Livro O Mundo Muçulmano traz excelente perspectiva histórica e sociológica

Quer saber mais sobre o islã? Leia a obra (em português!) do historiador Peter Demant

Ricardo Coelho Moreira

Vale começar esta resenha dizendo que O Mundo Muçulmano, de Peter Demant (Editora Contexto, 3a edição, 2013, 428 páginas), não é um livro de Teologia ou Missiologia, mas de História. O autor nasceu na Holanda em 1951, onde defendeu sua tese de doutorado em 1988 abordando a temática Israel-Palestina. Historiador especializado em questões relacionadas ao Oriente Médio, ele viveu e trabalhou como pesquisador em Jerusalém a maior parte da década de 1990. Em 1999, mudou-se para o Brasil, e leciona no Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP).

A obra – parte de uma série da Editora Contexto – apresenta uma perspectiva histórica e sociológica do mundo muçulmano com linguagem acessível aos não iniciados no assunto (mas nem por isso superficial) e em português! Destaca-se o poder de síntese sem negligenciar as múltiplas facetas dessa civilização milenar. No livro, uma historiografia não enviesada prevalece: uma leitura do islã e da Ummah – termo que se refere à comunidade constituída por todos os muçulmanos do mundo – que evidencia um fundamentalismo relativamente recente e um radicalismo minoritário. Pode-se dizer que Demant, ao disseminar o entendimento histórico, lança bases para diálogos inter-religiosos saudáveis, algo essencial no evangelicalismo brasileiro atual.

Breve síntese da obra (em especial das páginas 40 a 145)

São três partes. Na primeira, há uma breve, porém precisa, compilação histórica do mundo muçulmano. Em seguida, Demant trabalha o fenômeno fundamentalista na contemporaneidade islamista, mostrando suas raízes históricas e traçando definições. Por fim, ele aponta perspectivas para um diálogo inter-religioso, e propõe respostas a indagações que pairam no imaginário ocidental.

Falando mais sobre a primeira parte (trecho que vai da página 40 à página 145), o autor apresenta o islã e o islamismo – termo técnico na obra que não é sinônimo de islã, mas está ligado à sua versão fundamentalista e expansionista – dentro de civilizações sob duas óticas: a do tempo, traçando uma linha histórica; e a do espaço, em uma abordagem histórico-sociológica dos quatro principais cenários geográficos em que estão localizados os seguidores de Maomé: Oriente Médio, subcontinente indiano, sudeste asiático e África.

O começo da narrativa fala da ascensão e queda dos califados omíada e abássida – que exerceram domínio após a morte do profeta Maomé –, salientando o protagonismo da etnia árabe dentro do mundo muçulmano. A leitura de O Mundo Muçulmano deixa evidente, no entanto, que desde a sua gênese o islã, enquanto projeto social, estava fragmentado, não sendo esses califados, nem os demais que os sucederam, a expressão plena da dar al-islam (casa do islã). Em tempo: a dar al-islam contempla todo o lugar no mundo onde um estado islâmico, governado pela lei sharia, foi estabelecido.

Voltando à obra, em seguida, ela aborda o surgimento do Império Otomano, sua época de ouro e seu declínio diante do surgimento das nações modernas ocidentais, sobretudo em seus movimentos expansionistas no neocolonialismo. Na sequência, o autor fala do pan-arabismo e do surgimento das nações árabes atuais, não deixando de fora a questão palestino-israelense.

Até esse momento do texto, quase todos os grandes acontecimentos se passaram no Oriente Médio. Porém, a história dessa região, apesar de expressar muito da história dos seguidores de Maomé, não reflete a totalidade do processo de expansão do islã. (Aqui você encontra 12 dados e imagens surpreendentes sobre o panorama religioso global.) Por isso, no livro, após essa narrativa, lê-se o relato sobre a Índia muçulmana, um universo muito distinto, com questões únicas e peculiares. E Demant não trabalha o islã somente no país moderno denominado Índia, mas em todo o subcontinente indiano – ele trata, por exemplo, da questão do Paquistão e do surgimento posterior de Bangladesh. Segundo previsão do Pew Research Center, inclusive, em 2050 o país com a maior comunidade islâmica no mundo será a Índia, cujo maior grupo religioso hoje é o hindu.

O sudeste asiático, por sua vez, abriga a Indonésia, os povos malaios, um outro bloco étnico-político. Por isso, o autor relata sua história separadamente. Ainda que, em geral, eles tenham ficado à margem dos grandes impérios islâmicos, esse grupo representa hoje uma significativa parcela da população islâmica mundial: a Indonésia tem o maior número de muçulmanos em todo o mundo, cerca de 187 milhões.

Por fim, o islã também avançou na África, não apenas no norte desse continente, mas também na parte subsaariana. E continua se expandindo! Inicialmente, a disseminação foi mais lenta nessa parte do mundo em função da fragilidade social: conflitos entre as diversas etnias são uma marca. No entanto, com o surgimento dos estados modernos na África (e minimizadas as lutas internas), o islã encontrou um ambiente mais favorável. Aliás, dentre outras razões que explicam o avanço da religião do profeta Maomé nesse continente, o fato de ela ser uma ferramenta agregadora que auxilia a superar as divisões étnicas é uma.

Principais teses desenvolvidas na obra

A história apresentada em O Mundo Muçulmano não é apenas para informar mas, sobretudo, para explicar as origens do fundamentalismo islâmico, elucidar seus motivos. Para o autor, o islamismo é mais uma reação à história desfavorável e à opressão sofrida pelas sociedades muçulmanas do que um projeto inato como diz o senso comum.

Dentro da discussão, Demant salienta a relevância do neocolonialismo na questão. Em suma, ele mostra que a tendência islamista presente em alguma instância em toda a dar al-Islam é fruto de um processo histórico longo e complexo, mas apresenta alguns elementos comuns (na maioria dos casos), dentre os quais:

  • países em desenvolvimento;
  • fracasso de um projeto secular democrático;
  • estados que se tornaram independentes não faz muito tempo.

As múltiplas formas de expansão do islã ficam evidentes em O Mundo Muçulmano, e seu avanço não está associado a uma dominação tirânica e cruel como o imaginário ocidental sugere. Outra perspectiva dessa porção do livro é: o fundamentalismo parece ser a última opção para a resolução das diversas questões dos países islâmicos. Sob essa ótica, o terrorismo seria um produto complexo, fruto de uma densa construção histórica, não um simples imperativo do islã. Essa compreensão histórica livra o leitor da perspectiva limitada e irreal de um islã bélico e terrorista. Essa religião não é necessariamente fundamentalista, tampouco violenta. O artigo “Desafiando o islamismo radical” aborda essa questão com mais profundidade.

Essa resenha crítica foi feita por Ricardo Coelho Moreira como uma das tarefas do módulo “História da formação do islã e sua expansão” (ministrado pelo professor Marcos Amado) do Postgraduate in Oriental Studies (POS), curso que o Martureo oferece em parceria com o Seminário Teológico Servo de Cristo.

 

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