Tailândia: o Natal entre um povo que não conhece o aniversariante

Na terra do sorriso, é por meio da diversão que a mensagem de transformação é comunicada a todas as gerações

Tiago Gomides

Depois de um ano e meio no interior da Tailândia – período de imersão profunda na cultura e no aprendizado do idioma – eu, minha esposa Mila (que está grávida) e nossa filha Sophia (3 anos), mudamos recentemente para Bangkok, capital do país. Queremos participar do movimento de plantação de igrejas a partir dessa grande metrópole, local que exerce influência nas demais províncias. Esperamos, com a graça de Deus, plantar uma igreja que serve a cidade e comunica o evangelho de Jesus de modo contextualizado à cultura local.

Caminhava com minha filha em um shopping center em busca de itens para mobiliar nossa casa, e me surpreendi com um detalhe na decoração natalina: ao redor de uma grande árvore, vários cartões com a frase: “Joy to the world” [“Alegria para o mundo”]. Mentalmente, cantei o resto dessa música: “The Lord is come. Let earth receive her King”. A tradução em português ficou: “Cantai que o salvador chegou! Acolha a terra o rei”.

Enquanto observava alguns tailandeses tirando centenas de selfies junto à árvore iluminada, comecei a conversar com Deus sobre a profundidade daquela frase e do conteúdo dessa música que entoamos todos os anos em nossas igrejas. Qual o impacto e implicação de ela ser cantata e vivida aqui, um ambiente tão alheio à boa notícia de Cristo? Como os tailandeses podem celebrar o nascimento de Jesus, se alegrar com a chegada do Rei Eterno, se 99% da população ainda não desfruta de um relacionamento pessoal com Deus?

Para os 95% de tailandeses budistas, um Deus soberano é inexistente – a iluminação só pode ser alcançada individualmente, sem a ajuda de qualquer “salvador”. Para os 4% de tailandeses muçulmanos, a encarnação de Deus em um mundo contaminado pelo pecado é inaceitável. A graça divina não faz sentido algum para tais crenças fundamentadas na meritocracia e performance religiosa. Em um contexto assim, como 1% dos tailandeses vive a verdade do Natal?

O que tenho observado é que, apesar dos grandes desafios e dificuldades, o corpo de Cristo que se reúne na Tailândia tem buscado oportunidades para sinalizar o Reino do Rei que nasceu, morreu e ressuscitou. Em dezembro, essas oportunidades aumentam consideravelmente, porque os tailandeses têm uma fascinação por essa “celebração ocidental” cheia de luzes, cores e música. Apesar de não ser feriado aqui, as grandes lojas de varejo e shoppings ficam enfeitados, incentivando as pessoas a participar do Amazing Gift Festival [Maravilhoso Festival de Presentes], pois, além das renas, bonecos de neve e Papai Noel, é basicamente isso que conhecem sobre o Natal.

Assim, irmãos e irmãs tailandeses se dispõem a visitar escolas, universidades, hospitais e asilos apresentando a real razão dessa celebração: o misterioso nascimento do Emanuel, Deus conosco. Em apresentações musicais e encenações teatrais regadas a doces e presentes, distribuem literatura cristã evangelística – para muitos tailandeses, é a primeira vez em suas vidas que têm acesso a porções das Escrituras Sagradas.

As igrejas também organizam programações especiais de Natal, pois essa é a época em que as pessoas estão mais abertas para visitar um “templo cristão”. No lugar de um culto solene com pregação formal, testemunhamos o evangelho da graça da maneira thai. Três valores moldam a sociedade tailandesa:

  • สะดวก Saduak [ter um benefício],
  • สบาย​ Sabbay [ficar tranquilo] e
  • สนุก Sanuk [ser divertido], especialmente esse último.

A história da redenção, então, é contada com muitas risadas, canções, danças engraçadas e dramatizações improvisadas. Há gincanas e sorteios, e muitos prêmios e comida são compartilhados com todos os convidados. Os presentes devem ser úteis, as atividades, sempre descontraídas, e é por meio da diversão que a mensagem de transformação é comunicada para todas as gerações. Não é por acaso que a Tailândia é conhecida como a terra do sorriso!

Algo que tenho experimentado nesse primeiro ano no campo transcultural é que a minha visão de mundo é o tempo todo confrontada. Sou levado a pensar nas minhas crenças e a reavaliar algumas ideias: vivo realmente o que eu professo? Como praticar a minha fé de maneira genuína em uma cultura tão diferente da minha? Como separar a verdade bíblica de minha cultura brasileira e eclesiástica? Creio que, para muitos de nós, é difícil associar expressões de alegria à santidade e soberania de Deus. Não lembramos que o Reino de Deus é descrito por Paulo como “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Para os tailandeses, Deus os acolhe quando sorri!

“Joy to the World” [“Alegria para o mundo”] é como Issac Watts começa seu famoso hino publicado em 1719. Ele escolheu a alegria para descrever o sentimento dos povos de todas as culturas do mundo pela chegada do Rei Jesus. Essa canção, na verdade, foi inspirada no Salmo 98, especialmente o verso 4: “Aclamem ao Senhor todos os habitantes da terra; louvem-no em alta voz com alegres cânticos!”. As quatro estrofes originais falam sobre como a realidade do Reino de Deus transformará tudo neste mundo caído.[1]

Quando olhamos para a história de Watts, a comemoração tailandesa irreverente do Natal ganha ainda mais significado. De acordo com Alyssa Poblete[2], ele foi considerado um perturbador da igreja e até mesmo herege. Na época, só era permitido cantar os Salmos e parte da Bíblia, e, para Watts, faltava alegria e entusiasmo ao cultuar o Senhor dessa forma. Ele destacou o perigo de uma vida incoerente entre o que dizemos crer e como vivemos a fé na prática:

Ao ver a indiferença monótona, o ar negligente e imprudente que está sobre as faces de toda uma assembleia enquanto o Salmo está sobre os seus lábios, um observador piedoso pode até suspeitar do fervor de sua religião interna.

O jovem inglês revolucionou a liturgia cristã.[3] Apesar da rejeição e das críticas, escreveu dezenas de hinos com o objetivo de exaltar Jesus e nutrir a expectativa dos cristãos somente na obra consumadora de Cristo. Crendo que a reação de uma vida profundamente transformada pela esperança no Senhor não pode ser outra senão a ALEGRIA que contagia o próximo e espalha a realidade do Reino pelo mundo, hoje sua música está não só nas igrejas, mas no meio de um shopping de Bangkok, instigando tailandeses budistas a refletir, assim como eu, sobre a alegria que o mundo clama e precisa nestes dias.

Que o “Natal tailandês” possa nos inspirar a buscar o sorriso de Deus apesar das dificuldades e caos que enfrentamos no ano de 2020. Assim como os cristãos tailandeses, nós temos o motivo para sorrir: o bebê que passou pela pobreza e privação; o Emanuel que passou pela humilhação e sofrimento, mas ressurgiu da morte para que você, eu e pessoas de toda tribo, língua e nação possam encontrar vida abundante junto ao Redentor que já veio e um dia voltará! Até lá, nos alegramos na esperança, e anunciamos aos povos que ainda não o conhecem: “Cantai que o salvador chegou! Acolha a terra o rei”.

Quer saber mais sobre o trabalho de Tiago e Mila Gomides na Talilância? Clique aqui.

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[1] https://hymnary.org/text/joy_to_the_world_the_lord_is_come

[2] https://coalizaopeloevangelho.org/article/joy-to-the-world-um-hino-de-natal-reconsiderado/

[3] https://hymnary.org/person/Watts_Isaac

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