A sociedade secular é um mito

Resenha de O Evangelho em uma Sociedade Pluralista, de Lesslie Newbigin

Davi Daniel de Oliveira

O autor

Lesslie Newbigin (1909-1998) foi pastor da Igreja Reformada Unida no Reino Unido, bispo da Igreja do Sul da Índia e secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas. Conhecido e respeitado internacionalmente como teólogo e apologista, é uma referência para missiólogos e teólogos contemporâneos em todo o mundo. Muitos estudiosos veem que seu trabalho lançou os fundamentos dos movimentos contemporâneos de “igrejas missionais” devido à grande relevância de seus escritos quanto aos aspectos eclesiológicos. Ele é autor de diversos outros livros, dentre os quais O Segredo Revelado: Uma Introdução à Teologia da Missão (Vida Nova, 2019).

Perspectiva teórica da obra

Ao longo de toda a obra O Evangelho em uma Sociedade Pluralista (uma publicação da Editora Ultimato em parceria com o Martureo e o Seminário Teológico Servo de Cristo em 2016), Newbigin faz uma defesa do evangelho em termos racionais e filosóficos. A natureza explicitamente apologética recorre a todo momento às estruturas da lógica e da dialética para provar seus pontos. Tese, antítese e sínteses são vistas nas entrelinhas de suas argumentações (às vezes, de forma não necessariamente velada). Não deixa de ser curioso o fato de o autor fazer uma crítica às estruturas de plausibilidade em que vivemos valendo-se, ao mesmo tempo, de seus artifícios para provar seus pontos. Possivelmente, Newbigin está tão somente aplicando aquilo que ele mesmo deixou evidente ao longo de suas páginas: o cristão tem de habitar na era presente, entendendo seu entorno e propondo respostas que sejam condizentes com seu tempo.

Sua construção parte de argumentos essencialmente técnicos e de ordem filosófica para embocar na realidade espiritual da dinâmica de funcionamento da comunidade dos eleitos por Deus para serem portadores e mensageiros de sua verdade. É uma construção interessante, compassada, recheada de bons argumentos e coesa do princípio ao fim.

Principais teses desenvolvidas na obra

Dogma e dúvida. O dogma é rechaçado pelo espírito de nosso tempo. A dúvida, por sua vez, é encarada como algo “nobre”: os que duvidam são honestos e sinceros, pois as estruturas de plausibilidade em que vivemos não nos permitem pensar em nada em termos absolutos – a dúvida e a incerteza são elementos inseparáveis de nossa cultura.

Por estruturas de plausibilidade, o autor entende simplesmente como todo o arcabouço de pensamentos e cosmovisões a que um indivíduo ou sociedade está ancorado para tomar suas decisões e realizar suas ações no mundo. Nesse ambiente, o pluralismo é algo valorizado e aprovado – sem questionamento –, e essa forma de ver o mundo e nele agir pondera que não há padrão oficial aprovado para crenças e condutas.

Assumimos o racionalismo como a régua de medir onde nada pode ser considerado como “verdade” sem que seja submetido à experimentação e ao escrutínio científico. Todo o resto está no campo subjetivo dos “valores”.

A tensão dicotômica entre “fatos” e “valores” é o que leva à igualmente dicotômica compreensão de que ciência (ou razão) e fé são objetos de diferentes esferas. Fé nunca pode ser algo objetivo, somente uma questão de preferência pessoal.

Bem, aceitar esses postulados descritos acima é, da mesma forma, uma questão de dogma. Sequer é razoável pensar em postulados científicos sem considerar uma certa dose de “fé” em pressupostos, mesmo que sejam da ordem da racionalidade. Um conhecimento sempre começa como um ato de fé, pois acreditamos em nossos professores universitários que, por vez, estão amparados em literaturas acadêmicas que, igualmente, são julgadas à luz de pesquisa científica e por aí vai. Mesmo a crítica que realizamos a objetos de fé (até mesmo em questões científicas) está ancorada em outros conhecimentos prévios que seguiram o caminho apontado acima. E os que fazem a dicotomia entre “fatos” e “valores” geralmente não consideram que todos os fatos são “fatos interpretados” e que, dessa forma, dependem da construção do conhecimento do esquema acima. Não há como saber sem crer.

Além disso, o esquema relatado acima (professor-academia-pesquisa) também habita em uma tradição, a tradição científica. Não podemos falar em termos de “minha biologia” ou “minha física molecular”. Há pesquisa e esforço científico para delimitar o que está em cada um desses tipos de ciência. Muita pesquisa e postulados científicos são simplesmente rechaçados e considerados inapropriados se não seguirem – ou, em certa medida, respeitarem – os limites dessa tradição científica. Ainda que essa tradição seja sempre desafiada e sempre reformulada, o progresso da ciência só é possível devido a ela. É o que o autor chama de habitar na tradição, viver em função dela e de ela ser embaixadora e mensageira.

Um dos principais desafios que o iluminismo do século 18 trouxe para a comunidade cristã foi a tentativa de enquadrar o cristianismo nessa estrutura de plausibilidade. Cristãos “iluministas”, ancorados nos pressupostos desse pensamento, tentaram (e, devo dizer, alguns ainda vivem nessa lógica) domesticar o cristianismo para que se encaixe nesse esquema. Claro que o fracasso foi estrondoso, pois são estruturas de plausibilidade completamente diferentes e antagônicas entre si. O cristão precisa, no entanto, habitar em duas tradições distintas: a bíblica e a da sociedade em que vive, não domesticar uma à outra.

As grandes religiões do mundo – principalmente o cristianismo, o judaísmo e o islamismo – se desenvolveram ao longo de sua história dentro de uma tradição contínua e de significado. É muito difícil descrever a história sem uma visão de significado, pois lançaríamos mão do desespero e de um senso de falta de propósito perigoso. Escrever uma história implica eleger o que é relevante contar e o que não é. Isso é ser seletivo (pressupõe algum tipo de julgamento): o que é importante ser narrado e o que pode ser deixado de fora. É por isso que, dentro do pensamento cristão, faz muito sentido a lógica da eleição – Deus, ao narrar sua história por meio da nação de Israel e (dando continuidade) por meio da comunidade de Jesus, nos mostra o que ele entende como sendo mais importante e o que deve ser preservado – e anunciado.

A narrativa dessa história nos é trazida pelas Escrituras. A Bíblia é essencialmente uma história, uma história universal. Essa estrutura de plausibilidade que vê tudo sob a ótica de uma metanarrativa contada por Deus e que impõe sobre nós um significado e um propósito de vida (e uma agenda de ações a serem realizadas no presente) é, sem dúvida, uma alternativa às estruturas de plausibilidade de nosso tempo fundamentadas no consumo e na falta de sentido e esperança.

Cristo é a grande chave, fonte e objetivo dessa história – nele temos o “fim da história”, pois nele temos consumada a história com a chegada do reino de Deus. A igreja precisa renunciar urgentemente à pretensão de controle da história, pois esse controle é de Deus, são suas as obras.

Uma prova de que o evangelho muda o curso dos acontecimentos é o fato de a narrativa bíblica sempre partir do todo para as partes, algo muito diferente dessa visão individualista de nosso tempo. Esse todo (a comunidade dos crentes) é que deve portar a missão de Jesus, o segredo de seu reino que é próximo – e presente. No cerne dessa questão está a necessidade de colocarmos o alívio e a justiça no centro da proclamação. Não se pode pensar em termos de tensão ou incompatibilidade entre justiça e proclamação – pelo contrário, elas se complementam e devem caminhar juntas.

A proclamação ocorre, necessariamente, no contexto em que seu interlocutor está. Isso demanda um esforço do detentor da mensagem em fazer com que ela seja inteligível e responda aos desafios e anseios que seu interlocutor passa no presente momento. A isso chamamos contextualização. O que a igreja precisa urgentemente entender é que, nesse esforço para a transmissão contextualizada do evangelho, ela não é a detentora da verdade, ela apenas sabe o caminho para tal. É uma busca constante pela verdade – não é por menos que um dos sinônimos mais precisos para o seguidor de Jesus é discípulo.

Na busca de ensinar o caminho a outros – na verdade, irmos juntos –, nossa única tarefa é fundamentar o que está acontecendo com o mundo agora, como o entendemos e como podemos participar dele. Essa é a base do diálogo respeitoso – daqueles que optam por participar da história, ou, melhor dito, daqueles que foram eleitos para ser dela participar e que agora são incorporados e impulsionados a compartilhar.

A cultura basicamente é a forma como as pessoas ordenam suas vidas de forma coletiva. Precisamos considerar que a cultura não está acima do bem e do mal. Há aspectos bons e ruins nela – ninguém em sã consciência está disposto a aceitar um relativismo absoluto. A grande questão é que o padrão pelo qual o que pode ser considerado bom e ruim em uma determinada cultura não pode ser uma convenção coletiva ou uma preferência pessoal – mas o evangelho. O evangelho não encontra problemas com um número de expressões culturais ao redor do mundo, mas definitivamente não aprova um relativismo absoluto e niilista. Cristo é o paradigma e Deus, aquele que aceita e ao mesmo tempo julga a cultura.

A sociedade secular é um mito, uma instituição social aceita e que raramente é desafiada. Essa estrutura de plausibilidade, contudo, é frágil internamente, e não fornece alimento suficiente para o espírito humano. A congregação reunida em volta do evangelho precisa:

  • ter a coragem de não aceitar o pluralismo como ideologia dominante,
  • estar preparada para compreender que não há neutralidade secular (e nem científica) e o que os limites dessa compreensão trazem de implicação para sua própria vida e para a vida dos outros.

Esses outros são tanto os de dentro da comunidade quanto os de fora. Os impactos das ações dos cristãos são vistos por meio de suas ações no mundo, como cada indivíduo se comporta. Uma liderança cristã, portanto, que seja habilitada para capacitar, incentivar e sustentar sua comunidade é fundamental nessa jornada.

Reflexão crítica e implicações para o ministério

Recentemente, li o livro Igreja Centrada de Timothy Keller que, de forma bem ostensiva, percorre basicamente os mesmos caminhos de Newbigin. Parece-me, contudo, que a obra de Newbigin é mais precisa em identificar as origens do pensamento dominante e, em certa medida, em como respondê-los – inclusive a partir dos pressupostos dessa mesma tradição.

Dessa forma, encontro um tesouro precioso nessa obra. Bem-estruturado, de leitura fluída e relativamente simples – sem abrir mão da profundidade em sua abordagem –, trata-se de um livro que todo líder ministerial atuando em metrópoles deveria ler e considerar. Sempre pensei em termos de “Jesus é a resposta, mas quais são as perguntas?”, o que é correto e relevante. Mas o autor muda a perspectiva ao defender a ideia de uma vida vivida de acordo com as crenças que temos (crer gera compromisso) e na grande história sendo contada para que as perguntas que cheguem a nós sejam as que busquem vida.

Embora o autor flerte com uma escatologia universalista, vejo que sua intenção foi muito mais buscar retirar as máscaras e a empáfia que muitas vezes os cristãos têm ao alegar que estão “defendendo o evangelho” quando, na verdade, estão somente agindo em conformidade com uma visão política, com o interesse pessoal ou de um grupo ou as duas coisas juntas.

Uma obra para ser lida e relida.

Essa resenha foi realizada em 2021 em cumprimento às exigências da disciplina “Entendendo o mundo em que vivemos: influências das diferentes correntes filosóficas” do PSM – Postgraduate Studies on Missiology (Missões) do Seminário Teológico Servo de Cristo.

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