, e nos relembra sobre como identificar a fé cristã com a cultura ocidental afetou desfavoravelmente a extensão do evangelho pelas nações.

Na conquista do chamado Novo Mundo por parte dos espanhóis e portugueses, a evangelização – se é que podemos chamá-la assim neste caso – se dava, em geral, dando a escolher entre abraçar a cruz ou morrer sob a espada. Na prática, a fé no novo continente sofreu uma mescla entre as crenças nativas e a religião do conquistador, sendo adotada pelo povo, em muitos casos, uma fé sincretista. Mais que uma conversão a Cristo, era uma conversão à igreja. Com a emancipação das nações da América do Sul, sendo a Igreja Católica um estado, o Vaticano estabeleceu acordos com cada governo para tentar manter seus privilégios.[3] Esforços mais recentes de algumas ordens intencionalmente buscaram ajudar os povos indígenas a preservar sua cultura.

No caso da América do Norte, depois da independência, mesmo que existissem esforços para evangelizar os nativos, é sabido que mais se optou por expulsá-los de suas terras: eles praticamente foram exterminados nos conflitos de conquista. Na época colonialista, onde nações de corte protestante conquistaram novas terras, especialmente na África e no Oriente, a preocupação maior era exercer um domínio político e econômico. A evangelização não era um projeto de estado, mas sim a iniciativa de distintas denominações que buscavam a conversão e não meramente a profissão formal de fé. No entanto, a cristianização dos nativos era vista como uma forma de civilizá-los. Eventualmente, ela era impedida pelos governos centrais por conta de interesses específicos (poder explorar melhor o povo colonizado, por exemplo). Na África do Sul colonialista, onde a lei proibia escravizar os cristãos, não era interessante pregar o evangelho. Diz-se que, por isso, o governo “cristão” presente na zona permitiu/fomentou a chegada de missionários muçulmanos – assim os nativos não se tornariam cristãos e poderiam continuar sendo escravizados.

No melhor dos casos, tanto católicos como protestantes basicamente exportavam a liturgia ocidental aos novos domínios. Não se podia falar de contextualização, apenas de colonização religiosa, mesmo tendo nascido entre os evangélicos o desejo de fomentar a consolidação de uma igreja nativa.

De tudo isso, surge uma acusação que repetem muitos críticos muçulmanos (ainda que com isso joguem poeira nos próprios olhos). Segundo eles, os africanos denunciam o seguinte: “Quando chegaram os missionários, nós tínhamos nossas terras e eles, sua Bíblia. Agora, nós temos sua Bíblia e eles, nossas terras”. Pois bem, a Grande Comissão não tem aspirações em terras de ninguém. Se, no passado, evangelização e conquista ou colonialismo andaram de mãos dadas, foi por interesses políticos dos impérios em voga, o que também pode ser dito em relação à expansão dos califados. No entanto, hoje em dia, os críticos muçulmanos continuam fazendo a mesma acusação em relação à globalização. Ela é vista como um colonialismo financeiro e cultural imbuído de uma cristianização forçosa do mundo. Por mais absurdo que nos poça parecer, toda iniciativa do ocidente é vista assim. Portanto, faz-se necessário identificar princípios puramente bíblicos para a contextualização.

A honrabilidade oriental

Devido ao fato de o tema contextualização ser controverso, especialmente quando envolve culturas islâmicas, tentaremos definir o que poderia ser uma contextualização acertada para essas latitudes. Mas são necessárias avaliações preliminares.

Primeiro, devem-se identificar alguns aspectos peculiares da identidade oriental que diferem da ocidental, inclusive no contexto do cristianismo. É Santo Agostinho (354-430 d.C.) quem, pode-se dizer, inicia uma forma diferente de analisar a fé na Igreja ocidental. Consciente ou inconscientemente, ele impulsiona um pensamento mais analítico e, portanto, especulativo no ocidente, frente a uma forma de pensar mais coletiva no oriente. A isso chamei teologia “tributária” (ocidente) frente a uma teologia “arbitrária” (oriente). Esclareçamos brevemente os termos.

Arbitrária – Não quer dizer caprichosa ou tendenciosa, mas que a percepção interior (arbítrio) tem primazia sobre a especulação teórica. Daí os eremitas e os ascetas. Em linhas gerais, é um enfoque mais contemplativo e abstraído, sendo a meta a theosis, ou seja, a absorção do humano por parte do divino no homem (como esses ícones nas igrejas ortodoxas, onde o laminado dourado acaba engolindo quase toda a figura). Além disso, é coletiva e por inércia – inscreve-se no conjunto da tradição dos pais sem ao menos questioná-la ou abordar novos tópicos em teologia. Pode-se dizer que promove um apego às cegas.

Tributária – Não tem relação com o pagamento de impostos, mas com render grande tributo à razão, daí a eterna discussão sobre a interação entre fé e razão presente no ocidente desde a escolástica. Ao mesmo tempo, o termo responde a um entendimento mais jurídico do conteúdo da fé: o pagamento da dívida para com Deus – expresso como “justificação pela fé” no caso protestante, i.e., absolvição da culpa perante o tribunal divino por meio da fé nos méritos de Cristo.

Assim, o ocidental é mais propenso a opinar e discrepar de outros. E, portanto, a criar divisões. Por que isso é importante? Porque marca uma diferença fundamental na hora de decidir o que é verdadeiro, seja pela …

  • análise crítica (ocidente) ou por apego aos antepassados (oriente);
  • abordagem inovadora (ocidente) ou por vínculos com a tradição (oriente);
  • decisão pessoal (ocidente) ou por laços com a comunidade (oriente).

O que tem a ver isso com a contextualização nas culturas do crescente fértil? Muito já que a percepção dos valores, da identidade e da exteriorização da fé na comunidade cristã e maometana beberam da mesma fonte cultural. De fato, se alguém não sabe árabe nem aramaico e fecha os olhos em uma igreja siríaca (aramaica) ou em uma mesquita durante a recitação salmodiada do NT ou do Alcorão, dificilmente distinguirá qual é qual. E, em ambas, o pertencimento ao grupo e a fidelidade à herança cultural pujam sobre a iniciativa privada e a análise crítica da verdade.

Assim, as igrejas orientais são igrejas com identidade nacional (i.e., grupo étnico-religioso): Igreja Grega, Igreja Búlgara, Igreja Armênia, Igreja Russa etc. A identidade religiosa vem definida indefectivelmente pela nacionalidade (identidade étnico-cultural) na qual se nasce. Mesmo que no passado isso tivesse também uma versão parecida, sobretudo no ocidente nacional católico, hoje em dia o ocidental pode mudar de “confissão” sem comprometer sua identidade “nacional” ou “cultural”. O que não acontece no oriente, nem sequer entre os cristãos!

Por isso, o evangelho e os convertidos do islã ao cristianismo (os chamados MBBs[4]) são vistos como uma ameaça à integridade da comunidade e como traidores da herança cultural dos pais. Então, se o propósito da contextualização/inculturação é “fazer sentir o evangelho como próprio da cultura”, é possível que os cristãos, em tal contexto, sejam vistos como algo “autóctone” ou algo “próprio”?

É evidente pelo Novo Testamento que uma vivência comprometida da fé cristã não propiciará o aplauso dos poderes opostos ao evangelho. Mas, por sua vez, a Palavra nos insta a buscar uma integração na sociedade, nos animando a orar “para que possamos viver uma vida tranquila e sossegada com toda piedade e dignidade” (1Tm 2.2). Não sou tão ingênuo em acreditar que vamos conseguir tirar por bem o São Benedito dos “traidores” dos MBBs, mas, pelo menos, não sejamos nós quem gere os equívocos ou provoque as reações hostis. É esse o terreno em que teremos de identificar os princípios para uma contextualização acertada.

Após essa breve análise identitária do oriental, estreitemos o cerco de nossa busca para começar a encontrar respostas tratando (também de forma breve) dos valores fundamentais que definem a cultura.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a antropóloga da Universidade de Columbia Ruth Benedict, em um estudo solicitado pelo presidente Roosevelt, popularizou a ideia de que o Japão se baseava na “cultura da vergonha”, diferente do Ocidente, que se baseava na “cultura da culpa”.

Paul G. Hiebert caracteriza a cultura da vergonha da seguinte maneira:

A vergonha é uma reação à crítica que outros fazem de alguém, uma forte preocupação por nosso fracasso ao não cumprir com o que os outros esperam de nós… A pessoa mantém sua autoestima e sua “honra” fazendo o que se espera dela e não fazendo necessariamente o que é bom segundo sua consciência. Na cultura da vergonha, buscamos que os outros pensem bem de nós.[5]

No contexto do Oriente Médio, o correto, o aceitável, se mede com base no que é “honrável”. Algo ou é honrável ou é ofensivo/vergonhoso. Não há termo médio, tudo entra em uma ou outra categoria. Ou, dito em termos bíblicos: ou é “escandaloso”, ou é “de bom nome” (1Co 1.23, Fp 4.8).

Focando especificamente no contexto muçulmano, haveria algo no cristianismo inquestionavelmente “honrável” e “de bom nome”, que não provoque “escândalo” e “ofensa”? Sim e não. Como sistema de crenças e dogmas, como cúmulo de tradições e práticas, tudo no cristianismo é uma ofensa. No entanto, em relação ao amor ao “Livro” (a Bíblia) e à “humildade” de seus religiosos ou crentes, os cristãos são objeto de elogio, inclusive no Alcorão[6]. Além disso, Jesus é venerado – mesmo que como mero profeta –, e todo apego e amor a Jesus é respeitado, inclusive admirado.

Em um relatório de um agente de polícia a respeito de minhas intenções quando me detiveram em 1988 por conta de eu estar distribuindo panfletos na Turquia, estava escrito: “O detido apenas busca despertar simpatias por Jesus”. No meu modo de entender, esta é a chave para uma contextualização acertada: viver e compartilhar Jesus, o Jesus que vive em nós, com fidelidade a seu carácter e ensino. Viver o modelo de Jesus abordado em outros artigos disponíveis aqui.

Recordemos: o modelo não deve se confundir com os métodos. Os envoltórios (métodos) em que apresentamos a Jesus podem ser diversos. Atrevo-me a ir além (fazendo uma análise superficial) – o envoltório pode ser ritualista (ortodoxo), sacramental (católico) ou confessional (protestante). Se é fiel ao “Livro” e “humilde” e se reflete três princípios básicos (que comentarei adiante) de como o próprio Jesus abordou a contextualização em outros círculos religiosos, será também “honrável” e “de bom nome”. Mas antes devemos ainda considerar brevemente outros temas.

Cuidado com os infiltrados

Os princípios gerais em que se baseia a contextualização poderiam ser resumidos da seguinte maneira:

  1. A Palavra é atemporal e supra cultural e, por isso, adaptável a toda cultura em todo tempo.
  2. Contextualizar não é reescrever ou remodelar o evangelho à luz da Antropologia, mas adaptá-lo linguística e culturalmente.
  3. A finalidade da contextualização é apresentar o Jesus vivo, respondendo às perguntas da cultura-alvo.[7]

E acrescentaria…

  1. Quem vai para outro contexto primeiro deve “descontextualizar” a mensagem de elementos da sua cultura de origem.
  2. Todo grupo humano precisa de um marco social e de “vínculos identitários”: relações, tradições, símbolos, festividades… A nova comunidade crente deve provê-los para o convertido.

Um breve comentário sobre o último ponto, muito importante se o objetivo é “fazer sentir o evangelho como próprio da cultura”: de onde surgirão os símbolos, as festividades? Da cultura autóctone? Pode haver um grau legítimo de “importação”, como celebrar a Páscoa? E o que dizer no Natal? Vejam que coisa curiosa. Depois de 2005, por quase uma década a Turquia introduziu uma nova festividade chamada semana do “Kutlu Do-ğum” (Bendito Natal) para festejar o nascimento de Maomé. Queriam ir contra a prática de algumas famílias turcas que colocavam pinheiros com luzes e enfeites para celebrar o fim de ano (e não o Natal), além de outros enfeites semelhantes da “globalização”, ato que, para as autoridades, significava que estavam se cristianizando. (A festividade, por fim, foi anulada por ser considerada uma iniciativa do grupo que tentou o golpe de estado em 2016.)

Desde que Hudson Taylor (1832-1905) decidiu se barbear e se vestir de professor de mandarim, assumiu-se que a mimetização com a cultura, hoje chamada contextualização, é um elemento fundamental da evangelização global. A partir daí, no final século passado chegou-se à famosa escala de John Travis[8]. Travis define 6 possíveis níveis de contextualização da seguinte maneira (os exemplos da tabela são meus):

Paralelamente, entre o fim do século 20 e o início do 21, uma aposta pelo nível C5 definido nessa escala, conhecida como insider movements [movimentos internos ou movimentos infiltradores], ganhou força e colocou em xeque muitos que discrepavam de tal prática. Basicamente, “consiste em seguir Jesus como hindu, muçulmano, budista… isto é, sob a identidade da comunidade sociorreligiosa da qual procede” o convertido[9]. Não quero entrar aqui em uma descrição de tal movimento – do qual discordo –, mas quero buscar as bases bíblicas de uma contextualização acertada. E uso o termo “acertada” de forma muito intencional, em vez de dizer “saudável” ou “correta”, para não entrar em juízos negativos, mas focar uma análise mais orientada à prática. E, se a finalidade da contextualização é “fazer o evangelho compreensível à cultura” e/ou “fazer sentir o evangelho como próprio da cultura”, acredito que o movimento C5 não só não acerta, como também produz efeitos contrários nos que busca alcançar com o evangelho.

Falando claramente, trata-se de disfarçar a fé cristã do islamismo, ainda que o argumento de seus partidários seja não tirar o convertido de sua cultura e comunidade. Mas, quando a imprensa islâmica desmarcara tal prática, ela é percebida como uma tentativa de camuflagem em que os “insiders” são vistos como infiltrados. É como se confirmássemos a suspeita de que os missionários são espiões e os convertidos, traidores. Em seu livro Los Misioneros Ingleses: Agentes de la Explotación Colonialist [Os missionários ingleses: Agentes da Exploração Colonialista], um acadêmico turco diz o seguinte:

Os missionários se ocultam sob disfarces… Um missionário infiltrado na Arábia diz o seguinte: “Eu me vestia como um árabe, vivia como um deles, comia e bebia a mesma coisa. Sabia como eles pensam e conforme isso eu atuava”. (Arquivo Político da República da Turquia, nº 555, expediente: 2.295). Entre os métodos para conseguir muçulmanos que trabalhem por conta do governo inglês (…) o missionário primeiro deve se mostrar como um muçulmano…”[10]

Um trecho de um documento disponibilizado pelo MIT[11] na Turquia intitulado “Proselitismo” (expediente número 11.011.03.153-47-385) fala de como os missionários do grupo chamado C5 pretendem desmantelar a identidade religiosa do país fazendo-se passar por muçulmanos. Segundo o MIT, a organização com sede nos EUA chamada Frontiers Mission…, sob o termo de “contextualização” (i.e., “adaptação cultural”) cunhado pelo Conselho Mundial das Igrejas, mascara suas intenções… com o propósito de se infiltrar entre os muçulmanos.[12]

Talvez pensemos que a coisa mais distante de uma contextualização para o islamismo sejam as igrejas tradicionais. Em contraste, são interessantes as declarações do Patriarca de Antioquia Gregórios III Laham a respeito: “O Bispo melquita Edelby, que participou como protagonista no Concílio Vaticano II, repetia sempre: ‘Nós somos árabes não muçulmanos, orientais não ortodoxos, católicos não latinos’”.

Ele acrescenta:

Nós somos a igreja do islamismo. O islamismo é nosso ambiente, o contexto em que vivemos e com o qual historicamente fomos solidários. Vivemos 1.400 anos entre eles. Compreendemos o islamismo de dentro. Quando ouço um versículo do Alcorão, não é estranho para mim. É uma expressão da civilização à qual pertenço.[13]

De fato, pode-se dizer que na forma de adoração e culto (ibadah), o islamismo foi influenciado pela liturgia da igreja oriental; na forma de muitas mesquitas, foi influenciado pela basílica ortodoxa (Santa Sofia); na teologia, pelas discussões sobre logos e kalam (teologia escolástica islâmica que faz uso de não poucos conceitos da filosofia grega[14]). Por isso, não é descabido pensar que a igreja oriental possa ser a igreja do islã. Consideremos isso no sentido de que a língua (o árabe), o cerimonial (leitura salmodiada), a importância do templo (como a da mesquita), a honra (grande respeito pela religião) e o apego à tradição (aos padres, em um caso; aos dizeres do profeta, hadiths e ao direito canônico, o figh, em outro) mostram paralelismos que não podemos ignorar – ainda que o islamismo tenha se distanciado da ostentação excessiva no rito e da penumbra dos templos ortodoxos, dando-lhe mais simplicidade e luminosidade.

À luz do que foi dito até aqui, o comentário – entre outros comentários positivos – de um artigo de 23 de outubro de 2010, por ocasião do décimo aniversário de nossa igreja em Istambul, com o intuito de “fazer a comunidade crente sentir-se como parte da cultura”, assume uma importância inusitada: “A igreja tem uma luminosidade quase de mesquita…”.[15]

Portanto, um evangelho contextualizado tem algo a aprender com a igreja oriental. Deveria buscar, entre outras coisas: dominar o idioma do povo e a linguagem religiosa; dar dignidade à adoração e, por isso, honra à fé; ser respeitoso com as origens (por exemplo, com os credos dos primeiros concílios ecumênicos; i.e., o Credo Niceno etc.). Em outras palavras, o cristianismo faz parte do contexto do islamismo desde o início, e não tem sentido querer disfarçar isso. Em todo caso, é necessário desvendar os mal-entendidos, não os camuflar. Possivelmente isso seja mais válido para o Oriente Médio do que para o Extremo Oriente. Mas o fato continua sendo o mesmo: disfarçar com a aparência do islamismo o que eles já entendem por cristianismo, a seus olhos, é tentar enganá-los. A imprensa turca, em muitas ocasiões, denuncia “os agentes das potências ocidentais que se camuflam e se escondem em igrejas piratas pelas casas junto com seus assalariados turcos” e os contrasta com “esses cristãos, nossos vizinhos e amigos de toda a vida e suas igrejas com campanário”.

Na cultura de honra e desonra, aquele que esconde ou camufla sua fé é porque se envergonha dela, ou, ainda pior, é porque suas intenções não são boas. Querendo agradar a cultura, provoca o efeito contrário. Como diz um ditado turco, com esse tipo de método, “querendo fazer as sobrancelhas, pode-se acabar arrancando um olho”.

Maquiavelismo paulino?

Na passagem de Paulo a seguir costumam, por excelência, fundamentar as considerações sobre a contextualização, entendendo que Paulo recomenda a conformação aos modos e hábitos das comunidades em que se testemunha do evangelho. Mas ele está falando de preservar formas e hábitos religiosos?

Embora eu seja um homem livre, fiz-me escravo de todos para levar muitos a Cristo. Quando estive com os judeus, vivi como os judeus para levá-los a Cristo. Quando estive com os que seguem a lei judaica, vivi debaixo dessa lei. Embora não esteja sujeito à lei, agi desse modo para levar a Cristo aqueles que estão debaixo da lei. Quando estou com os que não seguem a lei judaica, também vivo de modo independente da lei para levá-los a Cristo. Não ignoro, porém, a lei de Deus, pois obedeço à lei de Cristo. Quando estou com os fracos, também me torno fraco, pois quero levar os fracos a Cristo. Sim, tento encontrar algum ponto em comum com todos, fazendo todo o possível para salvar alguns. Faço tudo isso para espalhar as boas-novas e participar de suas bênçãos. Vocês não sabem que, numa corrida, todos competem, mas apenas um ganha o prêmio? Portanto, corram para vencer. O atleta precisa ser disciplinado sob todos os aspectos. Ele se esforça para ganhar um prêmio perecível. Nós, porém, o fazemos para ganhar um prêmio eterno. Por isso não corro sem objetivo nem luto como quem dá golpes no ar. Disciplino meu corpo como um atleta, treinando-o para fazer o que deve, de modo que, depois de ter pregado a outros, eu mesmo não seja desqualificado. (1Co 9.19-27, NVT)

À luz de todo o ensino do Novo Testamento, qual é o tipo de “contextualização” que Paulo está recomendando nessa passagem? Se é que se fala da mesma coisa que hoje alguns entendem por “contextualização”. Por acaso ele sugere voltar aos ritos do judaísmo ou adotar os costumes religiosos dos pagãos? Está falando sobre fazê-los acreditar que se é um deles, que as religiões de ambos são intercambiáveis? Ou que uma pode englobar a outra…? Talvez isso poderia ser assim no caso do judaísmo. Mas, e no caso do paganismo?

Vou tentar ser o mais claro e conciso possível. Para isso, acredito que será de ajuda reproduzir alguns conteúdos de eslaides de uma apresentação antiga minha acrescidos de alguns comentários:

Seja o que for que Paulo quer expressar quando diz “tento encontrar algum ponto em comum com todos” (v. 22), ele deixa claros a razão e o propósito que o movem: não lutar “como quem dá golpes no ar” (v. 26). Ou seja, não desperdiçar esforços com estratégias equivocadas, já que você tenta “levar muitos a Cristo” (v. 19) ou “salvar alguns” (v. 22). Portanto, não quer errar o alvo, isto é, quer apontar/mirar diretamente na mosca. Quer acertar!

A forma como faz isso é “como sujeito à lei” (v. 20) para os que estão sob a Lei (Torá) e “como independente da lei” (v. 21) para os que não estão sob a Lei (os pagãos).

Em primeiro lugar, é necessário destacar que não diz “me sujeitei à Lei” no caso de seu contato com os judeus, mas diz que atuou “como…”. Estava fingindo? Não! Não fingia, porque aquilo de que fala não é de “se disfarçar” ou “se camuflar”, mas de respeitar o sentir religioso do povo judeu na medida em que isso não comprometia a mensagem, a graça do evangelho. E como sabemos isso? Pelos exemplos que nos deixou na Escritura. Para mencionar um… Enquanto Paulo faz com que circuncidem Timóteo “em respeito aos judeus da região” (Atos 16.1-3), no caso de Tito se recusa a circuncidá-lo dizendo: “Não cedemos a eles [os que queriam obrigá-los a obedecer às leis judaicas] nem por um momento”. Não quero entrar no porquê de, em um caso, ter dito sim, e, em outro, não. Basta dizer que Paulo não se curva aos preceitos de nenhuma religião. Avalia cada caso para evitar sempre todo equívoco possível. Respeita qualquer tradição sempre que não turve a mensagem da graça, isto é, que não dê a entender que tal ou qual prática contribui para a reconciliação com Deus. Aqueles que defendem que os MBBs fiquem sob a identidade e preceitos da religião de origem defendem algo diferente do que Paulo aqui postula.

Por outro lado, quando Paulo diz que atua “como independente da lei”, em seguida esclarece que não ignora a lei de Deus, pois obedece “à lei de Cristo” (v. 21). De novo, a pergunta é: isso quer dizer que ele se mostra como um pagão? Ou, ainda, que praticava os ritos pagãos? De nenhuma maneira! Quer dizer que procurava ser respeitoso, e não queria ofender ou causar obstáculo. Outra vez, Paulo não se coloca sob a religião pagã, quer dizer, não oculta sua identidade “cristã” para aparentar ser um deles (caso contrário, teria tido uma oportunidade excelente em Listra: Atos 14.11-14). Aqueles, então, que defendem que os convertidos permaneçam sob a identidade da religião majoritária, repito, defendem algo diferente do que Paulo aqui expressa. E os exemplos geralmente expostos para sustentar o contrário, na verdade, confirmam o que foi dito aqui.

Em Atenas, por exemplo, Paulo anuncia abertamente o ressurreto e que o juízo final ficará a cargo de Jesus Cristo (Atos 17.31), por mais que comece aludindo ao templo do deus desconhecido. Com isso, não está legitimando o culto do referido templo, mas destacando que os atenienses desconhecem algo que ele quer anunciar. Igualmente, quando cita alguns autores pagãos em suas epístolas, não o faz por considerá-los inspirados, mas para mostrar que os próprios poetas ou filósofos mencionados destacaram pontos parecidos com os de sua argumentação. E, pela mesma razão, no Concílio de Jerusalém, os gentios não são obrigados a se tornarem judeus (circuncidando-se). Somente lhes é pedido que se abstenham (Atos 15.29) de três práticas que podiam escandalizar seus irmãos de origem hebraica.

Quando Paulo diz em 1 Coríntios 9 que se fez como os judeus e como os gentios, não fala de incorporar preceitos de outras religiões, mas do que foi acordado no Concílio de Jerusalém: abster-se de tudo o que possa ser escandaloso para essas culturas (v. 25-27). Não se trata de se conformar a costumes, mas de renunciar a direitos! Assim diz: “Disciplino meu corpo como um atleta, treinando-o para fazer o que deve [conter-me] (v. 27; tema recorrente, como se lê em: At 24.25; 1Co 7.5, 9; Gl 5.23; 2Tm 1.7). Essa contenção, ainda que inclua o distanciamento de qualquer prática pecaminosa, no desenvolvimento de seu argumento nos capítulos 8, 9 e 10 de 1 Coríntios se refere, sobretudo, a estar disposto a se abster de comer carne (1Co 8.13), a renunciar ao apoio econômico da igreja de Corinto (1Co 9.12) e a recusar qualquer alimento oferecido a ídolos (1Co 10.27-28). E por quê? Para não servir de obstáculo nem a uns, nem a outros. Não apenas NÃO defende amalgamar preceitos de outras religiões, mas também fala em evitar aquelas práticas legítimas da sua liberdade em Cristo que possam ser ofensivas, ou seja, causar tropeço. E conclui dizendo: “Não ofendam nem os judeus, nem os gentios, nem a igreja de Deus” (1Co 10.32).

Dito de forma grotesca, não fala de parecer muçulmano (ou budista, ou hindu ou…), mas de não parecer um templário. Ou seja, não fala de se disfarçar com as credenciais de outras religiões, mas de se despojar de qualquer prática que poça ser escandalosa para aqueles que vão escutar a mensagem. Não se trata de assimilar práticas religiosas, mas de renunciar inclusive às liberdades que possamos ter em Cristo. O “fiz-me escravo de todos” é para evitar distrações e centrar todas as atenções no evangelho, não para ocultar a identidade cristã. Ninguém fala de proclamar aos quatro ventos que se uniu a Jesus se, com isso, há perigo para sua vida. Nem sequer a primeira geração de crentes trabalhava assim. E isso ainda que estivessem dispostos a sofrer o martírio por Cristo e, às vezes, até o desejassem. Mas, se pelo fato de nossa identidade em Cristo ser descoberta “sofrerem por ser cristãos”, como diz Pedro, “não se envergonhem; louvem a Deus por serem chamados por esse nome!” (1Pe 4.16). Com isso, não busco envergonhar àqueles que, em um contexto hostil, adotaram o modelo infiltrador. Mas, sim, digo com todo meu amor em Cristo que essa não é a maneira de glorificar a Deus. Por quê?

É importante tornar conhecido como os próprios críticos islâmicos interpretam a passagem. Eles acusam Paulo – e os que queremos seguir seu exemplo – de fazer o que o movimento infiltrador postula. Para eles, “Embora não esteja sujeito à lei, agi desse modo para levar a Cristo aqueles que estão debaixo da lei” (1Co 9.20) quer dizer imitar as práticas religiosas do islã, ou seja, falsificá-las. Segundo eles, Paulo defende qualquer tipo de disfarce/engano para iludir os muçulmanos. Com respeito a “Quando estou com os fracos, também me torno fraco…” (1Co 9.22), quer dizer aproveitar-se da desgraça alheia para comprar os que estão em uma situação de necessidade. Por último, “tento encontrar algum ponto em comum com todos, fazendo todo o possível para salvar alguns” (1Co 9.22) quer dizer: “O fim justifica os meios” (maquiavelismo). Segundo isso, o que importa é fazer adeptos a qualquer preço; se o método é ou não ético, não vem ao caso. Vamos lhes dar a razão aplicando essas passagens na forma distorcida como eles as mal interpretam?

Quais seriam os princípios que deveriam nos guiar em termos de uma “contextualização” bíblica e acertada? Aqueles que não comprometem os princípios inegociáveis do evangelho, identificáveis a partir das seguintes peguntas-chave e seus versículos-guia sobre nossa forma de contextualizar:

  1. Compromete a mensagem da graça?

Admiro-me que vocês estejam se afastando tão depressa daquele que os chamou para si por meio da graça de Cristo. Vocês estão seguindo um caminho diferente que se faz passar pelas boas-novas, mas que não são boas-novas de maneira nenhuma. (Gl 1.6-7)

  1. Compromete a mensagem da exclusividade de Cristo?

Vocês aceitam de boa vontade o que qualquer um lhes diz, mesmo que anuncie um Jesus diferente daquele que lhes anunciamos, ou um espírito diferente daquele que vocês receberam, ou boas-novas diferentes daquelas em que vocês creram. (2Co 11.4)

  1. Compromete a honestidade dos mensageiros?

Rejeitamos todos os atos vergonhosos e métodos dissimulados. Não procuramos enganar ninguém nem distorcemos a palavra de Deus. Em vez disso, dizemos a verdade diante de Deus, e todos que são honestos sabem disso. (2Co 4.2)

Na prática, como se aplicam esses princípios às mil e uma situações que enfrenta o novo convertido nas relações com seus parentes e com a comunidade muçulmana? De acordo com os princípios-guia de não comprometer a graça, a mensagem da exclusividade de Cristo e a honestidade dos mensageiros,

  • quanto à comunidade, deveríamos…

a) aceitar carne do sacrifício? (1Co 10.27-28)

b) circuncidar os filhos de convertidos?

c) ir ao enterro de parentes na mesquita?

  • quanto aos rituais, deveríamos…

d) praticar o Ramadã? Compartilhar o iftar?

e) assistir às rezas da mesquita? (2Rs 5.18-19)

f) cumprir com o rito das 5 orações diárias?

  • quanto à religião, deveríamos…

g) reconhecer o profeta e o Alcorão? (Tt 1.12)

h) ir aos templos, às festas religiosas? (At 17.23)

i) aceitar matrimônios com muçulmanos/as?

Todas as questões aqui mencionadas são situações cotidianas e de grande envergadura para a relação do novo crente com seus parentes e entorno não crente. O que deve fazer o novo convertido? A pergunta-chave é e deve ser: com minha ação, estou dando a mensagem de que longe da graça há outro caminho para se aproximar de Deus? Ou seja, guardando determinado rito religioso, os que me veem vão pensar que, no meu entender, Jesus é tão válido quanto as práticas às quais me uno? Em tal caso, devemos nos abster disso.

Do contrário, se felicito meus vizinhos muçulmanos (que sabem que sou cristão) nas festas, não por isso vão pensar que me tornei muçulmano, mas sim que sou um vizinho afável e educado, e o correto é ser afável e educado! Se o prefeito do nosso distrito em Istambul nos convida a ir ao último iftar do Ramadã (refeição do anoitecer com qual se rompe o jejum diurno) para dizermos algumas palavras como representantes da igreja a 1500 comensais, é melhor não fazer feio! Por isso, nosso modelo deve ser Jesus mesmo e tudo aquilo que guia a Jesus. Aquilo que permita que Jesus resplandeça em nós e entre todos. O que ponha todos os olhares nele é o que temos de perseguir!

–––

Para finalizar esta reflexão, proponho umas últimas perguntas quanto ao no modelo C5. Creio que, com elas, cada um poderá encontrar por si mesmo/a a resposta sobre a conveniência ou não de tal modelo. O C5 busca evitar o desarraigo dos MBBs, mas…

  • Como será a reação dos muçulmanos ao perceber que aquele que se faz passar por muçulmano é cristão?
  • Provê o C5 um modelo universal, válido para qualquer cultura religiosa?
  • Possibilita a comunhão unida de todo o corpo de Cristo? Ou seja, poderiam os crentes de outras culturas adorar junto aos C5 na mesquita sem causar qualquer desconforto aos muçulmanos?
  • O modelo C5 facilita transferir a fé em Cristo às próximas gerações? O que ocorrerá com o filho/a do crente que cresce educado como muçulmano pelo resto dos parentes?

Convivência e confissão

Outro extremo é, na convivência (i.e., no viver junto) com os amigos muçulmanos, os cristãos demonizarem tudo o que é da “cultura islâmica”. No meu entendimento, não somos nem devemos ser a “civilização cristã” enfrentando a “civilização muçulmana” (ou a “civilização budista” ou qualquer outra). Nosso sentido de cidadania deve estar pura e exclusivamente nos céus. Se muitos ocidentais acreditam que todo muçulmano é um terrorista em potencial, muitos deles, por sua vez, acreditam que ser cristão é ser ocidental e, por conseguinte, imperialista. Segundo essa regra de três, o sérvio Milosevic era um cristão em uma santa cruzada de extermínio contra os muçulmanos bósnios.

Devemos no desvencilhar desse tipo de enquadramento, e nos apegarmos a uma identidade arraigada apenas e plenamente em Jesus. Isso implica em quê? Em discernir o modelo de contextualização utilizado por ele próprio. Talvez não possamos falar de um modelo no sentido estrito da palavra, mas creio, sim, ser possível identificar alguns princípios.

Podemos dizer que Jesus “contextualizou” sua mensagem? O mero ato da encarnação e da inspiração da Palavra assim o sugere. Ele se fez um de nós, e falou como um de nós!

Comecemos com a pergunta: os valores culturais nos quais se moveu Jesus eram humanos e, portanto, podiam ser questionados, ou eram divinos e, por isso, intocáveis? Na Palestina do século primeiro, sob o domínio romano, confluíam muitas culturas. No caso da cultura religiosa, em linha com a revelação veterotestamentária, Jesus a qualificou muitas vezes como “tradições” ou “mandamentos de homens” (Mt 15.3, 9), e não se casou com ela. Em seu contato com vários pagãos (Mt 8.5; 15.22; Jo 12.20), Jesus também não os desqualificou por seu contexto. Além do chamado à conversão dos ídolos ao Deus vivente, no Novo Testamento não encontramos confrontação com as “outras religiões”. A confrontação não é o caminho.

O que, sim, encontramos no ministério de Jesus é uma dura censura tanto à hipocrisia – seja dos poderes reinantes (Herodes, Lc 13.31-32; os governantes deste mundo, Mt 20.25), seja dos líderes religiosos (as trapaças e os legalismos farisaicos, Mt 23) – como à injustiça social, à falta de humildade, misericórdia, solidariedade, integridade… (Mt 9.13; 12.7). Problemas presentes em todo ser humano de qualquer cultura e que constituem o âmago do pecado, que é o que ele veio desfazer.

Por outro lado, encontramos em Jesus a disposição de entrar em todo tipo de ambiente: esteve entre publicanos, prostitutas, pecadores, marginalizados, fariseus, religiosos, principais… Jesus não teve problema em entrar sem condições prévias onde estavam as almas perdidas. Mas não para se adaptar ao seu estilo de vida, mas para resgatar suas vidas! Não para confraternizar, mas para amá-los com amor fraternal!

O que também encontramos é que nunca fez concessões no que diz respeito à verdade revelada, seja sobre sua identidade divina (Jo 10.30-39) ou sobre os fundamentos da fé (Mt 22.23-33). Fosse ou não escandaloso! Estes dois versos nos dão uma pauta da mais suma importância: “As Escrituras não podem ser alteradas” (Jo 10.35) e “O erro de vocês está em não conhecerem as Escrituras nem o poder de Deus” (Mt 22.29).

Que lições os princípios podemos perceber de seu exemplo? Estes são os 3 princípios básicos que, entendo, desprendem-se de como o próprio Jesus abordou a contextualização:

1. Nenhuma cultura é divina ou demoníaca per se.

Em toda cultura, podem ser identificadas pautas de comportamento que poderíamos chamar de neutras. Evidentemente, não falo de nada que se oponha explicitamente aos mandamentos de Deus. Discernir se algo é apropriado ou se deve ser descartado está relacionado a isso validar ou atrapalhar a prática e a expressão da verdade sobre Jesus.

Tomando como exemplo nosso contexto na Turquia, é válido não apenas conhecer bem as crenças locais, mas explicar o evangelho a partir desses esquemas religiosos, usando terminologia islâmica para esclarecer conceitos da fé. Valorizar costumes familiares e sociais orientados por hospitalidade, solidariedade, respeito aos mais velhos, proteção dos menores… Orar com as palmas viradas para o céu como eles fazem. Mostrar respeito por seus momentos de devoção e seus templos (como Paulo fez em Atenas). Mas tudo isso sem criar um clima de confusão do tipo “tudo é a mesma coisa”.

Se queremos que o evangelho seja percebido como próprio da cultura, o primeiro passo é chegar a sentir a cultura como própria. Isso começa pelo domínio do idioma, por conhecer a história e, indo além, por não enviar os filhos para estudar fora, mas arraigá-los no país. Adaptar-se não é adquirir as formas externas, mas sim os sentimentos internos: é desfrutar, por exemplo, das obras de arte, literatura, escolas de pensamento, provérbios, contos exemplares e estilos musicais ou chegar, inclusive, a uma identificação com o patriotismo local ao ponto de começar a ver as políticas de “nossa” cultura ocidental com os olhos locais. É, por exemplo, planejar as férias com uma família vizinha sentindo-se confortável e feliz por compartilhar o tempo com esses amigos. Vincular-se!

2. Compartilhar a vida

Podemos e devemos compartilhar nossa vida com os amigos locais, em seus ambientes e de acordo com seus costumes. Compartilhar o chá, a mesa, a comida, a casa, o tempo (sobretudo o tempo). Sem evitar falar de nossa fé e escutando-os quando falam da sua. Quando apropriado, oferecer-se para orar por eles, abençoando-os em nome de Jesus. Trata-se de uma relação genuína de amor ao próximo, de intercâmbio de hospitalidade, amabilidade e respeito, e de uma vontade de honrar a Deus, não de substituir religiões.

3. Não fazer concessões no terreno da fé, nem quanto à identidade cristã, identificando-nos “cristãos” ou “seguidores de Isa (Jesus)”

As áreas em que temos de fazer sacrifícios e concessões são as que envolvem amá-los, levar suas cargas, transparecer Jesus em nossas reações humildes e pacíficas (inclusive diante de perseguição). Podemos fazer isso vestidos à paisana, com colarinho clerical ou à moda berbere. Não é a forma, mas o conteúdo, que importa. Cuide parta não cair em uma mera imitação externa e, portanto, oca.

Podemos resumir os 3 princípios apresentados da seguinte forma:

1) Adaptar-se a tudo que a cultura tem de bom, sentindo-a como própria. Isto é, CONtextualizar mostrando…

2) Uma aproximação para com todos, sem limites nem preconceitos, em uma CONvivência de bons vizinhos, mas…

3) Mantendo uma clara distinção na CONfissão, isto é, em nossa identidade como seguidores de Jesus.

Essa é a melhor forma de refletir a Jesus (a Imagem), de aproximá-los de Jesus (a Benção) e de honrar a Jesus (a Glória).

O que é conviver e o que é confessar? Conviver, de acordo com o dicionário, é viver na companhia de outro ou outros. Quer dizer viver com…, compartilhar todas as vivências, círculos, costumes e contextos sociais, não como correligionários, mas como bons vizinhos! Compartilhar as comidas, o humor, o ócio, os momentos familiares, as celebrações populares etc. Ser um a mais com eles. É viver em paz e harmonia com todos! Mesmo que nem sempre seja possível, visto que Jesus e todo o NT nos alertam de que também sofreremos rejeição. Mas, “no que depender de vocês, vivam em paz com todos” (Rm 12.18).

Assim também, enquanto dependa de nós, devemos evitar o desarraigo da comunidade. O nosso e o dos convertidos. Mas nem sempre é possível, e disso também nos advertiu Jesus: “Vim para pôr o homem contra seu pai, a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra. Seus inimigos estarão em sua própria casa” (Mt 10.35-36). O suporte do crente deve ser oferecido sobretudo na comunidade de crentes. É ali onde encontrará o acolhimento, as pautas de comportamento, seu valor em Cristo e o ânimo para enfrentar adversidades.

Confessar (ou professar), também de acordo com o dicionário, é “expressar voluntariamente os atos, ideias ou sentimentos verdadeiros”. Significa, portanto, não ocultar nossas convicções (nossa fé) de outros próximos. No caso dos convertidos do islã, antes ou depois – sem temeridades e, sim, com prudência – todo convertido deve ser expoente visível da vida, fé e pessoa de Jesus. Ser crente significa isso. Há uma diferença abismal entre NÃO DECLARAR a todo o mundo QUE SOMOS de Cristo em contextos de risco, e DAR A ENTENDER que NÃO SOMOS cristãos ao nos identificarmos como membros da comunidade de fé islâmica. Podemos, e inclusive em dadas ocasiões é aconselhável, argumentar que um verdadeiro seguidor de Jesus é “mais” muçulmano (i.e., submetido a Deus) do que tantos muçulmanos nominais. Mas, em tal caso, não estamos ocultando nossa identidade cristã, mas reafirmando-a. Se alguém não quer ser chamado de “cristão”, está bem. Não é um assunto de nomenclatura. Pode se identificar como “seguidor de Isa (Jesus)” (ou lançar mão de outra forma de expressão que seja adequada). O que não se pode fazer é dar a entender que continua sendo, ao mesmo tempo, seguidor tanto de Maomé quanto do Alcorão como de Jesus e da Bíblia. Não é honesto nem respeito consigo mesmo, nem com seu entorno, nem sequer com o islã. Nem muito menos para com o Senhor!

Claro que é necessário contextualizar. Mais do que isso: é necessário “encarnar-se”! Jesus, mais do que contextualizar, se encarnou. Ele não veio nem para bajular os costumes, nem para combatê-los. Veio para se identificar, sofrer por nós e conosco para então abrir um único e exclusivo caminho de salvação. Não contemporizou com os religiosos, nem com os profanos. Conviveu com ambos e se desligou de ambos! Aqueles que aguardavam por um algo mais de Deus não foram atraídos a ele pelo fato de ser condescendente com seus hábitos religiosos ou com suas vidas prosaicas, mas porque ele os amava tal como realmente eram. Ele se identificou tanto com os Nicodemos como com as Madalenas, e os encaminhou à verdade libertadora. E isso acontecia por convidá-los a segui-lo sem dissimulações.

Podemos e devemos respeitar toda prática elevada de qualquer religião ou cultura, mas o que não podemos nem devemos fazer é desnaturalizar o evangelho para limar asperezas com outras religiões, nem para edificar um credo e práxis religiosa de uso comum. Há conceitos sobre os quais podemos dialogar, esclarecer e polir definições. Como o tema de se o fatalismo (muito presente no islã) afeta ou não a melhora social – para trazer um caso. Há crenças comuns que podemos e devemos usar como pontes: como o sacrifício de Abraão, a fé nos profetas, o nascimento virginal, os milagres de Jesus… Já mencionamos como Paulo citou autores pagãos de seu tempo, o que mostra que havia estudado. Mas o que não fez foi ceder e se valer de “argumentos persuasivos e astutos” (1Co 2.4) para fazer o evangelho mais atraente à cultura clássica.

Qual dos dois perigos é maior: a camuflagem ou o entrincheiramento? Ambos! Se permanecemos em nossos bunkers cristãos, demonizando todo que não é como nós, fechamos a porta a todos os de fora. Se oferecemos fidelidades divididas que criam confusão aos próximos e alheios, não colheremos com Jesus, esparramaremos.

O modelo de Jesus nos dá pautas claras: nem confrontar, nem contemporizar! Mas, sim, conviver e confessar. Não somos nem devemos ser chefes nem ao menos de nossa versão da cristandade. Também não devemos ser imitadores de ninguém mais do que de Jesus. A chave não está nas formas, mas no conteúdo. Apenas pelo poder e clareza do evangelho “encarnado” em nós, apresentado em amor, humildade e sacrifício, poderemos ser como Jesus entre eles. E Jesus, sim, é honrado!

 

O texto foi extraído do livro Recomponiendo La Missión Con Jesús – Reflexiones sobre la misión, sobre la tarea global y sus implicaciones para el mundo [Recompondo a missão com Jesus – Reflexões sobre a missão, sobre a tarefa global e suas implicações para o mundo], publicado na Espanha por Impresiones em 2018. O Martureo recebeu autorização do autor para traduzi-lo e publicá-lo. Tradução: Lucas F. R. Juknevicius. Edição: Fernanda Schimenes.

Sobre o autor
Carlos Madrigal nasceu em 1960 em Barcelona, e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador com 20 anos. Formado em Belas Artes, de 1982 até 1995, trabalhou em diversas agências de publicidade como diretor de arte, tanto na Espanha quanto na Turquia. Em 1985, ele e a família mudaram para Istambul para servir ao Senhor ali, onde estabelecem várias igrejas e diversos ministérios que continuam liderando até hoje. Estudou também Literatura Turca (Universidade de Istambul) e Teologia. Em 2001, começou a trabalhar oficialmente como pastor fundador na Igreja Protestante de Istambul, primeira igreja evangélica não étnica reconhecida oficialmente pelo governo da Turquia (www.fipestambul.org). Publicou 15 títulos em língua turca de temas diversos: devocionais, doutrinais, evangelísticos, exegéticos e apologéticos.

 

Que tal ler outros textos do mesmo autor?
Perseguição e martírio de cristãos
As qualidades que deve reunir o pioneiro
Visão de mosca: distrações no cumprimento da tarefa global

 

[1] Ortega y Gasset, José. Obras completas, Vol. I. Ed. Taurus/Fundación José Ortega y Gasset, Madrid, 2004, p. 757.

[2] http://www.ucbcba.edu.bo/Publicaciones/revistas/yachay/yachay_2. html, 30.08.2011.

[3] Esse costuma ser também o processo que persegue a Igreja Romana em outros países de religião de maioria não católica: acordos entre estados.

[4] MBB: Muslim Background Believer [crente de origem muçulmana].

[5] https://alreguelajat.com/2017/01/04/196-la-cultura-de-la-culpa-y-la-cultura-de-la-verguenza, 30.8.2018.

[6] Alí Emran 3/113-114: “Nem todos são iguais. Entre a gente do Livro, há uma comunidade honrada: pela noite, recitam os versículos de Alá e se prostram, creem em Alá e no último Dia, ordenam o que está bem, proíbem o que está mal e rivalizam em boas obras. Os tais, são dos justos”. Al Maeda 5/82: “Verás que os mais hostis aos crentes são os judeus e os associados, e que os mais amigos dos crentes são os que dizem: ‘Somos cristãos’. Há entre eles sacerdotes e monges e não são altivos”.

[7] Pontos adaptados a partir da seguinte fonte: A Biblical Theology of Contextualization, GLOBAL MISSION, Reflections and case Studies in Contextualization for the Whole Church, Rose Dowsett Ed., WCL, 2011, 13.

[8] John Travis, “The C1 to C6 Spectrum: A Practical Tool for Six Types of Christ Centered Communities Found in the Muslim Context”, Evangelical Missions Quarterly, Outubro, 1998, p. 407-408

[9] H. L. Richard, moderator, “Unpacking the Insider Paradigm: An Open Dis-cussion on Points of Diversity”, International Journal of Frontier Missiology, 26:4 Winter 2009, p. 176.

[10] Prof. Dr. Ihsan Süreyya Sirma, Sömürü Ajani Ingliz Misyonerleri, 11a Ed., Beyan Yayinlari, Estambul, 1993, p. 12, 14 e 82.

[11] MIT: “Millî İstihbarat Teşkilâtı” (Centro Nacional de Inteligência).

[12] http://www.risaleajans.com/gundem/mitten-diyanete-gizli-misyoner-lik-yazisi, 30.08.2011.

[13]  http://www.30giorni.it/articoli_id_9625_l2.htm, 30.08.2011.

[14]  Madrigal Carlos, APOLOGIA. My Defense vs Islamic Critics of the Gospel, ©Carlos Madrigal, 2016, p. 80-82 (Sob: The Self-Humiliation of the Logos: A Platonic Invention?).

[15] Kaplan Sefa, “İlk sivil kiliseye Diyanet’ten destek”, Hürriyet, 23.10.2010.

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