Diálogo inter-religioso entre cristãos e umbandistas em missão urbana em São Paulo

É preciso compreender melhor os embasamentos dessa religião, seus dilemas e questionamentos, para uma comunicação relevante do evangelho

Fernanda Machado

1. Por que fui estudar mais sobre a umbanda?

Como psicóloga e missionária, desde 2018 desenvolvo um projeto de orientação profissional para adolescentes em situação de vulnerabilidade em todo o Brasil, especialmente para alunos de escolas públicas. Por três anos trabalhei em parceria com uma organização da sociedade civil (OSC) cristã cujo público-alvo é a comunidade da Vila Mirante, em Pirituba, bairro periférico na região noroeste da cidade de São Paulo. O programa de orientação profissional tem como objetivos:

  1. Conscientizar jovens e adolescentes sobre seu potencial e suas amplas possibilidades profissionais;
  2. Preparar jovens e adolescentes para alguns dos desafios que serão encontrados na jornada em busca de oportunidades de trabalho;
  3. Construção de um banco de candidatos em busca de oportunidades de emprego para empresas parceiras.

Além disso, por conta do caráter evangelístico da organização, oferecem-se aconselhamento e discipulado para tais alunos. Para garantir transparência a respeito da missão da OSC enquanto organização cristã, no ato da inscrição de novos alunos, bem como no primeiro dia de aula de cada grupo, é dito que os professores e a equipe da organização estão à disposição tanto dos participantes quanto de suas famílias para esclarecer dúvidas sobre a fé cristã e/ou acompanhar quem assim desejar com discipulado e aconselhamento. Isso também acontece no grupo de orientação profissional sem que se deixem de lado os princípios éticos do exercício da psicologia e para que se estabeleça um vínculo baseado em confiança e transparência. Logo no primeiro encontro, os participantes são informados que a mediadora da orientação profissional compartilha dos valores cristãos professados pela organização, porém, durante os atendimentos, cumpre a função de psicóloga, e em momento algum exerce influência sobre suas crenças religiosas e tomadas de decisão. No entanto, como parte da equipe, também está à disposição para conversar fora do setting terapêutico grupal com quem se interessar, seja para aconselhamento, para conversar sobre fé ou qualquer outro assunto que vier à tona.

No dia a dia do projeto, tanto no formato presencial quanto on-line, participantes de todos os programas, incluindo o de orientação profissional, procuram seus professores para compartilhar dilemas e dificuldades que enfrentam em suas vidas. A pessoalidade do contato e a disponibilidade clara por parte da equipe para falar de questões que extrapolam os assuntos tratados em aula são fatores que propiciam que tal movimento aconteça naturalmente. Somado a isso, os encontros para orientação profissional, em comparação às aulas de instrumentos musicais, tecnologia e idiomas, inevitavelmente tratam de assuntos que permeiam a vida dos participantes fora do ambiente da organização, dando-lhes a possibilidade de compartilhar mais sobre suas famílias, relacionamentos, contextos religiosos e realidade social. Assim, a construção do vínculo entre mediadora e participantes tem maior potencial para crescer e se fortalecer. Daí, a busca por aconselhamento acontece, muitas vezes, pelo fato de as situações já terem sido compartilhadas em outros momentos.

No meu primeiro ano como missionária em tempo integral nessa organização, deparei-me com uma situação para a qual até então nenhum treinamento evangelístico, congresso missionário ou estudo bíblico havia me preparado de forma específica. A fala “Professora, minha amiga me levou a um terreiro e a entidade me disse isso. O que você acha que significa?” me fez perceber que, além de não saber o que aquilo significava, eu não tinha sabia o que de fato era uma entidade.

Com outros alunos presentes no momento, descobri que alguns deles também já haviam frequentado ou visitavam com frequência terreiros de umbanda ou candomblé, e assim uma curiosidade já existente em mim, uma missionária nascida e criada na Igreja Presbiteriana do Brasil, se tornou um interesse de estudo e aprofundamento.

2. Um pouco do que pesquisei sobre a umbanda

No bairro em questão, há ao menos 20 terreiros de umbanda a uma distância de até 6 quilômetros (aproximadamente 10 minutos de trajeto) do terminal de ônibus da vila, local de grande movimentação e principal ponto de acesso aos arredores. A presença da umbanda é marcante nesse bairro, mesmo sendo considerado um bairro cristão. Assim, o que era apenas um interesse e mera curiosidade tornou-se, cada vez mais, um fator de extrema relevância para o aprimoramento do meu trabalho como missionária urbana.

A fim de conhecer mais sobre a umbanda na região – suas crenças e práticas religiosas, bem como sua relação com o aconselhamento de carreira a pessoas que buscam por ajuda nessa área durante os trabalhos e giras oferecidos nos terreiros – busquei informações sobre esses tópicos em conversas semiestruturadas com sacerdotes e sacerdotisas umbandistas do bairro. Entrei em contato com os templos da região por meio de suas redes sociais, e tive o retorno de dois pais, duas mães e uma filha de santo. Eles serão identificados a seguir em suas falas como Mãe R, Mãe L, Pai R, Pai A e Filha D. Nos encontramos por chamada de vídeo em decorrência do distanciamento social necessário por conta da pandemia de Covid-19. Nessas conversas, aprendi sobre as origens da umbanda que, segundo Pai R., aconteceu

… dentro de uma mesa branca, sem o médium entender qual era a missão dele. E vem o caboclo, o que não era comum na época. Os espíritos vinham como grandes médiuns, pessoas de grande importância na sociedade. O caboclo vem pra quebrar isso, pra trazer que todos têm algo a ensinar ao outro. Todos os espíritos deveriam ser aceitos dentro do ritual espiritualista. (Pai R)

De acordo com a professora de história Juliana Bezerra, a umbanda surgiu nos subúrbios do Rio de Janeiro quando, em 1908, Zélio Fernandino de Moraes teria incorporado o Caboclo das Sete Encruzilhadas, espírito que o teria instruído a criar a umbanda, religião que logo se espalhou por todo o Brasil e para outros países da América Latina. O censo de 2010 diz que o número de umbandistas no Brasil chega a 432 mil, mas Fátima Damas, representante da Congregação Espírita Umbandista do Brasil, afirma que esse número é subnotificado uma vez que muitos não admitem publicamente que são umbandistas.

Pela descrição de Pai R, ficou claro que todos os espíritos, “de pouca ou muita luz”, e todas as pessoas são aceitos na umbanda. Mesmo havendo uma distinção clara entre líderes da casa, seus filhos e filhas de santo e as pessoas da área de assistência, existe grande abertura da umbanda a quem se interessar e a quem buscar por respostas em suas giras e trabalhos. Existe também uma flexibilidade na prática religiosa – há abertura para pessoas que professam outras religiões. “A umbanda mistura elementos do candomblé (sem o sacrifício de animais), do espiritismo e do catolicismo”, explica Bezerra. Há casos, inclusive, que a frequência nas giras e sessões de trabalho individual supera a frequência nas celebrações promovidas pelas denominações cristãs com que se identificam. Sobre isso, foi dito que

A umbanda é uma religião cristã também, né? A gente não segue a Bíblia, mas a gente não é proibido de ler o que for, a Bíblia, a Torá ou qualquer outro livro que traga a palavra de Deus. Na umbanda a gente tem uma flexibilidade muito grande, tudo que é para o bem a umbanda pode agregar por meio do sincretismo (…) A gente fala que a umbanda é uma grande mãe, não importa sua religião quando você vem num terreiro, importa que você esteja aqui com o intuito de evoluir. (Pai R)

Nós umbandistas também somos [do] catolicismo porque nós também trazemos o catolicismo para nós, foi de lá detrás, então nós também temos essa visão. O meu terreiro não, mas tem muito terreiro que lê o evangelho e muito terreiro que faz o evangelho, eu rezo Ave Maria e Pai Nosso no meu terreiro. (Mãe R)

Na umbanda, Deus (Olorum) é compreendido como o ser criador e supremo, e se manifesta aos seres humanos através dos chamados orixás (entidades superiores que são fragmentos de Deus) e guias espirituais (entidades como caboclos, espíritos indígenas, espíritos de crianças e de feiticeiras, espíritos de velhos escravos brasileiros etc.). Alguns orixás citados com frequências nas conversas foram Xangô, Oxóssi, Obaluaiê, Omulu, Ogum, Oxalá, Iansã, Oxum, Nanã Buruquê e Iemanjá.

Segundo reportagem de Marília Marasciulo para a Revista Galileu, a religião umbandista prega a imortalidade da alma, a reencarnação e a interação com entidades espirituais. As cerimônias são realizadas em casas, terreiros e barracões ou ao ar livre, junto à natureza. Os rituais visam evocar os orixás e entidades espirituais para que purifiquem as energias dos participantes. A umbanda também celebra batizados, consagrações e casamentos.

As pessoas entrevistadas descrevem da seguinte forma:

Os orixás é o que nos move. Cada pessoa tem seu orixá de cabeça, seu pai regente e sua mãe regente, no meu caso eu sou filha de Oxóssi com Oxum. E um pouco da nossa personalidade é um pouco pelas qualidades dos seus orixás. (…) Os orixás em si não têm um contato muito visual e nem por fala, eles encarnam, mas sempre os olhos da pessoa que com o orixá fica fechado e eles não falam. Eles também trabalham na umbanda só que não tem a roda, eles têm a passagem deles, dançam e você pode ir até eles pra tomar uma benção e só isso. Não é como a entidade. (Filha D)

Na umbanda não há um relacionamento direto com Deus como no cristianismo. Os orixás têm influência nas ações dos seres humanos e equilibram seus comportamentos prejudiciais. A busca por instrução se dá no relacionamento com os guias espirituais, que auxiliam e aconselham os seres humanos no processo evolutivo do espírito e na superação de situações decorrentes do carma de cada um.

A descrição dos encontros e rituais de culto semanais relatados foram bastante semelhantes. O espaço de culto é marcado por algum tipo de divisória que dá privacidade para o pai ou mãe de santo e seus filhos e filhas de santo se prepararem de acordo com seus papéis nos rituais (médiuns, tocadores de atabaque etc.). Antes dos encontros, faz-se a defumação do local de culto, e as pessoas encarregadas devem tomar banhos preparados de forma especial, ambos visam purificação e preparo para receber os guias espirituais.

São entoados cantos de determinados guias espirituais no início e ao fim do encontro, de acordo com a gira que será realizada, e, no decorrer do culto, há interação entre a “assistência” (pessoas que não são filhos ou filhas de santo), os filhos e filhas da casa e os guias espirituais através dos médiuns. Também podem ser realizadas sessões de trabalho individuais gratuitas com pessoas que buscam por auxílio fora do horário das giras.

Jesus está presente na umbanda também, por vezes em semelhança ao kardecismo, por outras vezes como no catolicismo. Algumas das explicações sobre esse assunto foram:

Jesus pra nós é um grande mestre, o maior de todos. Ele encarnou na terra. Então a gente tem as máximas de Jesus Cristo: amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. E seguimos o exemplo de Cristo: a humanidade, o respeito. (Pai R)

Ele é espírito, o maior que veio para a terra, teve uma grande missão. Ele não é um orixá, ele é um ser ascensionado. Chico Xavier também é. São homens que mais se aproximaram da vontade de Jesus Cristo. (Mãe L)

A única representatividade que a gente tem de Jesus na umbanda é Oxalá. Não temos uma representatividade de Deus na umbanda. Ele é o filho de Deus. (Filha D)

É que Jesus a gente faz exatamente como a Igreja Católica, ele é o menino Jesus. Jesus, Deus e outros a gente faz da mesma forma que os católicos fazem. (Mãe R)

Nota-se, portanto, que não há uma unidade no discurso sobre quem é Jesus. Em diferentes conversas, ou em diferentes momentos de uma mesma conversa, ele é identificado como Oxalá, que é um orixá, como um espírito ascensionado, ou até mesmo como filho de Deus.

Quando perguntado sobre a demanda relacionada a questões da escolha profissional e construção de carreira, Pai R trouxe alguns exemplos válidos e considerações sobre como esses assuntos são tratados na umbanda.

A gente tem muita demanda com esse tema. É recorrente algumas pessoas terem a falsa ilusão que é só vir no terreiro e acender uma vela e o emprego dos sonhos vai cair nas mãos dela dessa forma. A gente tem que explicar que não é isso, é o merecimento, né? Mas o mais importante é você despertar mesmo para aquilo que você gosta de fazer. (…) Então a gente orienta sempre em preleção que a umbanda não vai te dar um emprego, um emprego dos sonhos. Porque muitas vezes o emprego dos sonhos é bem relacionado a quanto você vai ganhar com isso, né? Eu falo que é importante o autoconhecimento, trabalhar as aptidões do que você gosta de fazer e o dinheiro é uma consequência disso, do bom trabalho. (Pai R)

Sobre a orientação dada pelas entidades em relação ao assunto, os sacerdotes entrevistados acrescentam:

As entidades tentam orientar e despertar as pessoas para esse autoconhecimento, para as aptidões… e num estado de desemprego são orientados a não desistir, a buscar a sua vocação através de autoconhecimento. Claro que sempre respeitando o livre arbítrio das pessoas e por isso (a entidade) não pode decidir nada. (…) A gente trabalha às vezes com algumas oferendas para Oxum, que é o orixá da fertilidade e do amor que ajuda nessas relações, tanto nas relações de trabalho de quem já trabalha ou daquele que buscando uma nova recolocação ou uma primeira recolocação, uma profissão ou uma nova profissão por uma insatisfação. (Pai R)

A entidade vai dizer para ela qual é a forma que ela tem que agir; se ela vai agir de uma forma correta, se ela precisa fazer alguma coisa para que ela possa passar por aquilo que ela tá precisando… Se é necessário a entidade ter que dizer para ela o que é que tá acontecendo, se tem alguém que está querendo ou puxar o tapete dela ou apunhalar pelas costas… Como eu disse, o guia tem uma visão totalmente ampla do que nós seres humanos temos, certo? (Mãe R)

Outro ponto trazido à tona diversas vezes durante as conversas foi a liberdade de escolha pessoal de cada indivíduo e a importância de se ter uma ocupação que corresponda a aptidões e gostos pessoais em vez de a motivação estar no ganho financeiro que determinada profissão pode trazer.

Cada um tem que ter a sua (escolha), né? Mas é buscando sempre essa relação de produtividade. O que você gosta de fazer, a satisfação que te traz. (…) Que seja uma coisa que você tenha aptidão, que gosta de fazer. Não estar no trabalho simplesmente por uma questão monetária, que é importante, mas tem que ser uma consequência daquilo que você desenvolve com amor, com cuidado, com desejo. (Pai R)

Nós, zeladores espirituais, a gente aconselha ‘olha, vai, é uma área legal, boa, combina com você, você vai se dar muito bem’ (…), mas eu não tenho direito de dizer ‘você tem que fazer isso e eu acho que nem Deus’. Deus vai te dar o caminho, vai te dar aquilo que importa para que você possa seguir (…), mas ele não vai dizer pra você que você tem que fazer aquilo. (Mãe R)

Foi falado, ainda, sobre alguns rituais como oferendas, passes e banhos de ervas que possibilitam um equilíbrio energético em pessoas que, em decorrência do desemprego ou insatisfação profissional, encontram-se em estados depressivos e/ou desmotivadas em suas ocupações.

Outro tópico relevante investigado nas conversas foi a relação da umbanda com a psicologia. Por isso, perguntou-se aos sacerdotes se é costumeiro eles indicarem aos seus fiéis a ajuda de profissionais da psicologia dependendo da demanda que lhes é trazida. Sobre isso, disseram:

A umbanda não é contra a ciência, contra as profissões. Às vezes tem pessoas que realmente precisam de psicólogo. Já ouvi entidade passar algum banho, mas falar pra ir procurar “os homens de branco”? As coisas caminham juntas (…), e tudo tem o seu lugar e a sua hora certa. (Pai R)

Hoje eu tenho tempo para conversar, dar um conselho. Claro que quando sai da minha mão, eu não tenho problema em encaminhar. Antigamente eu não aceitava, não aceitava não, achava que não servia a ajuda de psicólogo, outros tipos de prática. Mas o poder de transformação é grande demais, tem muito templo que serve essa medicina e não dão um acompanhamento em um trabalho muito forte. Isso mexe muito com a pessoa, se ela não tiver uma base, alguém para orientar, psicólogos, terapeutas para auxiliar… Então hoje eu acho importante esse acompanhamento. (Pai A)

O trabalho psicológico dentro da umbanda é fenomenal. (…) Da mesma forma que tudo para nós também não é cura, os guias também não são médicos, então tem coisas que a gente fala ‘você tem que ir ao hospital e precisa passar pelo médico, ele também precisa ver isso daí que tá acontecendo’. Da mesma forma é o psicólogo. Se cada terreiro tivesse um psicólogo seria maravilhoso, as pessoas precisam. Você precisa de uma orientação psicológica de vez em quando. (Mãe R)

Nota-se certa semelhança entre o aconselhamento profissional de pais e mães de santo ou de entidades e as ideias básicas da prática clínica em orientação profissional e de carreira como o autoconhecimento, busca por um propósito de trabalho que ultrapasse interesses financeiros e importância da autonomia no processo de escolha profissional. Mostra-se confiança no atendimento psicológico profissional e sua indicação também parece encontrar abertura – ainda que tal achado não possa ser generalizado a todos os sacerdotes umbandistas, isso foi notado nas pessoas que cederam seu tempo para conversar sobre tais questões e que desenvolvem trabalhos na região delimitada.

Pensando no caráter evangelístico do meu trabalho como missionária urbana em uma OSC que se propõe a acompanhar pessoas em um trabalho ativo de discipulado e aconselhamento, conhecer e conversar com essas pessoas me levou a refletir sobre as dificuldades de comunicação do evangelho e de convivência aberta entre pessoas que se declaram cristãs (especialmente as de denominações reformadas) e pessoas declaradamente umbandistas.

3. Evangelho e cultura

É de comum conhecimento que entre diferentes comunidades religiosas existe um certo grau de perseguição e há muitos preconceitos em torno de religiões com influência africana e espírita no Brasil. Uma rápida pesquisa nos canais de busca traz dezenas de matérias sobre templos umbandistas que sofreram ataques, foram incendiados e tiveram seus membros feridos por violência física. É dito que alguns destes ataques foram realizados, ou no mínimo apoiados, por pessoas que se declaram evangélicas e seguidoras de Jesus Cristo.

Por conta disso e de diversos outros fatores estruturais problemáticos e pecaminosos da cultura brasileira, criou-se uma desconfiança em torno da evangelização de pessoas adeptas de religiões com influência africana e espírita. Faz-se necessário, então, uma reflexão sobre como uma abordagem evangelística poderia ser coerente com a verdade bíblica, demonstrando respeito e compaixão pela prática religiosa da pessoa com quem o evangelho é compartilhado.

González (2011) afirma que “parte da missão da igreja consiste em encarnar o evangelho em uma diversidade de culturas”, e defende ainda que quando falham em compreender esse papel tão importante, cristãos cometem dois erros igualmente danosos ao encararem uma cultura religiosa diferente da sua: o primeiro é considerar que os aspectos de uma cultura que diferem da sua são demoníacos e que nenhum destes aspectos reflete a graça e soberania e Deus, o segundo é considerar-se superior a outras culturas por acreditar que a cultura do Reino já é plena em sua vida.

Segundo ele, os cristãos têm a responsabilidade de encarar toda cultura como pecaminosa, mas, ao mesmo tempo, como alvo da graça de Deus, o que permite que a pessoa que comunica o evangelho se aproxime de uma cultura distinta “com respeito, como lugar sagrado no qual a autoridade de Jesus Cristo já é exercida, embora as pessoas que estão ali não o saibam” (GONZÁLEZ, 2011).

Ao refletir sobre as diferentes formas com que os apóstolos apresentaram o evangelho nos relatos bíblicos, Tim Keller (2014) conclui que

um dos motivos pelos quais o evangelho nunca é apresentado exatamente da mesma forma se deve não somente à riqueza da diversidade do próprio material bíblico, com todos os seus temas intercanônicos, mas também à riqueza da diversidade humana. (KELLER, 2014, p. 86)

É comum nos diálogos sobre religiões de influência ou origem africana uma ênfase na batalha espiritual e em eventuais episódios de possessão e expulsão de demônios. Isso fica evidente em encontros de cristãos com pessoas que participam dessas comunidades, e, em geral, denota preconceitos a respeito de suas crenças e práticas religiosas. Contudo, ao se conhecer de maneira mais profunda a mitologia por trás das crenças nos orixás, vemos histórias e dilemas simbólicos que não diferem tanto do que encontramos nos mais conhecidos mitos gregos e nórdicos trazidos ao cotidiano da sociedade ocidental em filmes, séries e até mesmo em contos que fazem analogias ao evangelho, como é o caso de histórias escritas por C. S. Lewis. Essas mitologias trazem questionamentos para os quais o evangelho traz respostas e têm sido utilizadas para ilustrar, comparar e inculturar o evangelho ao longo da história.

Tratando de religiões com influência africana no Brasil, como é o caso da umbanda, encontram-se desafios que demandam atenção ainda mais específica. O fato de a cultura negra no Brasil sofrer ataques violentos desde o império português resulta em perda e desconhecimento de características culturais dos povos ancestrais africanos, inclusive de suas culturas religiosas. Observa-se uma falha ao não se encontrar nos movimentos cristãos protestantes elementos de culturas ancestrais africanas. Pode-se considerar a umbanda, dentre outras religiões com influência africana, um refúgio religioso para pessoas que se identificam com a cultura africana; refúgio esse que garante o renascimento e a preservação de sua cultura ancestral (CAVALCANTI, 1988). É necessário promover estudos e diálogos para melhor compreensão dos embasamentos das religiões africanas, seus dilemas e questionamentos.

Cavalcanti (2015) afirma que movimento evangelístico e o processo de inculturação precisam levar em conta que “hoje, no Brasil, não existe uma experiência evangélica negra propriamente dita”, e por isso torna-se importantíssimo o estudo e o diálogo com essas culturas, dando abertura ao uso de costumes religiosos que podem não corresponder com as práticas mais comuns à cultura hegemônica entre cristãos protestantes, mas que não contradizem a mensagem do evangelho.

Nesse sentido, González (2011) afirma que a pessoa que busca participar da missão de encarnar o evangelho não assumirá a tarefa de incorporar o evangelho a uma nova cultura. A inculturação do evangelho deve ser feita por novos cristãos da cultura alcançada, que com tempo e pela graça de Deus terão discernimento para viver o evangelho dentro da sua própria cultura. Ainda nesse sentido, Silva (2014) destaca a relevância do desenvolvimento de teologias temáticas, estudos bíblicos de discipulado direcionados a temas específicos, que entreguem reflexões e respostas bíblicas a questões específicas que estão presentes na cultura em questão. Dessa forma, espera-se que os novos cristãos de fato encontrem respostas no evangelho e ressignifiquem o que for necessário em sua cultura de forma que corresponda da melhor forma à verdade do evangelho.

4. Espaços de diálogo e troca de experiências como forma de discipulado e evangelismo

Pedro não foi a Cesareia para levar Jesus. Foi porque Jesus já estava lá. (…) Aquela Cesareia e Cornélio, cidade pagã e centurião pagão, já estavam sob o domínio de Jesus Cristo, embora não o soubessem. E, ao ir para lá, Pedro descobriu algo acerca desse mesmo Jesus Cristo e de seu evangelho. (Gonzáles, 2011. p. 119)

Esse trecho do livro Cultura e Evangelho instigou um grande questionamento durante a pesquisa feita com pessoas da comunidade umbandista: o que há do evangelho na umbanda que pode estar oculto aos olhos de seus fiéis e dos cristãos da Vila Mirante?

Como cristãos, somos chamados a anunciar o amor e o perdão de Deus e a chegada do Reino, somos chamados a viver o Reino nos dias de hoje. Em uma cultura imersa em preconceitos e por muito tempo cultivada sob uma falsa impressão de santidade perfeitamente alcançada, muitos cristãos podem se esquivar de conviver e de estar abertos a conversar e trocar experiências com umbandistas, o que inevitavelmente os limita no cumprimento do seu chamado à missão reconciliadora de Deus.

Ainda recentemente, buscando por pessoas que pudesse entrevistar para este relato, comentei com uma turma de alunas que estava em busca de pessoas da umbanda para conversar. Para a minha surpresa, metade da turma declarou ser umbandista, e concordaram que não costumavam comentar a respeito pois sabiam que a OSC era uma organização “crente”, segundo elas. Com o número de terreiros identificados em uma rápida busca pelos arredores da instituição (20!), não surpreenderia que muitas pessoas como elas passaram por ali com o mesmo receio e, infelizmente, sem uma entrega do evangelho que lhes remetesse a questões reais e relevantes em sua cultura e cosmovisão. O conhecimento sobre a crença umbandista e novas formas de abordagem e discipulado são urgentes e de extrema relevância na comunidade.

O projeto de orientação profissional na Vila Mirante apresenta-se como uma ferramenta para aproximar essas realidades ao servir a comunidade umbandista em suas demandas na área do trabalho e empregabilidade de forma clínica e profissional. Também é vital para criar vínculos que abrirão espaços de diálogo, convivência aberta e discipulado com participantes que se interessarem e estiverem abertos aos aconselhamentos e encontros individuais ou em grupos menores.

Assim, pela graça de Deus e através do amor, do exemplo e do ensino, poderá haver compreensão, diálogo e convivência aberta entre as comunidades cristã e umbandista na Vila Mirante para que ambas reconheçam como Deus já tem agido e se revelado a elas e para que vidas sejam transformadas e pessoas conheçam a Cristo e vivam sua nova fé no evangelho de forma plena e culturalmente diversa.

 

Sobre a autora

Fernanda Machado cursou Psicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie e o Postgraduate Studies on Missiology (Missões) no Seminário Teológico Servo de Cristo. É missionária pela Igreja Presbiteriana Aliança (Campinas, SP) e atua com adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social em parceria com OSCs em diversas cidades do Brasil por meio da consultoria O Caminho, que fundou em 2017.

O texto do artigo é um resumo do trabalho de conclusão feito para o Postgraduate Studies on Missiology (Missões) do Seminário Teológico Servo de Cristo.

 

Referências bibliográficas

CAVALCANTI, R. Os Terreiros de Jesus – O evangelicalismo e a raça negra no Brasil. Ultimato, Viçosa, v. No 193, 1988.

CAVALCANTI, R. A igreja, o país e o mundo: Desafios de uma fé engajada. 1ª. ed. Viçosa: Ultimato, 2015.

GONZÁLEZ, J. L. Cultura e Evangelho: O lugar da cultura no plano de Deus. 1ª. ed. São Paulo: Hagnos, 2011.

KELLER, T. Igreja Centrada. 1ª. ed. São Paulo: Vida Nova, 2014.

MARSHAL, C.; PAYNE, T. A Treliça e a Videira: A mentalidade de discipulado que muda tudo. 1ª. ed. São José dos Campos: Fiel, 2016.

SILVA, C. Fenomenologia da Religião: Compreendendo as ideias religiosas a partir das suas manifestações. 1ª. ed. São Paulo: Vida Nova, 2014.

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