O evangelho entre as religiões: a série “Alá é Deus?e a esperança em Cristo

Comentários dos posts sobre os 23 ensaios publicados mostram como o assunto é polêmico

Timothy Halls

O Centro de Reflexão Missiológica Martureo publicou 23 ensaios sob o título “Alá é Deus?” em 6 partes. São a totalidade dos textos originalmente publicados em inglês pela EMS – Evangelical Missiological Society [Sociedade Missiológica Evangélica] em uma edição especial do Occasional Bulletin em 2016 nos Estados Unidos.[1]

A experiência de ter publicado esses ensaios no Brasil ofereceu não só espaço para pensarmos sobre as diferenças entre o conceito cristão do Deus de Israel e do Senhor Jesus Cristo e o conceito muçulmano de Alá, mas também para observarmos uma longa (e incompleta) história de atuação inter-religiosa. Trata-se de uma oportunidade de considerarmos de novo a nossa participação na plena realização do evangelho de Cristo no contexto de um mundo marcado pela diversidade religiosa.

O post atrevido da professora Larycia e o momento político americano

Os ensaios foram escritos, originalmente, em outro contexto e momento. Uma semana após um ataque terrorista na Califórnia perpetrado por muçulmanos influenciadas pelo grupo extremista ISIS[2]; cinco dias depois que Jerry Falwell, presidente da maior universidade evangélica do país, desafiou seus estudantes a se armarem para “acabar com aqueles muçulmanos”[3]; e três dias após o novo presidente eleito dos Estados Unidos anunciar as suas intenções de fechar o país “completa e totalmente” à entrada de muçulmanos[4]; a professora Larycia Hawkins, no dia 10 de dezembro de 2015, postou no seu Facebook[5] o compromisso de vestir um hijab[6] para a época de Natal (na cidade, no avião e na igreja), em uma atitude de “solidariedade encarnada” com muçulmanos da comunidade no momento que estavam sendo ameaçados e marginados. Identificou-se como cristã, convidou outras cristãs a fazerem o mesmo, e citou as palavras do Papa Francisco, que afirmou que nós (cristãos e muçulmanos) “veneramos o mesmo Deus”[7].

Wheaton College, onde ela foi professora, é a universidade evangélica mais prestigiosa na América. Em seus 160 anos de existência, Wheaton tem sido terra fértil para avivamentos e movimentos missionários. Tem produzido pastores, teólogos, líderes cívicos e muitos missionários altamente respeitados, homens e mulheres de Deus. Como talvez alguns esperariam, o pronunciamento de que cristãos e muçulmanos adoram o mesmo Deus gerou controvérsias no corpo docente, e envolveu a administração da Wheaton College. Alguns membros da mesa diretora da Wheaton alegaram que o pronunciamento violou a declaração de fé que ela, como professora da Wheaton, precisava assinar a cada ano. Por outro lado, colegas professores a defenderam, dizendo que tanto suas palavras como suas atuações estavam bem fundamentadas na declaração que eles também tinham assinado. De fato, a declaração de fé da Wheaton College não menciona muçulmanos e nem a fé islâmica. Mesmo com a defesa de seus colegas, os eventos decorreram da seguinte forma: o post da professora levou à suspensão das regras de liberdade acadêmica na Wheaton; ela foi censurada; as ações tomadas provocaram protestos de estudantes e professores contra a administração da faculdade; e ela acabou sendo demitida. Foi até motivo de um filme[8].

No meio dessa crise, Robert Priest, presidente da EMS – Evangelical Missiological Society [Sociedade Missiológica Evangélica], convidou 22 missionários e missiólogos a escreverem ensaios sobre se Deus e Alá são o mesmo, com o intuito primordial de orientar a reação do público evangélico para evitar um mau testemunho sobre Cristo entre muçulmanos[9]. Ele explica que organizou essa edição especial do Occasional Bulletin orando para que missiólogos pudessem trazer “entendimentos forjados em lugares distantes a fim de que (…) evangélicos norte-americanos hoje” pudessem ser energizados “para mostrar sabiamente o amor (…), e que isso contribuísse para uma abertura no testemunho do evangelho”.[10]

Cristãos e muçulmanos podemos achar um nome em comum para falarmos juntos de Deus ou de Alá?

Priest pediu aos escritores que focassem seus ensaios na questão da igualdade ou não de Deus e Alá. Quando, antes de publicar, ele leu os ensaios, percebeu que saíram com sabor de debate teológico. Possivelmente não ajudariam os leitores a dar testemunho sobre Cristo a muçulmanos. A realidade prática que rolava no país foi que a visibilidade de encontros cotidianos entre muçulmanos e cristãos aumentou justamente no momento em que muitos desejavam rejeitar a participação e presença de muçulmanos na sociedade em geral. A ação tomada pela professora tinha sido um convite ao público evangélico a ir ao encontro de muçulmanos de uma forma que o foco pudesse ser mantido naquilo que importava para os dois, a relação de um com o outro, assim como com Deus. Mas a revista corria o risco de converter a discrepância em uma polêmica ao invés de ajudar cristãos a se aproximarem mais de muçulmanos, conscientes da sua solidariedade diante do Criador de tudo e de todos.

Quatro anos mais tarde, publicamos esses mesmos ensaios em português no site do Martureo. Muitos brasileiros convivem com muçulmanos, seja em contextos islâmicos em outros lugares, seja no Brasil. Pensamos (e continuamos pensando) que a prática de meditarmos sobre quem é Deus seja fundamental para sermos testemunhas fiéis na hora de proclamar o evangelho do Senhor Jesus Cristo.

Vale a pena ler os comentários dos posts sobre os ensaios no Facebook do Martureo[11]. Poucos se referem a alguma coisa mencionada no conteúdo específico dos artigos. Os comentaristas se mostraram mais interessados em dar resposta à pergunta titular “Alá é Deus?”. Entraram na polêmica sobre a igualdade (ou não) entre Deus e Alá. Alguns sabiam pouco sobre a religião islâmica, outros alegavam que o conteúdo estava fundamentado sobre mentiras.

Vários afirmavam a igualdade entre Deus e Alá, nem sempre pelas mesmas razões. Para alguns, a igualdade é questão de tradução: o nome “Elohim”, que é traduzido por “Deus” em português, é traduzido como “Alá” nas Bíblias em aramaico e em árabe. Outros sugeriram uma fórmula bíblica: “Alá é genérico. Só Jeová é Deus” e, dependendo da tradução, “Alá é um nome usado por pessoas na Bíblia para se referir a Deus”. Para outros, a ideia de que Alá e Deus são o mesmo tem fundamento histórico: “O Deus deles (dos muçulmanos) é o Deus de Abraão. Portanto, o Deus dos descendentes de Isaac (Jeová), assim como dos descendentes de Ismael (Alá), é o mesmo”.

Alguns leitores responderam com perspectivas universalistas. A igualdade de todas as divindades decorre do fato de todas as religiões serem válidas: “Deus é único (…), cada povo com o seu jeito de ver Deus”. Sob essa lente, cristãos e muçulmanos adoram o mesmo Deus porque não há mais do que um: “A água é água, não importa se vem em uma garrafa redonda ou quadrada”. Outros, por sua vez, afirmam que nenhuma religião é válida. Toda religião estaria fundamentada em mentiras: qualquer divindade é “farinha do mesmo saco”, pura invenção humana, “historinhas para manobrar as turbas” ou para “dominar a mente dos fracos”, deuses feitos à imagem dos seus criadores humanos.

Não há dúvida que a publicação desses textos no Brasil gerou discussão. Apesar das diferenças, é animador ver católicos, evangélicos, pentecostais, muçulmanos e ateus conversando sobre assuntos tão importantes. Ficamos contentes de saber que as nossas publicações podem provocar reflexão e discussão sobre temas tão relevantes. Oramos para que Deus apareça nessas conversas, por teóricas que forem, e que levem a conclusões dignas do Senhor.

Mas fica uma preocupação: o esforço de ter traduzido e publicado parece não ter cultivado novas relações (nem aprofundado as que já existiam) entre evangélicos brasileiros e muçulmanos (brasileiros ou não). Será que foi mesmo um passo no caminho da plena realização da promessa que o Senhor fizera, milênios atrás, de abençoar todas as famílias da humanidade por meio da semente de Abraão (Gn 12.3; Sl 22.27; Hb 3.25; Gl 3.8)?

Aquilo que começou com uma professora que vestiu o hijab para fortalecer laços com muçulmanos em nome de Cristo, no contexto de adoração a Deus, parece ter chegado a um ponto anticlimático nos ensaios. Se os ensaios, escritos para abrir portas a amizades e conversas entre cristãos e amigos muçulmanos, acabaram contribuindo para a reflexão teológica, alcançamos algo bom, mas ainda incompleto. Mas, se simplesmente contribuíram para uma briga sobre a veracidade relativa de duas religiões, podem ser algo ruim.

Não sei se poderíamos ter antecipado que o impulso prático e relacional da professora acabaria gerando uma confrontação entre formas de conhecer Deus. Mas, segundo o crítico literário Edward Said, as ideias vão em viagem[12]. Ideias formuladas no intento de compreender uma situação vivida são retomadas por outros, e usadas para encaminhar outros discursos em outros lugares e tempos. O processo é comum e prático, pois eleva essas ideias a um nível chamado “teoria”[13], e a circulação dessas teorias estimula a vida cultural e intelectual.

Entretanto a teoria, quando transportada a um outro contexto, é transformada porque é recebida, por natureza, segundo a utilidade dela nesse novo contexto. “As ideias e as teorias viajam – de pessoa a pessoa, de uma situação a outra, de um período a outro”, afirma Said. Vale a pena observar o processo e as forças que produzem o movimento e a transformação resultante, dando atenção à forma como se desenvolvem e para o que são usadas. O processo pode revelar aspectos cruciais sobre as interações entre pessoas, culturas e religiões. Dar atenção ao processo é mais que um exercício mental.

Nossa história de atuação inter-religiosa

Como exercício mental, a viagem ao Brasil da questão de se cristãos e muçulmanos adoramos o mesmo Deus revela alguns fundamentos históricos, sociais e religiosos que mantêm certa islamofobia de tradição despercebida e não examinada. O hábito de pensarmos em termos de religião comparativa foi formado ao longo da história da evangelização do país. Os católicos, no desejo de evangelizar todos, aplicaram meios legais, e usaram da inquisição durante gerações para eliminar as outras religiões, incluindo o Islã que muitos escravos haviam trazido da África[14]. Mais tarde, ao quererem confrontar um catolicismo sincrético, os evangélicos seguimos um caminho parecido. Por isso, a polêmica sobre o Deus verdadeiro tem fundamentos mais do que teóricos no Brasil; o diálogo inter-religioso mais comum consiste em confrontações. Desde a descoberta e colonização do Brasil até o presente, católicos, protestantes, evangélicos, pentecostais e neopentecostais têm se esforçado para evangelizar por meio da conquista, ocupação e transformação de terras, povos, cidades, bairros e comunidades para Cristo. Queremos exorcizar, amarrar e expulsar deuses falsos, demônios, espíritos e diabos. Usamos ferramentas espirituais poderosas para curar e libertar o povo do poder maligno.

Temos desenvolvido bases bíblicas para justificar tais práticas. Referências bíblicas sobre a destruição de ídolos, imagens e altares para por fim à magia e à feitiçaria são bem conhecidas entre nós. Queremos que o povo de Deus não se desvie do caminho rumo às promessas de bênção e abundância. O livro de Josué é utilizado como metáfora para incentivar a conquista das nações [e de “outros”] para Cristo ao relatar a conquista bíblica da Terra Prometida. Não queremos ver “o inimigo” controlando nada em nossa terra.

O motivo de apresentar a ideia da “teoria viajante” é poder pensar sobre como as teorias, quando importadas para outras circunstâncias históricas e outros locais, são recebidas. Said escreveu: “Quando uma experiência humana é registrada pela primeira vez, para então dar-se uma formulação teórica, sua força encontra-se em estar diretamente conectada a (e historicamente motivada por) circunstâncias históricas reais”. Ele acrescentou ainda: “Versões posteriores da teoria não podem reproduzir seu poder original; como a situação original foi atenuada e modificada, a teoria original é fragmentada e diminuída, transformada em um substituto acadêmico relativamente dócil em relação ao que é real [the real thing]”[15].

Podemos observar essa substituição, em tempo real, no caso da ação prática, momentânea e relacional da parte da professora Larycia Hawkins. No lugar dela, entrou uma polêmica sobre bases teológicas que justifiquem ou não um passo missionário em direção ao próximo. É relacional porque, quando ela escreve: “Nós veneramos o mesmo Deus”, incluía cristãos e muçulmanos juntos na referência “nós”. Quando a expressão é submetida à polêmica acadêmica para ver se era certa ou não, a extensão do ‘’nós” se restringiu a um só dos grupos religiosos. No caso, a interrogação foi levantada em uma instituição cristã. Foi examinada e teorizada por cristãos, missiólogos e missionários especialistas em temas sobre muçulmanos. O processo produziu uma revista que compara palavras sobre Deus (= teologia) dos cristãos com palavras muçulmanas sobre Alá. No sentido puro do termo “teologia” (= palavras sobre Deus), fizeram uma teologia comparada, coisa que acha terra fértil no Brasil e na missiologia bíblica e brasileira, em que a confrontação entre o Deus verdadeiro e os deuses falsos e malignos é central. A viagem parece ter alimentado a polêmica religiosa e nacional a respeito da soberania de Cristo no Brasil.

O que talvez não seja tão aparente é que divergências entre muçulmanos e cristãos, durante 13 séculos, têm servido de matéria prima para elaborar teologias[16]. Essas teologias resultantes, por sua vez, “viajam” dentro de suas respectivas comunidades religiosas, e tomam vida própria, às vezes sem conhecer ou levar em conta as outras realidades. Por vezes, são teologias, tanto cristãs como islâmicas, que alegam ou negam que servimos, adoramos, veneramos ou que seremos julgados por um Deus chamado Alá. Os ensaios sobre Deus e Alá que o Martureo trouxe ao Brasil fazem parte de um desses debates teológicos resultantes. Repercutiram principalmente entre cristãos, mas são apenas uma instância específica da longa história de contendas em muitos lugares e momentos. Desta vez, tomou lugar nos Estados Unidos (não em Medina, Meca, Palestina, Irã, Indonésia, Paquistão ou Brasil), e gerou as ideias que publicamos e que apareceram nos comentários.

Uma instância desse processo de “teologar” a partir de encontros práticos e que se restringiu a processos de debate dentro de só uma das comunidades religiosas aconteceu recentemente na Malásia. Nesse caso, o debate evoluiu entre muçulmanos, e acabou sendo usado para alegar, como no caso da Wheaton College, que cristãos e muçulmanos não servem o mesmo Deus, e que certos cristãos não têm direito de usar a palavra Alá para se falar do seu Deus[17].

Na realidade, a situação histórica real na qual encontros práticos e inter-religiosos deram origem a questão de se Alá e Deus são o mesmo aconteceu no início do islã com Maomé e o Alcorão. Maomé pregou aos moradores da península arábica para que deixassem a adoração de ídolos, e reconhecessem que o Deus de Israel é Deus de toda a criação. Maomé alega ter sido enviado como profeta aos árabes pelo mesmo Deus que já enviara profetas aos judeus (Jesus, por exemplo, segundo os muçulmanos, é um profeta). Alá foi o nome que Maomé tinha aprendido dos seguidores de Deus quando ele chama os árabes a deixar os ídolos e a proclamar o nome de Deus em todo o mundo[18]. Assim, a questão sobre se Alá é Deus não aparece como uma nova teoria, e sim como um passo de fé prático e inter-relacional.

O Alcorão é o livro que, segundo Maomé e os muçulmanos, foi revelado por Deus. Kenneth Cragg, um dos apologistas cristãos mais respeitados pelo seu testemunho ante o islã no século 20, enfatiza que o Alcorão precisa ser compreendido como evento, não só como documento. Ele escreve:

É incontestável que o propósito supremo de Maomé foi colocar fim à idolatria e estabelecer somente a adoração a Deus, reconhecendo-o como o único Deus. O islã era a fé a respeito de Deus que terminaria com os deuses. Era a revelação que finalizaria as revelações. Era o chamado, em total simplicidade, a permitir que Deus fosse Deus. E isso só era possível permitindo que o islã fosse o islã, o que significava, por sua vez, que o profeta fosse reconhecido como o profeta. As três exigências [do islã]: unidade, comunidade e o papel de Maomé, como profeta, foram mútuas e inseparáveis.

Em todos os aspectos, essas exigências engajaram o islã em uma relação – tanto positiva, até dependente, como controversa – com os monoteísmos que o antecedem, ou seja, com o judaísmo e com o cristianismo (…). E, considerando apenas esse motivo, é impossível separar o evento do Alcorão de sua matriz judaico-cristã (…). A história pessoal de Maomé certamente desenrolou-se, antes e depois do seu chamado inicial, em constante relação com crenças judaicas e cristãs.[19]

Em resumo, a fé dos muçulmanos os coloca em uma inter-relação com cristãos ante Alá, a quem eles consideram que é o mesmo Deus que o nosso, com grandes implicações para o testemunho cristão entre muçulmanos.

Não faz muito tempo (algo como 40 anos), a igreja evangélica brasileira vem enviando obreiros para viver e servir em países islâmicos, para testemunhar de Jesus Cristo e do evangelho em palavras e ações. Em muitos casos, levaram nas malas algumas teorias (talvez alguma sobre se Deus e Alá são o mesmo) que previamente chegaram “de viagem” ao Brasil e foram espalhadas como elementos básicos para uma missiologia ou teologia cristã. Eles, porém, não permanecem na teoria, vivenciam situações práticas, compartilham a vida diária: momentos ao redor de mesas de muçulmanos, projetos de serviço e desenvolvimento comunitários, apoio de e a vizinhos muçulmanos em momentos de perigo ou solidão, enfrentamento das dificuldades peculiares de países em crise, ajuda a refugiados e clamor (às vezes conjunto) a Deus. Dessa forma, brasileiros têm experimentado essa solidariedade humana junto aos seus anfitriões. Quando compartilham suas experiências com os que ficaram no Brasil, pouco a pouco as ideias sobre aquilo que é possível e impossível na relação com uma pessoa que chama Deus de Alá transformam-se.

Caminhando com Cristo em um mundo inter-religioso

Isto aconteceu no princípio da igreja. Várias vezes, os discípulos foram surpreendidos por iniciativas do Espírito que pareciam violar suas ideias sobre quem poderia participar do reino e de que jeito. No avanço do evangelho desde Jerusalém até os confins, o povo de Deus chega em algumas situações com um “pé atrás”, como no caso de Pedro na casa de Cornélio[20]. Em diversos outros casos (tanto na Bíblia como na história do evangelho entre as nações), o papel do Espírito é o de abrir os olhos dos discípulos para que percebam onde e como Deus opera – muitas vezes, além das formulações bíblicas que defendemos como fundamentais.

Evangélicos brasileiros optaram, desde o princípio, por enviar testemunhas do Senhor Jesus Cristo a muçulmanos mais do que a campos onde predominam seguidores de outras grandes religiões mundiais como mostra o gráfico a seguir. Sem dúvida, isso têm produzido circunstâncias novas e momentos nos quais o Espírito surpreende – na casa de Cornélio, o Espírito surpreendeu Pedro e venceu sua relutância de batizar Cornélio. Pedro teve de levar de volta a Jerusalém as novas de que “Deus deu a esses gentios a mesma dádiva que concedeu a nós quando cremos no Senhor Jesus Cristo” (At 11.17) – ideia que viajou e deu fruto em muitas partes do Império Romano e fora dele[21].

Vale, então, chamar a atenção para o seguinte: a leitura no Brasil de teologias que tentam governar nossa relação com muçulmanos tendo como base se “Alá” e “Deus” significam a mesma pessoa é feita por meio de lentes que se desenvolveram por circunstâncias históricas. Essas ideias teóricas, que surgiram a partir de interações reais, vêm “de viagem”. Citamos, neste ensaio, interações em Meca no século 7, bem como na Wheaton College no século 21, além de circunstâncias peculiares da colonização e evangelização do Brasil. Como isso tudo chegou até nós e influencia nossa forma de pensar?

Hoje, estamos na espera da promessa de Deus de que ele fará coisas inéditas (Is 43.18-19; 48.6-8). Muitos brasileiros seguidores de Cristo estão nos confins da terra com o evangelho, e a diversidade religiosa do Brasil é um fato: encontros inter-religiosos são coisa do dia a dia nas grandes cidades do País. Não sei em que direção vai soprar o Espírito nos próximo anos. O que sei é que o sopro dele, fora dos templos evangélicos, produzirá fruto de formas inesperadas.

Os milhares de encontros de evangélicos brasileiros com muçulmanos, com certeza, estarão cheios de experiências reais e novas que precisarão ser explicadas. Será necessário voltar a examinar a Palavra com olhos novos para entender essas maneiras de como Deus responde às esperanças dos povos. Esse processo de aprender sobre como Deus realiza a sua missão de abençoar todas as famílias da terra é “fazer missiologia”. E essas lições missiológicas a partir de experiência vividas por brasileiros em contextos islâmicos, com certeza, viajarão inevitavelmente com outros brasileiros a outros contextos inter-religiosos. Há muito o que se aprender sobre testemunhar aos povos em convivência respeitosa e com confiança no compromisso do Senhor com o seu evangelho. Estou pronto para ser surpreendido.

 

Sobre o autor
Em 1977, Timothy Halls e a sua esposa, Lois, vieram recém casados ao Brasil e, morando em Curitiba, atuaram como missionários da Sepal. Timothy participou da primeira diretoria da AMTB, organizada em 1983. Depois de nove anos no Brasil, o casal, agora com três filhas pequenas, mudou-se para a Guatemala, onde atuou na COMIBAM construindo conexões entre movimentos missionários de diversos países para formar uma rede continental de ação e reflexão missionária. Mestre em Missiologia (Fuller Theological Seminary), contribui hoje no Martureo.

Que tal ler outro texto desse mesmo autor? Clique e se aprofunde com o artigo “(Re)lendo missões à luz da Bíblia”.

 

[1] A edição em inglês está disponível aqui. No primeiro trimestre de 2021, o Martureo publica um eBook com todo o conteúdo em português.

[2] https://lat.ms/2JxA5R8

[3] https://youtu.be/zHmwD2VElyE

[4] https://n.pr/2UXPOv2

[5] O post foi removido do Facebook a pedido da administração da Wheaton. Aqui há uma cópia.

[6] Nome pelo qual é conhecido o véu adotado por algumas mulheres muçulmanas, especialmente no Ocidente, como expressão de modéstia e piedade.

[7] http://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2015/documents/papa-francesco_20151028_udienza-generale.html

[8] https://samegodfilm.com

[9] https://www.christianitytoday.com/news/2016/january/do-muslims-christians-worship-same-god-wheaton-hawkins-ems.html

[10] A controvérsia não se limitou à comunidade universitária da Wheaton. Devido ao momento que o país passava, o povo americano estava formando opiniões sobre os muçulmanos, mesmo aqueles que não tinham muito (ou nenhum) contato com pessoas da religião islâmica. A decisão da professora Hawkins de se identificar com muçulmanos como parte do seu testemunho cristão correu nas notícias e provocou confusão. O público discutia sobre diferenças entre as religiões, sobre a violência por parte de pessoas religiosas e sobre a pessoa e a natureza de Deus. Esse debate nacional foi parte do contexto, e a ação da EMS foi uma demonstração do desejo de missiólogos de contribuir com bases bíblicas à discussão.

[11] Alá é Deus? (parte 1)

Alá é Deus? (parte 2)
Alá é Deus? (parte 3)
Alá é Deus? (parte 4)
Alá é Deus? (parte 5)

Alá é Deus? (parte 6)

[12] Said, Edward., “Traveling Theory” em The World, the Text and the Critic (Cambridge MA: Harvard University Press, 1983), 226-47.

[13] Ibid.

[14] Para mais informações, veja: bin Farid, Shareef & Abu Alfa Muhammad, “The Islamic Slave Revolts of Bahia, Brazil” (Pittsburg, PA: Sankore Institute of Islamic-African Studies International, 1998); Reis, João José; “A Revolta dos Malés em 1853”, Universidade Federal da Bahia (2008); Reis, João José, Flavio dos Santos Gomes & Marcus J.M. de Carvalho, O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão E Liberdade No Atántico Negro (1822-C.1853) (São Paulo: Companhia das Letras, 2010); e Reis, João José. Rebelião Escrava No Brasil: A História do Levante dos Malês em 1835 (São Paulo: Editora Brasiliense, 1986).

[15] Said, Edward. “Teoría Viajera Reconsiderada”, em Cuadernos de Teoría y Crítica 1 (2015), 43-62.

[16] Como foi o caso na época da Reforma. Amjad-Ali, Charles, “Uma hermenêutica comparativa dos textos de Lutero e Calvino quanto aos judeus e muçulmanos” (2020), especialmente na referência a respeito de Tomás de Aquino nas páginas 8 e 9, assim como a partir da página 13 em relação a Lutero e Calvino.

[17] Lim, Ida, “Three things we learned from: Malaysia’s ‘Allah’ case“, em Malay Mail (25 de janeiro de 2015.

[18] Sabemos que essa ideia de Alá e Deus serem a mesma pessoa aparece séculos antes de Maomé, do Alcorão ou do islamismo. Não foi invenção dos muçulmanos. Os primeiros cristãos que falavam arameo (a mesma língua de Jesus) usavam a palavra Alá para se referir a Deus (ao traduzirem o nome Elohim do Antigo Testamento hebraico e a palavra θεός ou theos do Novo Testamento em grego). Na Bíblia em português, essas palavras são traduzidas como Deus, mas na Bíblia em aramaico, foram traduzidas como Alá desde o segundo século até o presente.

[19] Cragg, Kenneth, The Event of the Qur’an: Islam in Its Scripture (Oxford; Rockport, MA: Oneworld, 1994), 13-16.

[20] Na passagem, fica claro que, em vários momentos, a situação está totalmente fora das expectativas de Pedro. Ele hesita no momento de batizar Cornélio nas águas (At 10.45-47).

[21] Essas deias afetaram a forma de os primeiros missionários se relacionarem em outros contextos (Gl 2.11-21).

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