Carta aberta de uma filha aos pais em ministério
- 10/12/2021
- Postado por: Martureo
- Categorias: Blog, Especial Mulheres & Missão
“Que na sua vida seus filhos sejam prioridade sempre, e o ministério fique em segundo plano. Ensine a seus filhos sobre o amor de Deus sendo esse pai e essa mãe que não os abandona”
Nas últimas décadas, talvez por conta de muitas histórias tristes de famílias missionárias feridas emocionalmente e realidades disfuncionais, há um olhar para o cuidado integral dos missionários e pastores, incluindo seus filhos. Além de uma porção de bons livros que vêm sendo publicados sobre o assunto, organizações como a Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) criaram departamentos específicos para esse fim. O CIM Brasil (Cuidado Integral do Missionário), da AMTB, tem até o braço chamado Philhos.
Ainda assim, ainda são comuns relatos como o da carta a seguir, que chegou ao Martureo e decidimos publicar como um alerta.
Carta aberta aos pais em ministério,
Hoje eu tenho 30 anos e moro sozinha, mas ainda lido com as consequências das escolhas de meus pais. Ainda tenho coisas para processar que refletem minhas feridas do passado, talvez porque elas estejam evidentes neste presente.
Eu sei que, na época em que cresci, ainda se falava muito pouco sobre cuidado emocional, a igreja cristã era muito resistente aos conhecimentos da Psicologia. Muito mais do que hoje. Eu sei que meus pais tiveram pouco acesso a alguns recursos que os teriam ajudado. Eu sei que por muitos anos andaram sozinhos. Foram em muitas formas também abandonados por seus líderes e pastores quando foram enviados para pastorear. Quantos não foram e ainda são, não é mesmo?
Eu sei também que, em parte, meus pais tiveram suas escolhas, e não procuraram ajuda.
Desde que nasci meus pais já estavam envolvidos em uma igreja, liderando-a como pastores principais. Depois, por dois anos, eles também foram missionários transculturais, e, quando retornaram do campo, seguiram como pastores.
Como filha de pessoas tão envolvidas no ministério, sempre foi “normal” que os membros da igreja e os problemas dos outros fossem mais importantes do que nós, os próprios filhos. E, como bons filhos, tínhamos de entender que todas aquelas pessoas precisavam deles: havia aconselhamentos até tarde da noite (sem limites de dias ou horários), eventos e encontros que aconteciam no dia de nossos aniversários e por aí vai. Nessas ocasiões, ainda tínhamos de ficar felizes em poder comemorar num evento da igreja. Deus me livre, hoje em dia. Talvez só vão entender os sentimentos que carrego aqueles que também foram filhos de pais em ministério, aqueles que também foram abandonados emocionalmente por conta desse ministério.
Meus pais foram, por muitas vezes, fanáticos, alimentando e tendo sua identidade completamente enraizada em sua função pastoral. Zona muito perigosa, diria eu. Era normal perderem eventos da escola, apresentações, reuniões, às vezes até aniversário como eu já mencionei. Tudo da igreja era mais importante. Perdíamos viagens com a família estendida, afinal, nada era mais importante do que a família da igreja…
Desde muito cedo, lembro de meus pais levarem a gente em vigílias, mesmo que estivéssemos com febre. Deitávamo-nos em num colchãozinho e dormíamos na igreja fria. Desde sempre, tivemos de aprender a dividir a atenção deles, não só entre nós, eu e meus irmãos, mas com mais de 300 pessoas. O cuidado com o rebanho era constante com todos os membros, mas parecia que não sobrava tempo ou espaço para nós. Por conta disso, fomos criando nosso próprio suporte emocional, e deixando meus pais de fora, afinal, não parecia que eles estavam lá mesmo. E, de fato, emocionalmente eles não estavam.
Tenho esta memória encrustada de quando eu tinha 7 anos: a professora falando mal da minha mãe, na frente da classe toda, dizendo que ela nunca ia a reuniões escolares, e meu pai também não comparecia. Lembro de sentir vergonha. Vergonha por minha mãe não ir.
Preste atenção nesta forte emoção: vergonha. O que essa vergonha fazia ali? O que ela estava falando na verdade? Vergonha de existir? Vergonha de não ser importante para meus pais? Vergonha de não ser prioridade na vida deles?
Se eu deveria ser prioridade na vida de alguém neste mundo seria na vida de meus pais, mas não fui. O ministério foi.
Não me leve a mal, tenho, sim, muitos motivos de gratidão pelos meus pais, agradeço por todo o esforço que fizeram para me dar uma boa educação, reconheço isso. Agradeço porque sei que se fisicamente eu precisasse de alguma coisa, eles compareceriam, mas emocionalmente, afetivamente, faltou. Faltaram carinho, atenção, conversas de coração… Ou seja, faltou presença.
Eles podem até contra-argumentar (ou vocês os defenderem). Podem dizer que tínhamos 15 dias de férias por ano em que viajávamos só nós, mas 15 dias não são suficientes em 365.
Quantos almoços em família não eram atravessados de assuntos eclesiásticos? Quantas vezes parecia que não se tinha tempo nem espaço para falar sobre outras coisas que não problemas a resolver de membros da igreja, ideias do que fazer no próximo domingo… E o pior: as cobranças de como a gente tinha de servir em tais trabalhos.
A verdade é que a mensagem que ficou dentro de mim foi que o ministério, a igreja, eram mais importantes do que eu.
Vale ressaltar de forma veemente que não estou falando de Deus. Não, Deus não era o mais importante… Pode ser até que eles pensassem assim, mas na verdade não foi, pelo menos a meu ver parece que não foi. Porque diante de Deus a família deveria ser sempre o mais importante, muito mais do que o ministério. Isso é muito sabido em teoria, mas, e na prática?
Quais são as consequências de ter crescido assim?
Inúmeras! Muitas mesmo! Pela graça de Deus, ainda acredito, ainda sigo a Jesus. Pela graça de Deus, o encontrei de uma forma diferente. Quantos não tiveram o mesmo fim?
Hoje, tenho de lutar para ser prioridade na minha própria vida. Tenho de lutar contra essas mensagens enraizadas que me dizem que eu não sou importante. Que me dizem que não tem ninguém para cuidar de mim. Tenho de lutar contra essas mentiras de identidade que insistem em estar aqui.
Meus pais até hoje não me ligam, a gente só conversa se vou à casa deles, e, mesmo assim, às vezes nem encontro meu pai. Hoje eu nem sei se queria que eles me ligassem. Nossa relação ficou tão distante que seria esquisito. Sim, ainda hoje a igreja parece ser mais importante.
Não cometa esses mesmos erros com seus filhos. Você ainda pode mudar isso…
Para meus pais, já passou o tempo. E está tudo bem agora, eu já os perdoei, já virei a página.
Porém você ainda pode fazer diferente. Que na sua vida seus filhos sejam prioridade sempre e o ministério fique em segundo plano. Por favor, peço a vocês: faça diferente!
Ensine a seus filhos sobre o amor de Deus sendo esse pai e essa mãe que não os abandona.
Valéria (nome fictício)
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