As ideias precisam “ter pernas”
A amplitude da missão de Deus e o engajamento nela por meio da arte
Filipe Amado
O conceito principal deste artigo vem de João 1.1 e das primeiras páginas do livro de Steven Garber, Visions of Vocation, no qual ele afirma:
As verdades mais profundas da vida, aquilo que é realmente importante, só pode ser aprendido quando olhamos por cima dos ombros de alguém e através do coração, pois somente dessa forma podemos ver que as ideias ‘têm pernas’ e que as cosmovisões podem se tornar estilos de vida.[1]
Este artigo vai argumentar que, para vivermos intencionalmente, precisamos ser capazes de transformar ideias, convertendo-as em realidade. Não é suficiente que os cristãos conheçam teologia – nossas crenças devem “criar corpo” e ter implicações práticas. O conceito de encarnação e o estilo de vida autossacrificial de Cristo estão implícitos e subentendidos. Exigem uma resposta. A vida de autossacrifício de Cristo é um chamado à ação para os cristãos interagirem com a sua cultura.
A fim de examinar a relação entre o evangelho e a cultura, vamos focar uma passagem central das Escrituras: o texto de João 1.1. Em português e espanhol, “O Verbo” (λόγος) é traduzido por “A Palavra”: “No princípio, aquele que é a Palavra já existia. A Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus” (NVT). Isso denota um movimento de vida contínuo, sem fim, e uma imagem vívida de Cristo trabalhando continuamente, vivo e em nosso meio. Isso é extremamente significativo, e não apenas para as culturas latinas – significa que, como a ação é um aspecto crucial do caráter de Cristo (e os cristãos devem imitá-lo – Efésios 5.1-2), ela também deverá fazer parte de nossa natureza. Quando Deus encarna e morre por nós, ele se torna nosso modelo, e possibilita que nós, humanos, também tenhamos uma vida de autossacrifício.[2]
É através das rachaduras da nossa condição partida que a ideia final pode verdadeiramente ser assimilada: Jesus, O Verbo, A Palavra que estava com Deus e era Deus, tornou-se homem; o Deus encarnado entrou no mundo. Se olharmos nos olhos de Jesus e, em seguida, olharmos profundamente para nosso coração, vamos ouvi-lo dizer: “Eu o/a conheço. Sei pelo que você está passando. Vamos caminhar juntos”.
Isso terá consequências práticas para os seguidores de Cristo: amar os outros sacrificialmente mudará nossa maneira de viver. Algumas vezes, será sobre pensar nas implicações do nosso poder de compra.[3] Outras vezes, esse amor sacrificial envolverá estender as mãos e servir aos pobres de nossos bairros, entendendo sua dor e sofrimento.
O amor sacrificial está sempre nos chamando a compreender que, se cremos que o Verbo, a Palavra, se fez carne, isso significa entrar em ação (João 1.1; 1 João 1.1). É por isso que as ideias devem se tornar realidade. É por isso que o pão deve se tornar carne e o vinho, sangue. Essa é a razão pela qual as palavras devem preceder e servir de catalisadoras para a ação.[4] Não é um questionamento metafísico, enigmático, mas sim uma realidade. É um convite a caminhar com o Cristo vivo, e a ser Cristo neste mundo.
Cristo nos chama à ação convocando-nos a segui-lo, e, embora a jornada possa ser longa, ela não é a meta em si. Na cultura moderna, ouvimos muito dizer: “O que importa é a jornada, não o destino”, mas o próprio Santo Agostinho reconheceu que apenas a meta – a união com Cristo – possibilita a verdadeira realização. Insatisfeito e cansado de uma jornada sem fim e da busca pela liberdade, ele percebeu que a verdadeira liberdade envolvia quebrar as cadeias de uma “liberdade irrestrita juntamente com a multiplicidade de opções” (isso deixa a pessoa com a sensação de vazio).[5] Em outras palavras, ele descobriu que a jornada não é o mais importante – o crucial é encontrar um lar em Cristo. Essa é a nossa verdadeira paz e alegria, “caracterizada por uma quietude que é o oposto da ansiedade”.[6]
Agostinho afirma que, para poder encontrar alegria em um mundo quebrado e secularizado, devemos primeiro entender que é somente no dom da graça oferecido por Deus que podemos encontrar nosso descanso. Um dom oferecido gratuitamente, não conquistado por nossa vontade, mas um lugar onde o Deus encarnado nos encontra e nos garante: “Você está seguro aqui”.[7]
É em um momento de profundo desespero que Jean Valjean, protagonista de Os Miseráveis de Victor Hugo, encontra uma graça tão intensa que a princípio até lhe parece ofensiva. Perdoado dos seus pecados e liberto de uma prisão iminente, ele é convidado a uma “graça caríssima”, que rompe com sua velha humanidade. É uma dádiva, um presente, uma graça que nada nos custa, mas pede tudo em troca. O que a graça poderia pedir senão nossas vidas? A graça de Deus nos convida à transformação pelo toque de algo tão verdadeiro, tão doce, que dá sentido à História e às nossas próprias histórias. Jean Valjean entende, naquele momento, esmagado pelo peso de suas transgressões, que aquela graça é dada como um presente, não para ser possuída, não negociada, nem comprada.[8] Jean Valjean reconhece algo que Bonhoeffer, muito mais tarde, defendeu – que liberdade é conviver com o outro, é relacionar-se com o outro, além de si mesmo; o amor sacrificial seguirá os passos do homem que morreu na cruz por seus pecados e transgressões.[9]
Somos chamados a servir e a testemunhar de Jesus, que “habitou conosco para nos mostrar a glória de Deus e entrar na brutalidade da humanidade”.[10] Jesus nos lembra algo de que esquecemos nos tempos modernos: uma liberdade que “vem envolta no dom da restrição… uma ordem que nos chama à existência”.[11] Wendell Berry entende que todos nós lutamos para assumir o comando de nossas próprias vidas, e que, acima de tudo, em nosso orgulho, queremos “viver quitados e isentos de dívidas”. No entanto, Berry também entende que “não adianta querermos fazer isso sozinhos, porque não conseguiremos(…). Quando deixamos de viver no preço (quantificar tudo e todos) e passamos a viver no lugar (o que recebo de Deus), entramos em uma linha diferente de sucessão”.[12] Não é sobre o que compramos, conquistamos, mas com quem nos relacionamos, tanto no sentido horizontal (criação) quanto no vertical (com Deus).
Cristo, a ideia final, o Deus vivo, nos convida à sucessão da sua graça e sacrifício. Ele nos convida a uma jornada cujo objetivo final é fazer o reino de Deus realidade na terra. Uma vida que se adentra no paradoxo do “agora, mas ainda não”, que é cativante e ao mesmo tempo, também repleta de perguntas. E em nossa vulnerabilidade, enquanto aceitamos o dom da graça de Deus, vivemos algo diferente: o descortinar de uma vida mais plena, porque é nesse estado que também passamos a ter consciência daqueles que nos rodeiam.
Além disso, Jesus entrou neste mundo com uma promessa de esperança – a expectativa que “nos impele a uma postura diferente que é consciente do pecado e das limitações humanas, mas também está ciente de nossa capacidade de servir e de nossa receptividade à graça”.[13] Ela floresce em uma comunidade que é “enraizada, concreta, tangível, relacional”, que acarreta “um mundo de outros e nos liga a eles”.[14]
Em vista dessas coisas:
- Como a Palavra de Deus, viva, corporificada e próxima pode se tornar tão verdadeira a ponto de moldar minha própria vida?
- Como isso afeta minha maneira de ver em minha profissão e vocação?
Pessoalmente, a arte me oferece a oportunidade de oferecer uma doxologia ao Criador para compartilhar salmos com outros que, em meio à dor e ao sofrimento, acabam encontrando gratidão e alegria, confiando na presença daquele que sofreu antes de nós.[15]
Como sacerdote do eterno Criador, como imago Dei, sou livre para criar, para cuidar do jardim (sua criação), para me multiplicar, não apenas com ideias, mas com sonhos que se tornam realidade.[16] É nesta realidade que sou lançado não apenas para trabalhar, mas para cultivar, criar e expressar por meio de imagens, palavras e sons a salvação oferecida a todos nós.
Por meio da metáfora e da arte, encontramos ferramentas primorosas de revelação.[17] Ao resgatar a história bíblica, nos deparamos com nossa própria história dentro do cosmos, encontramos um local para expressões autênticas do nosso eu de forma que as pessoas consigam entender, experimentar e se engajar, reinterpretando os conceitos bíblicos como uma oferta ao mundo de uma vida que é eterna.
Não importa o tipo de arte, seja cinema, literatura ou pintura, há uma revelação, pelos olhos do artista, que pode lançar luz sobre questões que foram colocadas de lado pela resistência de uma cultura possivelmente desinteressada.[18] Além disso, a arte tem o poder de iluminar os segredos de nossos corações e, por meio do simbolismo, oferecer uma nova maneira de ver as coisas.[19]
Ao narrar histórias a partir de filmes, ouvir o sofrimento das pessoas que se deparam com o mistério da redenção de Cristo, vejo a mim mesmo como um tradutor, um contador de histórias do poder do Cristo crucificado e ressurreto. Minha contribuição pessoal para a missio Dei (missão de Deus) é mostrar um Deus que oferece um convite radical a uma nova vida, a uma nova maneira de ver o mundo.
Essa criatividade em movimento é um desejo de criar e participar da “criatividade do próprio Deus”, elaborando e trabalhando ao lado do Espírito Santo como uma força motriz no desenvolvimento de uma nova arte.[20] Trata-se de produzir conteúdo corporificado, algo que, mesmo que sutil, seja transformador e não apenas informativo.
Minha vocação é aceitar um chamado de transformação, e desempenhar um papel na restauração deste mundo. É um chamado à humildade como uma pessoa que foi salva, e não como um salvador; é um chamado para expressar de todas as formas possíveis, inclusive por minhas mãos, que a salvação e o amor são acessíveis a todos.[21] Através da minha arte, participo ativamente de “uma realidade criada por Deus em Cristo, da qual podemos participar”.[22]
O significado de “as ideias ‘têm pernas’” (título deste texto) refere-se a elas estarem ligadas a um relacionamento, a um caminhar ao encontro de um serviço voluntário ao Criador, indo àqueles ao nosso redor.[23] É a recuperação de uma metanarrativa que não apenas nos inspira, mas nos orienta. É uma história que nos convida a viver de uma forma que nos permite ser as mãos de Cristo na terra como parte da restauração completa que está por vir. É uma história dentro da História!
É um “agora” que enfrenta as dificuldades do hoje, mas é um “amanhã” que também espera por um dia melhor. Esta é a esperança cristã, uma esperança que não é mero otimismo, mas que vê a vitória de Cristo não apenas como um consolo, mas como uma expressão prática e vívida da vida na terra, cuidando sacrificialmente de outras pessoas.[24] Como tantos autores, escritores e artistas expressaram, a graça que recebemos – simples, mas poderosa; gratuita, mas caríssima – está aqui para trazer vida para mim, para meu irmão e irmã, para aqueles que considero estranhos, e até mesmo para meus inimigos.
Nos nossos momentos de oração e meditação nas Escrituras, somos desafiados a viver na presença de Jesus, seguindo os passos dele. Através do nosso trabalho, dos nossos relacionamentos, somos chamados a nos comprometer com este mundo, convidando todos para participar da salvação de Cristo. É um conceito simples, mas profundo, ao qual acabo voltando frequentemente: que a Palavra estava com Deus, que a Palavra era Deus, que a ideia definitiva se tornou carne, e que estou aqui para servi-lo.
Sobre o autor
Filipe Amado, brasileiro, cursa o Master of Arts (MA) – Cristianity & the Arts – no Regent College (Canada). Profissional da área de Marketing, ele atua com direção e produção de audiovisuais na Fi Branding & Film. Fluente em árabe, ele já morou em diversos países islâmicos, como o Marrocos e o Líbano.
Esse ensaio foi elaborado originalmente em inglês. O Martureo obteve permissão para traduzir o material e publicá-lo.
Quer ler outro artigo de Filipe Amado?
Confira aqui o “Alá e Deus?”.
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Confira aqui “Os artitas e a missão de Deus”.
Bibliografia
Begbie, Jeremy, ed. Beholding the Glory. Kindle. London: Darton, Longman and Todd Ltd, 2000.
Berry, Wendell. That Distant Land: The Collected Stories. Berkeley, CA: Counterpoint Press, 2004.
Bonhoeffer, Dietrich. Creation and Fall. New York: Macmillan Publishing Co., 1976. [Criação e Queda, Ed. Sinodal]
____. The Cost of Discipleship. 6th Ed. London: SCM Press Ltd., 1959. Elshtain, Jean Bethke. Who Are We? Eerdmans Publishing Co., 2004.
Garber, Steven. Visions of Vocation, Common Grace for the Common Good. Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 2014.
Goheen, Michael W., and Jim Mullins. The Symphony of Mission. Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2019.
Hugo, Victor. Les Misérables. Traduzido [para o inglês] por Isabel F. Hapgood. Project Gutenberg Ebook. New York: Thomas Y. Crowell & Co., 2008. [Os Miseráveis, Traduzido para o português por Regina Célia de Oliveira. Ed. Martin Claret]
Longman III, Tremper, and Raymond B. Dillard. An Introduction to the Old Testament. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2009. [Introdução ao Antigo Testamento, Ed. Vida Nova]
Smith, James K. A. On the Road with Saint Augustine: A Real-World Spirituality for Restless Hearts. Grand Rapids, Michigan: Brazos Press, 2019.
[1] Steven Garber, Visions of Vocation, Common Grace for the Common Good (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 2014), 28.
[2] Dietrich Bonhoeffer, The Cost of Discipleship, 6th Ed. (London: SCM Press Ltd., 1959), 175.
[3] Tendo trabalhado em Madagascar, vi centenas de agricultores de baunilha trabalhando na pobreza absoluta, sem acesso à eletricidade ou água. Embora a baunilha orgânica estivesse sendo produzida, não havia qualquer preocupação com as famílias que se esforçavam para ganhar a vida nessa lavoura.
[4] Michael W. Goheen e Jim Mullins, The Symphony of Mission (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2019), 38.
[5] James K. A. Smith, On the Road with Saint Augustine: A Real-World Spirituality for Restless Hearts (Grand Rapids, Michigan: Brazos Press, 2019), 63.
[6] Smith, 49.
[7] Smith, 49.
[8] Victor Hugo, Les Misérables, trad. [para o inglês] Isabel F. Hapgood, Project Gutenberg Ebook (New York: Thomas Y. Crowell & Co., 2008), 117.
[9] Hugo, 120; Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall (New York: Macmillan Publishing Co., 1976), 37.
[10] Goheen and Mullins, The Symphony of Mission, 33.
[11] Smith, On the Road with Saint Augustine: A Real-World Spirituality for Restless Hearts, 70.
[12] Wendell Berry, That Distant Land: The Collected Stories (Berkeley, CA: Counterpoint Press, 2004), 283–84.
[13] Jean Bethke Elshtain, Who Are We? (Eerdmans Publishing Co., 2004), 127.
[14] Elshtain, 129.
[15] Os Salmos, sendo em sua maioria lamentos, sempre conduzem a uma profunda gratidão ao Criador. Veja Tremper Longman III and Raymond B. Dillard, An Introduction to the Old Testament (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2009), 249.
[16] Gênesis 1 e 2 nos apresentam uma visão rica e profunda do sacerdócio do ser humano sobre a terra.
[17] Jeremy Begbie, ed., Beholding the Glory, Kindle (London: Darton, Longman and Todd Ltd, 2000), Loc. 51.
[18] Begbie, Loc. 52-56.
[19] Begbie, Loc. 137–40.
[20] Begbie, 128–29.
[21] Goheen e Mullins, The Symphony of Mission, 45.
[22] Luther, “Gospel for the Early Christmas Service,” p. 38, citado em Elshtain, Who Are We?, 129–30.
[23] Garber, Visions of Vocation, Common Grace for the Common Good, 144.
[24] Elshtain, Who Are We?, 141.